[Crónicas do vírus, DCXV]
Entre
procuradores e mandatários,
nós
à mercê da tentativa e erro.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
O exílio por dentro
desembaraça uma bandeira.
A voz
não se adianta às palavras
numa mudez mortiça,
sem luz.
Os idiomas
dançam
num jardim sem rostos,
procuram uma morada
que não encontram.
Os lugares são todos órfãos.
Os nomes
deviam pertencer
apenas
às pessoas.
Hoje em dia
ontem em noite
amanhã em manhã
depois de amanhã é tarde
(para a lógica da semiótica).
[Crónicas do vírus, DCXIII]
Entre o salto em frente
e a marcha-atrás que pende
a encruzilhada que não se desfaz.
Encho a minha sombra
com a fala sem adiamento.
Navego nas palavras
pendurado nas sílabas
povoadas pela boca.
A minha sombra
tem a caução das mãos
e adeja sobre o avesso de mim.
Não seria nada
na ausência de uma sombra.
A tortura
que se disfarça
no avesso das pálpebras
enquanto os olhares adormecem
entre os esbirros que se calam.
Se houvesse um perfeccionista sistema
e as ruas nunca precisassem de higiene
ninguém seria refém da mudez
ninguém seria penhor
do seu próprio medo.
Em vez disso
a anestesia geral:
os rostos obedientes
as palavras sempre domadas
e o princípio geral do respeito
os verbos enevoados do amesquinhar
sem direito a protesto
no dócil orquestrar de uma gadaria
sob a direção de maestros meãos.
Caderno de encargos:
tirar o avesso do por-do-sol
desenhar as páginas
com palavras irredutíveis
comprar o hoje no leilão do passado
abrir as janelas enquanto o sol se valida
nascer no úbere da vida
atirar os dados contra o cais folgado
avivar o estuário com a boca faminta
despenhar num abismo sem mapa
estiolar o medo contumaz
servir de chão aos poetas
(ou ser poeta entre as palavras chãs)
ser o sal que o mar demanda
amanhecer a qualquer hora do dia
agradecer aos desdeuses
que se povoam no vazio
imaginar os socalcos tatuados na cal
tratar o amanhã por tu;
e prometo:
virar a vaca do avesso.
Um fugitivo
não sabe de cor
as armas em que se dissolve
a angústia.
Não aprende
nem por tentativa e erro
o ritual que o empossa,
resistente,
contra mastins que coabitam
na melancolia.
Um fugitivo
não é um pária.
É arquiteto das suas escolhas
refém da sua vontade.
Um fugitivo
fala pelas omissões.
Distingue-se
dos que fingem assiduidade
e desertam em comissões venais,
mascarados de hipocrisia.
Os fugitivos
só fogem de si mesmos.
Que não se abata sobre eles
a exprobração.
Que sabíamos dos compêndios
onde vertidos estão os códigos de conduta?
Antes que os costumes
se assenhoreassem da palavra nossa
precipitaríamos a fala insubmissa:
no desdém das convenções
subimos a parada no estado avulso da vontade.
E em alamedas ornamentadas com jasmim
evocaríamos o futuro rebelde
em suas rimas impuras.
Alguém nos pediria
que déssemos a autoria
a um destes códigos de conduta.
Não,
é o que diríamos
a esta improvável hipótese
pois língua de trapos não é do nosso domínio.
O tempo vigilante
não deixa portas
por tecer.
O tempo diligente
não responde
pelos ausentes.
O tempo não subserviente
é o torno onde se emoldura
o esquecimento.
O tempo ausente
a dádiva improcedente
no arrojo dos altivos.
O tempo pungente
o cais em fuga
da pertença.
O tempo farsante
penhor dos olhares
em falta.
Não é tolice
soletrar os nomes
ao correr do relógio ímpar.
Todas as sílabas
merecem sufrágio
e deixar algumas pelo caminho
é a identidade dos trapalhões.
(E quem gosta
de ter um trapalhão
como mandante?)
[Crónicas do vírus, DCII]
Afinal a História
sempre se repete.
(Ou: o moderno ultimato britânico)
Perseguia a manhã sem nome
e dei às mãos sedentas
a tua silhueta.
A enseada escondia os segredos murmurados.
À altura do entardecer
pedimos água à pele suturada
com o suor do dia.
Dissemos:
este
é o tempo
de que somos procuradores
um remoinho sem vento por dentro
os dentes à mostra
decifrando todas as sílabas
no Norte
sem fim.
[Crónicas do vírus, DCI]
Um jogo de espelhos
para que nos seja devolvida
a imagem
que nos foi expropriada.
Não fosse
o verbo puído;
não estimasse
o mosto sofrido;
não imaginasse
o nome corroído;
não contemplasse
o tempo condoído;
não chamasse
o mar derrogado;
não prometesse
o ás não falado;
não inventasse
o medo açambarcado;
não derrubasse
o muro embuçado;
não desdissesse
o sábio empertigado;
não rejeitasse
o corpo desarmado;
não fugisse
do cais empenhado;
não fingisse
um sobressalto adiado.
[Crónicas do vírus, DC]
Sobrestimamos os juízos
até sermos intérpretes do naufrágio
(outra vez).
Não se me sejam insinuadas
desideias,
que me desalmo.
Em caso de desaprovação
desigualo os empatas
só para seguir com a desambição
de desandar à retaguarda.
Não desarrumo as desavenças
não por apetite de desnorte
mas por tributo à derrota da desunião.
Nem que venham a medrar
desideias
desalinhadas no desatino.
Uma bala perdida
é a prova de vida dos inocentes.
Numa câmara de sombras
onde vagueiam vultos serenos
o coldre vazio é o aval
das noites perdidas na angústia do medo.
Mesmo a tempo
de as mãos sinceras
serem a represa onde se estilhaçam
as balas perdidas.