9.6.21

#2036

[Crónicas do vírus, DCVIII]

 

Os dias inteiros

convocam

a avidez das vidas.

Fugitivo

Um fugitivo

não sabe de cor

as armas em que se dissolve

a angústia.

Não aprende

nem por tentativa e erro

o ritual que o empossa,

resistente,

contra mastins que coabitam

na melancolia.

Um fugitivo

não é um pária.

É arquiteto das suas escolhas

refém da sua vontade.

Um fugitivo

fala pelas omissões.

Distingue-se

dos que fingem assiduidade

e desertam em comissões venais,

mascarados de hipocrisia.

Os fugitivos

só fogem de si mesmos.

Que não se abata sobre eles

a exprobração.

8.6.21

#2035

[Crónicas do vírus, DCVII]

 

Já é pré-pós-peste

e os países

ainda pregam partidas

uns aos outros.

7.6.21

Fora de lei

Que sabíamos dos compêndios

onde vertidos estão os códigos de conduta?

Antes que os costumes 

se assenhoreassem da palavra nossa

precipitaríamos a fala insubmissa:

no desdém das convenções

subimos a parada no estado avulso da vontade. 

E em alamedas ornamentadas com jasmim

evocaríamos o futuro rebelde

em suas rimas impuras. 

Alguém nos pediria

que déssemos a autoria 

a um destes códigos de conduta. 

Não,

é o que diríamos

a esta improvável hipótese

pois língua de trapos não é do nosso domínio.

#2034

[Crónicas do vírus, DCVI]

 

Juram:

a miragem será apenas

arqueologia do vocabulário.

6.6.21

Conferência

O tempo vigilante

não deixa portas

por tecer. 

 

O tempo diligente

não responde

pelos ausentes. 

 

O tempo não subserviente

é o torno onde se emoldura

o esquecimento. 

 

O tempo ausente

a dádiva improcedente

no arrojo dos altivos. 

 

O tempo pungente

o cais em fuga 

da pertença. 

 

O tempo farsante

penhor dos olhares

em falta.

#2033

[Crónicas do vírus, DCV]

 

A peste,

a virar

países contra países.

#2032

[Crónicas do vírus, DCIV]

 

Da impaciência dos negócios

aos arrufos diplomáticos.

5.6.21

#2031

[Crónicas do vírus, DCIII]

 

Estamos

entre viver a vida

e deitar muito a perder.

4.6.21

O come sílabas

Não é tolice

soletrar os nomes

ao correr do relógio ímpar.

Todas as sílabas

merecem sufrágio

e deixar algumas pelo caminho

é a identidade dos trapalhões. 

 

(E quem gosta 

de ter um trapalhão 

como mandante?)

#2030

[Crónicas do vírus, DCII]

 

Afinal a História

sempre se repete.

(Ou: o moderno ultimato britânico) 

3.6.21

Tecelagem

Perseguia a manhã sem nome

e dei às mãos sedentas

a tua silhueta. 

 

A enseada escondia os segredos murmurados. 

 

À altura do entardecer

pedimos água à pele suturada 

com o suor do dia. 

 

Dissemos:

 

este 

é o tempo 

de que somos procuradores

um remoinho sem vento por dentro

os dentes à mostra

decifrando todas as sílabas

no Norte 

sem fim.

#2029

[Crónicas do vírus, DCI]

 

Um jogo de espelhos

para que nos seja devolvida

a imagem

que nos foi expropriada.

2.6.21

Dissidência

Não fosse

o verbo puído;

 

não estimasse

o mosto sofrido;

 

não imaginasse

o nome corroído;

 

não contemplasse

o tempo condoído;

 

não chamasse

o mar derrogado;

 

não prometesse

o ás não falado;

 

não inventasse

o medo açambarcado;

 

não derrubasse

o muro embuçado;

 

não desdissesse

o sábio empertigado;

 

não rejeitasse

o corpo desarmado;

 

não fugisse

do cais empenhado;

 

não fingisse

um sobressalto adiado. 

#2028

[Crónicas do vírus, DC]

 

Sobrestimamos os juízos

até sermos intérpretes do naufrágio

(outra vez).

1.6.21

Des-qualquer coisa

Não se me sejam insinuadas

desideias, 

que me desalmo. 

 

Em caso de desaprovação

desigualo os empatas

só para seguir com a desambição

de desandar à retaguarda. 

 

Não desarrumo as desavenças

não por apetite de desnorte

mas por tributo à derrota da desunião. 

 

Nem que venham a medrar

desideias 

desalinhadas no desatino.

#2027

[Crónicas do vírus, DXCIX]

 

As janelas respiram

o ar dantes vedado.

31.5.21

Pacífico

Uma bala perdida

é a prova de vida dos inocentes. 

Numa câmara de sombras

onde vagueiam vultos serenos

o coldre vazio é o aval

das noites perdidas na angústia do medo. 

Mesmo a tempo

de as mãos sinceras

serem a represa onde se estilhaçam 

as balas perdidas. 

#2026

[Crónicas do vírus, DXCVIII]

 

Da descida aos infernos

à reabilitação da casta,

o intervalo da desmemória. 

30.5.21

Estatutário

Navegas nesta cordilheira

se não te falharem 

os ouvidos-intempérie.

 

Se endossasses o referendo

não se te saberia o sal sem sono;

sabes

ao menos

que não te empenhas às marés sem rosto

nem naufragas nas sílabas proteladas. 

 

Teu é o domínio

que se empareda no astrolábio banal,

a promessa colossal 

aos dias sem nome.

#2025

[Crónicas do vírus, DXCVII]

 

Do nacionalismo às avessas:

o dia 

em que os forasteiros

puderam fazer 

o que nos é proibido.

29.5.21

Prodigiosa loucura

Os loucos

não são achados

na loucura maior

que os transcende.

Desde a inauguração dos tempos

maior é a demência

dos que não estão inventariados

nos registos civis

e em consultórios de peritos.

No tântrico teatro

que é a loucura imorredoira, 

o nome próprio do planeta,

que se descontasse a loucura banal

da contabilidade inexistente

da loucura geral.

Essa

é a prodigiosa loucura

sem sentença. 

#2024

[Crónicas do vírus, DXCVI]

 

O beijo da praia:

outra espera

à espera de ser saldada.

28.5.21

Tabela das marés

Não chegava.

Não chegava a maré

depois da tarde.

Os marinheiros falavam.

Diziam palavras sem geografia.

Eles só sabem do mar

e o mar não se traduz

pelos ventos da diferença.

A geografia

era um vocabulário frugal.

Deste miradouro

não se pressente a decadência.

Já trago o arnês

para não ser a presa seguinte

no mar tempestuoso da decadência.

A próxima maré

é minha.

#2023

[Crónicas do vírus, DXCV]

 

Malefícios da peste em extinção:

os velhos bárbaros

voltam a semear incivilização.


27.5.21

A manhã

Escolhi a manhã.

Neófita

traduz a luz iniciática

ainda sem o jugo 

da poluição.

O sabre das multidões

não frequenta a manhã.

 

(Podia também alvitrar

a bruma espapaçada

o orvalho que desapega do musgo

o rio lânguido que estacionou

à espera da sua foz

os poucos rostos, estremunhados,

o punhal que se abate

sobre o desamparo da noite

que é sempre demorada,

até no solstício do Verão).

 

Escolhi a manhã.

Antecipo as almas amestradas

irrompendo nas artérias ocupadas

arrastando-se até a manhã perder gabarito.

 

Não deito a perder

uma única manhã.

#2022

[Crónicas do vírus, DXCIV]

 

Enfim,

um bouquet de flores

na embocadura do labirinto.

26.5.21

Escrivão

O rapaz 

montado furiosamente na guitarra

desenha os contornos da música

e descarrega o seu corpo franzino

na corrente que dava alimento ao som

numa catarse vertida do avesso. 

 

Fiquei a pensar

se o rapaz fosse das letras

que poeta seria.

#2021

[Crónicas do vírus, DXCIII]

 

Ainda falta

a vacina que nos salva

de nós mesmos.

25.5.21

Rodízio de metáforas

Era a torre de Babel,

dizia-se em surdina;

mas talvez fosse

(após cuidadosa inspeção)

a caixa de Pandora.

 

Ninguém desceu a escadaria

para abrir a porta.

 

Seria 

– possivelmente – 

medo

(ou apenas

a aritmética da exceção).