27.4.21

Banho-maria

Atiro o alfabeto

contra a boca sedenta

e reverto a toada a favor

dos órfãos de sentido.

As letras

desenho-as com o cinzel furtado.

Meto-as numa aguarela primaveril

e desminto os ogres que voluteiam

entre os hemisférios perdidos.

À força de um labirinto

depois do ermo lugar

junto as mãos todas numa clepsidra:

oxalá sejam artífices

do mais alto verbo

e depois de um depois

se cumpram na fértil andança dos mares.

Dizem:

que não venham venenos sem antídoto

que não se soergam no ocaso

os mastins celebrados por atrocidades

que falem baixo

os tiranetes sem guarida;

que não se desestime a laje secular

o adro que não perde os velhos em repouso

a crisálida que se deita nas flores sedentas.

Amparo o alfabeto,

antes que fique órfão.

#1991

[Crónicas do vírus, DLXIII]

 

Com a espátula da vontade

raspamos

as cicatrizes do medo.

26.4.21

Estribo

Não se diga

do que se disse

ser mentira;

se não

das mentiras

sobra um senão:

uma vírgula a enodoar

o rosto sem prazo.

#1990

[Crónicas do vírus, DLXII]

 

Preparamo-nos

para o festim da liberdade

sem dar conta

dos custos da extravagância?

25.4.21

Matinal

Espreito

pelos interstícios

onde ecoa a penumbra. 

Espreito

a madrugada em sentido

o vocabulário tenente

que é o aforro dos tardios. 

Espreito

este dorso incansável

que promete o amanhecer sem demora

o visível contrabando da fala. 

Espreito

a madrugada sem sentido.

#1989

[Crónicas do vírus, DLXI]

 

Agora

começamos a sair

da miragem que foi nossa

prisão.

24.4.21

#1988

[Crónicas do vírus, DLX]

 

Ainda não é a altura

para a cartografia 

dos danos.

As regras da pontuação

Ponto e vírgula;

o excedente que se abeirava

não era o abismo

a vertigem pela calada;

ponto e vírgula:

era o tempo poupado

para a miragem seguinte.

Em vez da vírgula

o som calado da montanha

o rumorejo da água escondida

e o sol em barda

batendo contra o corpo exilado.

Desacreditava;

e não precisava de ser metódico

com a pontuação.

23.4.21

#1987

[Crónicas do vírus, DLIX]

 

A quimera 

dos dias regressados,

o paliativo em espera.

22.4.21

Contas de merceeiro

Um bazar em Istambul

vale mais

do que a torre de marfim

que é o pináculo dos modernos

mercadores. 

Desenganem-se 

os astronautas da finança

por mais fecunda que pareça

a sua artilharia. 

Pois espartanos são os seus modelos,

a léguas de importunarem

a metáfora do belo

que é o bazar de Istambul.

#1986

[Crónicas do vírus, DLVIII]

 

Haverá juros

vencidos

a estimar

no acerto de contas.

21.4.21

Storyteller

És storyteller,

sem redenção. 

E eu

rendido

devolvo a paga

em sobremesas e teatro. 

Cresço nos enredos

que exsudam de teus dedos. 

Esvazio as barreiras

enquanto fico à tua espera,

à espera de um cosmos 

que é metamorfose dos sonhos. 

Pela mão das tuas estrofes

não quero saber onde me levas. 

Só quero saber

que me leves. 

As tuas estrofes

são a bala de confiança

que me industriam a ser

alguém por fora de mim. 

#1985

[Crónicas do vírus, DLVII]

 

Já só há exílio

para o fulgor

da imaginação.

20.4.21

Espelho sem gasto

Levanta-se o termo em volta da penumbra:

a manhã está pronta. 

Desembaraça-se a luz,

ao início presa às amarras da noite,

autorizando os matinais percursores

na inauguração do dia. 

Não há nada a dizer da rotina. 

As pedras do cais 

são sempre frias e húmidas,

mesmo quando o Verão está no auge. 

O que será 

dos que rumam contra a maré

e, noctívagos, 

viram o tempo do avesso?

Dirão de sua rotina

ser uma rotina

no avesso da rotina

dos que são seus antípodas 

– uma fortuna ao acaso,

como qualquer outra. 

Não se fale de rendição

nem de perspicuidade. 

Os lados dos dados não mudam

com um aceno da vontade. 

Em vez da angústia,

a aceitação da rotina:

é uma prova de vida,

um ermo.

#1984

Capa do Jornal de Notícias, hoje

[Crónicas do vírus, DLVI]

 

As multidões

com sede

de rua.

19.4.21

Partida sem aviso prévio

Uma chuva malsã

desarruma a sementeira

o inesperado absoluto

para prostração dos agrários.

As abelhas fugiram a tempo

mas o vinhedo estava sitiado.

Ao longe

nuvens pomposamente acerbadas

deram sinal de partida;

deixam atrás de si

a devastação.

Um caudal sem leito

desce os socalcos à procura de espaço.

É uma fotografia perturbante:

os rostos assimétricos da natureza

falam depois das loas

quando a sua fúria castradora

deixa os miseráveis à míngua. 

#1983

[Crónicas do vírus, DLV] 

Sem medo do risco,

que o risco 

é uma constante.

18.4.21

#1982

[Crónicas do vírus, DLIV]

 

Já são estimadas

as apostas sem prazo.

Cartão de cidadão

O nome 

embebido

sem homem na meada.

 

O homem

sem nome embebido

plástico.

 

Embebido

o nome órfão

no homem a prazo.

17.4.21

#1981

[Crónicas do vírus, DLIII]

 

Agora

já somos

(definitivamente)

professores de metamorfose.

16.4.21

Assimetria

Ouve-se o ciciar de vultos perenes. 

Não se traduz em palavras sufragadas,

o ciciar. 

Na lonjura da planície

os lobos depositam o uivar

enquanto fogem das mandíbulas

dos mastins mais do que eles. 

Que não haja fingimento deste xadrez 

que sobe constantemente à cena:

 

é um jogo de algozes e presas

e às vezes troca-se de lugar. 

 

Serão as vozes enformadas 

inábeis consumidoras das imagens sem freio

à espera de portagens extintas?

Os embaraços fustigam a ideia do presente. 

Açambarcam a fala

deixada numa fratura exposta

e as sílabas ensonadas 

são a metamorfose de perguntas. 

Ah!

Não sei que paradeiro hei de dar

dos loucos 

que desafiam as gastas arestas do mundo. 

Invejo-os,

os loucos sem saberem da simetria das regras

nem dos penhores que organizam a obediência. 

 

Os risos ecoam no espaço à volta. 

Mas não há rostos

não há matéria sensível

a cortar centímetros entre os lugares. 

Há um labirinto que foge da mediana

contra o ultraje que desvia os olhos

e deixa-os hipotecados na hibernação. 

Mas os vultos perenes 

não deixam de se fazer notar;

 

inclinam-se vagarosamente,

matéria sem ossos, 

para trás e para a frente,

como se fossem maestros implícitos 

da colheita que se repete

todos os dias. 

#1980

[Crónicas do vírus, DLII]

 

Será a força de vontade

a tradução de um delírio?

#1979

[Crónicas do vírus, DLI]

 

Nem que seja

pelo prelo de decreto,

o viés do passado.

15.4.21

1x1

Em fogo larvar

o dó sem partida

imarcesce no goto das veias.

 

Não há resgate das almas

no chão lunar das profecias vãs

nem se chamam os nomes certos

aos meãos hesternos

escondidos em seus lúgubres lugares. 

 

O mundo 

é pequeno:

 

“deixem-me sair daqui”

 

diz-se à boca grande

como se ela abocanhasse o mundo

e ele, enfim,

medrasse por dentro do húmus interior.

 

O mundo

é pequeno:

 

e na vertigem do carrossel

já sem distinguir a música ligeira

as teimas tiradas no sargaço do futuro.

 

Vamos ao fundo das luzes

e trazemos a lava agarrada

o ingrediente singular

nas abóbadas do plural.

#1978

[Crónicas do vírus, DL]

 

Legifere-se

a esperança 

– o voluntarismo do legislador

dobrará o braço da peste.

14.4.21

Bulldog

Dou à pele

um mar de corsário

um cortejo sem pajens

no rumor dos dias pensados.

Habito entre as marés

antes que de Neptuno seja refém

e nos calabouços das ideias

arrumo as minhas,

antes que sejam desarrumação infiel. 

É nestes mares adestrados por meus olhos

que vinham os erros colossais,

matéria antecipada

nos provérbios armadilhados. 

Sou eu 

– não sei – 

em povoados sem idioma

sulcando a geografia notária dos postais

enquanto as cavidades ancestrais amarelecem,

puídas pela estouvada correria do tempo. 

Sou eu

sentinela dos marinheiros órfãos

apólice contra os naufrágios,

com a mão domando o mar encrespado

antes que revire os olhos

e se torne furibundo. 

No meu vocabulário

não encontro espaço para a melancolia. 

Não arranjo as avarias,

que as obras diletantes dos sacerdotes da vida

previnem a perfeição. 

Sou eu 

– o puramente imperfeito

mastro em que se hasteia o pólen 

do que há de ser

alma à procura de o ser

ou vulto desossado de uma alma frágil. 

Deixo de herança

o esquecimento de mim,

desexemplo por excelência

o fugitivo que verte tinta nas nuvens, 

o mentor do nada

que em improfícuos mergulhos

traduz montanhas perfumadas a azul. 

Eu,

o corsário inábil

gato furtivo sem gente por perto

modesto embaixador do etéreo

entre talhadas de loucura servidas em mão

e páginas esquecidas no torniquete da memória. 

Eu,

essoutro à procura de paradeiro

na vinificação dos espíritos desatrelados. 

À espera de vez,

à espera de monções do tempo

servidas sem arnês,

na possibilidade do desdito

sem encorpar se não nas estrofes

de um vate sem nome próprio.

#1977

[Crónicas do vírus, DXLIX]

 

Das cinzas

em que vivemos sepultados

à procura da nossa custódia.

13.4.21

O elmo incapaz

Se a cabeça

coubesse num elmo

podia disfarçar as cicatrizes

que a corrompem.

Mas o elmo

não cabe na cabeça

e recusa ser pretexto

para as cicatrizes que a arruínam.

#1976

[Crónicas do vírus, DXLVIII]

 

Seremos apenas

contrabando

mal estejam escritas

as memórias da peste.

12.4.21

Boca a mais

A boca estilhaçada

recolhe os beijos luxuosos

no átrio do futuro.

Emudece

enquanto se extasia

com os beijos carnudos.

É ela

sacerdotisa que amplifica as cores

é ela 

que costura os beijos diamante

o idioma de todos os falantes.

A boca completa

depois de beijada

já não é contumaz

nem erra pelo fino fio que a separa

do abismo.

Deixou de ser 

estilhaçada.