3.5.21

Jardim botânico

A aguarela sentou-se no lago

e deixou que o espelho de água

falasse por si.

E antes que a noite tivesse pressa

não deixou que a plateia 

se exilasse no olvido.

 

Deitou a mão ao entardecer

e emoldurou a aguarela

em lugar imperial.

 

Não saiu do lugar,

não fosse o lugar sair do sítio.

 

Na manhã que se seguiu

a aguarela era a continuação

do lago

e ele,

o pintor encomendado,

esquecimento puro de si mesmo.

#1997

[Crónicas do vírus, DLXIX]

 

Rasurados

depois de rastos desterrados

tanto tempo. 

2.5.21

O soldado da vaidade

Foi ao fundo da alameda

que branqueou a confidência:

“Eu não tenho chefe,

tenho inteligência.”

Logo depois

hasteou a bandeira da vaidade

(confundido pelo sol

que feria o olhar).

#1996

[Crónicas do vírus, DLXVIII]

 

Já não somos

de plasticina.

(E alguma vez

deixámos de ser

de plasticina?)

1.5.21

O sonho armilar

O sonho

no seu próprio anzol

sobreposto

à matéria venal:

o sangue armadilhado,

à espera de tempo.

#1995

[Crónicas do vírus, DLXVII]

 

O mundo está pronto

para ser albergue

outra vez.

30.4.21

Patrulha

Estragão

(ou outra erva qualquer,

não se sabe)

ceava 

nos espinhos da coroa do escolhido

devolvendo um aroma

que o suor houvera curvado.

Os discípulos ciciavam

à espera do anoitecer:

o escolhido parecia enfraquecer.

Sem demora

encomendaram umas tisanas

que os espinhos se desprendiam da coroa

e o escolhido já só parecia

uma miragem.

#1994

[Crónicas do vírus, DLXVI]

 

Liberdade doseada,

às colheradas,

com o advento de maio

(que é depois de abril).

29.4.21

Check and balances

Não digo

no espasmo da fala 

que seja acintoso,

o Napoleão.

Podia ser

que o pusesse em diálogo

com Séneca

 

(ou em caso de indisponibilidade,

com S. Tomás de Aquino).

 

Napoleão teria de esperar pela rifa. 

Sagaz,

tentou subornar o espírito do concurso. 

Foi o seu maior erro:

Kierkegaard podia ensinar,

sem a catedrática pose

que não tolera o contraditório,

que os espíritos são

à prova de subornos. 

Napoleão resignou-se. 

Antes Napoleão por um dia

do que os discípulos em barda

pressurosamente ensinando o desdisse. 

 

Assim como assim,

não há auroras boreais

por estas paragens.

#1993

[Crónicas do vírus, DLXV]

 

O futuro

está quase

a começar.

28.4.21

Música

Escondemo-nos na música

o idioma sem ultraje

geografia sem rei.

 

Escondemo-nos

a música como cenário

nem que seja

só para desenjoar do mundo.

#1992

[Crónicas do vírus, DLXIV]

 

A redenção,

alinhavada no prelo.

27.4.21

Banho-maria

Atiro o alfabeto

contra a boca sedenta

e reverto a toada a favor

dos órfãos de sentido.

As letras

desenho-as com o cinzel furtado.

Meto-as numa aguarela primaveril

e desminto os ogres que voluteiam

entre os hemisférios perdidos.

À força de um labirinto

depois do ermo lugar

junto as mãos todas numa clepsidra:

oxalá sejam artífices

do mais alto verbo

e depois de um depois

se cumpram na fértil andança dos mares.

Dizem:

que não venham venenos sem antídoto

que não se soergam no ocaso

os mastins celebrados por atrocidades

que falem baixo

os tiranetes sem guarida;

que não se desestime a laje secular

o adro que não perde os velhos em repouso

a crisálida que se deita nas flores sedentas.

Amparo o alfabeto,

antes que fique órfão.

#1991

[Crónicas do vírus, DLXIII]

 

Com a espátula da vontade

raspamos

as cicatrizes do medo.

26.4.21

Estribo

Não se diga

do que se disse

ser mentira;

se não

das mentiras

sobra um senão:

uma vírgula a enodoar

o rosto sem prazo.

#1990

[Crónicas do vírus, DLXII]

 

Preparamo-nos

para o festim da liberdade

sem dar conta

dos custos da extravagância?

25.4.21

Matinal

Espreito

pelos interstícios

onde ecoa a penumbra. 

Espreito

a madrugada em sentido

o vocabulário tenente

que é o aforro dos tardios. 

Espreito

este dorso incansável

que promete o amanhecer sem demora

o visível contrabando da fala. 

Espreito

a madrugada sem sentido.

#1989

[Crónicas do vírus, DLXI]

 

Agora

começamos a sair

da miragem que foi nossa

prisão.

24.4.21

#1988

[Crónicas do vírus, DLX]

 

Ainda não é a altura

para a cartografia 

dos danos.

As regras da pontuação

Ponto e vírgula;

o excedente que se abeirava

não era o abismo

a vertigem pela calada;

ponto e vírgula:

era o tempo poupado

para a miragem seguinte.

Em vez da vírgula

o som calado da montanha

o rumorejo da água escondida

e o sol em barda

batendo contra o corpo exilado.

Desacreditava;

e não precisava de ser metódico

com a pontuação.

23.4.21

#1987

[Crónicas do vírus, DLIX]

 

A quimera 

dos dias regressados,

o paliativo em espera.

22.4.21

Contas de merceeiro

Um bazar em Istambul

vale mais

do que a torre de marfim

que é o pináculo dos modernos

mercadores. 

Desenganem-se 

os astronautas da finança

por mais fecunda que pareça

a sua artilharia. 

Pois espartanos são os seus modelos,

a léguas de importunarem

a metáfora do belo

que é o bazar de Istambul.

#1986

[Crónicas do vírus, DLVIII]

 

Haverá juros

vencidos

a estimar

no acerto de contas.

21.4.21

Storyteller

És storyteller,

sem redenção. 

E eu

rendido

devolvo a paga

em sobremesas e teatro. 

Cresço nos enredos

que exsudam de teus dedos. 

Esvazio as barreiras

enquanto fico à tua espera,

à espera de um cosmos 

que é metamorfose dos sonhos. 

Pela mão das tuas estrofes

não quero saber onde me levas. 

Só quero saber

que me leves. 

As tuas estrofes

são a bala de confiança

que me industriam a ser

alguém por fora de mim. 

#1985

[Crónicas do vírus, DLVII]

 

Já só há exílio

para o fulgor

da imaginação.

20.4.21

Espelho sem gasto

Levanta-se o termo em volta da penumbra:

a manhã está pronta. 

Desembaraça-se a luz,

ao início presa às amarras da noite,

autorizando os matinais percursores

na inauguração do dia. 

Não há nada a dizer da rotina. 

As pedras do cais 

são sempre frias e húmidas,

mesmo quando o Verão está no auge. 

O que será 

dos que rumam contra a maré

e, noctívagos, 

viram o tempo do avesso?

Dirão de sua rotina

ser uma rotina

no avesso da rotina

dos que são seus antípodas 

– uma fortuna ao acaso,

como qualquer outra. 

Não se fale de rendição

nem de perspicuidade. 

Os lados dos dados não mudam

com um aceno da vontade. 

Em vez da angústia,

a aceitação da rotina:

é uma prova de vida,

um ermo.

#1984

Capa do Jornal de Notícias, hoje

[Crónicas do vírus, DLVI]

 

As multidões

com sede

de rua.

19.4.21

Partida sem aviso prévio

Uma chuva malsã

desarruma a sementeira

o inesperado absoluto

para prostração dos agrários.

As abelhas fugiram a tempo

mas o vinhedo estava sitiado.

Ao longe

nuvens pomposamente acerbadas

deram sinal de partida;

deixam atrás de si

a devastação.

Um caudal sem leito

desce os socalcos à procura de espaço.

É uma fotografia perturbante:

os rostos assimétricos da natureza

falam depois das loas

quando a sua fúria castradora

deixa os miseráveis à míngua. 

#1983

[Crónicas do vírus, DLV] 

Sem medo do risco,

que o risco 

é uma constante.

18.4.21

#1982

[Crónicas do vírus, DLIV]

 

Já são estimadas

as apostas sem prazo.