[Crónicas do vírus, DCVIII]
Os dias inteiros
convocam
a avidez das vidas.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Um fugitivo
não sabe de cor
as armas em que se dissolve
a angústia.
Não aprende
nem por tentativa e erro
o ritual que o empossa,
resistente,
contra mastins que coabitam
na melancolia.
Um fugitivo
não é um pária.
É arquiteto das suas escolhas
refém da sua vontade.
Um fugitivo
fala pelas omissões.
Distingue-se
dos que fingem assiduidade
e desertam em comissões venais,
mascarados de hipocrisia.
Os fugitivos
só fogem de si mesmos.
Que não se abata sobre eles
a exprobração.
Que sabíamos dos compêndios
onde vertidos estão os códigos de conduta?
Antes que os costumes
se assenhoreassem da palavra nossa
precipitaríamos a fala insubmissa:
no desdém das convenções
subimos a parada no estado avulso da vontade.
E em alamedas ornamentadas com jasmim
evocaríamos o futuro rebelde
em suas rimas impuras.
Alguém nos pediria
que déssemos a autoria
a um destes códigos de conduta.
Não,
é o que diríamos
a esta improvável hipótese
pois língua de trapos não é do nosso domínio.
O tempo vigilante
não deixa portas
por tecer.
O tempo diligente
não responde
pelos ausentes.
O tempo não subserviente
é o torno onde se emoldura
o esquecimento.
O tempo ausente
a dádiva improcedente
no arrojo dos altivos.
O tempo pungente
o cais em fuga
da pertença.
O tempo farsante
penhor dos olhares
em falta.
Não é tolice
soletrar os nomes
ao correr do relógio ímpar.
Todas as sílabas
merecem sufrágio
e deixar algumas pelo caminho
é a identidade dos trapalhões.
(E quem gosta
de ter um trapalhão
como mandante?)
[Crónicas do vírus, DCII]
Afinal a História
sempre se repete.
(Ou: o moderno ultimato britânico)
Perseguia a manhã sem nome
e dei às mãos sedentas
a tua silhueta.
A enseada escondia os segredos murmurados.
À altura do entardecer
pedimos água à pele suturada
com o suor do dia.
Dissemos:
este
é o tempo
de que somos procuradores
um remoinho sem vento por dentro
os dentes à mostra
decifrando todas as sílabas
no Norte
sem fim.
[Crónicas do vírus, DCI]
Um jogo de espelhos
para que nos seja devolvida
a imagem
que nos foi expropriada.
Não fosse
o verbo puído;
não estimasse
o mosto sofrido;
não imaginasse
o nome corroído;
não contemplasse
o tempo condoído;
não chamasse
o mar derrogado;
não prometesse
o ás não falado;
não inventasse
o medo açambarcado;
não derrubasse
o muro embuçado;
não desdissesse
o sábio empertigado;
não rejeitasse
o corpo desarmado;
não fugisse
do cais empenhado;
não fingisse
um sobressalto adiado.
[Crónicas do vírus, DC]
Sobrestimamos os juízos
até sermos intérpretes do naufrágio
(outra vez).
Não se me sejam insinuadas
desideias,
que me desalmo.
Em caso de desaprovação
desigualo os empatas
só para seguir com a desambição
de desandar à retaguarda.
Não desarrumo as desavenças
não por apetite de desnorte
mas por tributo à derrota da desunião.
Nem que venham a medrar
desideias
desalinhadas no desatino.
Uma bala perdida
é a prova de vida dos inocentes.
Numa câmara de sombras
onde vagueiam vultos serenos
o coldre vazio é o aval
das noites perdidas na angústia do medo.
Mesmo a tempo
de as mãos sinceras
serem a represa onde se estilhaçam
as balas perdidas.
[Crónicas do vírus, DXCVIII]
Da descida aos infernos
à reabilitação da casta,
o intervalo da desmemória.
Navegas nesta cordilheira
se não te falharem
os ouvidos-intempérie.
Se endossasses o referendo
não se te saberia o sal sem sono;
sabes
ao menos
que não te empenhas às marés sem rosto
nem naufragas nas sílabas proteladas.
Teu é o domínio
que se empareda no astrolábio banal,
a promessa colossal
aos dias sem nome.
[Crónicas do vírus, DXCVII]
Do nacionalismo às avessas:
o dia
em que os forasteiros
puderam fazer
o que nos é proibido.
Os loucos
não são achados
na loucura maior
que os transcende.
Desde a inauguração dos tempos
maior é a demência
dos que não estão inventariados
nos registos civis
e em consultórios de peritos.
No tântrico teatro
que é a loucura imorredoira,
o nome próprio do planeta,
que se descontasse a loucura banal
da contabilidade inexistente
da loucura geral.
Essa
é a prodigiosa loucura
sem sentença.
Não chegava.
Não chegava a maré
depois da tarde.
Os marinheiros falavam.
Diziam palavras sem geografia.
Eles só sabem do mar
e o mar não se traduz
pelos ventos da diferença.
A geografia
era um vocabulário frugal.
Deste miradouro
não se pressente a decadência.
Já trago o arnês
para não ser a presa seguinte
no mar tempestuoso da decadência.
A próxima maré
é minha.
[Crónicas do vírus, DXCV]
Malefícios da peste em extinção:
os velhos bárbaros
voltam a semear incivilização.
Escolhi a manhã.
Neófita
traduz a luz iniciática
ainda sem o jugo
da poluição.
O sabre das multidões
não frequenta a manhã.
(Podia também alvitrar
a bruma espapaçada
o orvalho que desapega do musgo
o rio lânguido que estacionou
à espera da sua foz
os poucos rostos, estremunhados,
o punhal que se abate
sobre o desamparo da noite
que é sempre demorada,
até no solstício do Verão).
Escolhi a manhã.
Antecipo as almas amestradas
irrompendo nas artérias ocupadas
arrastando-se até a manhã perder gabarito.
Não deito a perder
uma única manhã.
O rapaz
montado furiosamente na guitarra
desenha os contornos da música
e descarrega o seu corpo franzino
na corrente que dava alimento ao som
numa catarse vertida do avesso.
Fiquei a pensar
se o rapaz fosse das letras
que poeta seria.
Era a torre de Babel,
dizia-se em surdina;
mas talvez fosse
(após cuidadosa inspeção)
a caixa de Pandora.
Ninguém desceu a escadaria
para abrir a porta.
Seria
– possivelmente –
medo
(ou apenas
a aritmética da exceção).