22.7.21

#2082

[Crónicas do vírus, DCLIV]

 

Não paramos

de apanhar morteiros

nas cicatrizes dos corpos. 

21.7.21

Arrematação

Bebo

a maresia

dos teus olhos

na manhã remota.

 

Nado

no nevoeiro

dos teus cabelos

entre os lençóis vagos.

 

Respiro

os verbos

selados pelo teu corpo

no jardim efémero.

 

Anoiteço

a aritmética

nos teus sonhos

sob a vigilância da lua.

#2081

[Crónicas do vírus, DCLIII]

 

Documentamos o tempo

com uma procuração

do adiamento.

20.7.21

Tie break

Parto em vantagem.

 

A algibeira recheada de alma

no desfiladeiro onde se desfazem

os medos.

 

Parto em vantagem:

pode não ser modo de o dizer

na folhagem varrida pelo vento

que se arquiteta no chão cansado;

mas digo-o sem disfarce

depois de exorcizadas as farsas

que se alardeavam no céu sem estribeiras.

 

Depois mando notícias

sobre a vantagem

de partir em vantagem.

#2080

[Crónicas do vírus, DCLII]

 

Um vício de autoridade,

para memória futura?

19.7.21

Síntese

Não são os cães vadios 

que mordem nos parapeitos da noite.

 

Não são os peixes sem nome

que anoitecem as areias da praia.

 

Não são os que procuram redenção

que glosam o livro das profecias. 

 

Não são as viúvas enlutadas

que possuem as sílabas claras.

 

Não são aspirantes à fama

que falam com a língua desembaciada.

 

Não são as luzes esforçadas

que colonizam a noite baça.

 

Não são as vozes mortificadas

que ladram o dia em glória.

#2079

[Crónicas do vírus, DCLI]

 

Nunca foi tão forasteiro

estar sitiado

numa torre de marfim.

18.7.21

#2078

[Crónicas do vírus, DCL]

 

Somos 

soldados sem armas

no pecúlio da peste.

17.7.21

Trigonometria dos párias

Diziam ser a trigonometria dos párias:

a misantropia consagrada

imersa numa coroa de hibiscos dourados

e o verbo que contaminava as águas puras

enquanto se apressavam

na estatura que ninguém gostava de ter. 

Na equação entravam insultos, 

o ostracismo indolor

e uma convocatória para a solidão. 

Os párias 

não precisavam de negociar

com esta trigonometria. 

Eram os seus infatigáveis percursores.

#2077

[Crónicas do vírus, DCXLIX]

 

Já não é apenas nos bastidores

que nos refugiamos

na plasticidade.

16.7.21

#2076

[Crónicas do vírus, DCXLVIII]

 

Os braços

aquém da sua 

latitude.

15.7.21

Epistemologia

O poema forma-se no corpo insubmisso.

Não se esconde do crepúsculo

onde capitulam os fracos.

O poema 

é a redenção dos que não têm armas

a beligerância que se atesta em metáforas

o vinho raro na colheita da alma.

Fala sem tutor

na fila onde desmaiam

os da voz empenhada.

#2075

[Crónicas do vírus, DCXLVII]

 

Não se sabe

se a cortina foi levantada

ou se, descida,

anestesiou o palco.

14.7.21

Tempestade

A tempestade acolhe o texto

nas horas matinais.

 

Ensaiam-se os verbos nórdicos

a julgar pela esquadria das árvores.

 

A propósito do cio dos elementos

o medo não é a melhor medida.

 

Sobrepostos

os braços sem identidade

fundem-se na espera.

 

Quando a tempestade embaçar

a tarde pode fazer ouvir 

a sua voz.

#2074

[Crónicas do vírus, DCXLVI]

 

Quem pode dizer

que nunca tropeçou

em arestas da vida?

13.7.21

Requisição civil

Atiro palavras ao dia

e não espero que o dia

seja recíproco. 

 

As sílabas sobem 

métricas

à boca. 

Dispõem a moldura 

das metamorfoses

na antítese 

do mosto que se reproduz

no tempo indiferente. 

 

Recolho as palavras

na rede 

deixada ao largo dos olhos. 

Empresto-lhes o silêncio

que as tutela

no jogo dos sentidos.

Desminado

As cordas dos violinos

amanhecem por dentro da boca.

Avistam o pecúlio maior

e o suor não o desmente. 

A janela traz a manhã sentinela. 

Em vez do silêncio

um rumorejo destina-se em estrofe. 

Por dentro do ciciar ao longe

as vozes fundidas

no estaleiro a que damos

os ossos. 

#2073

[Crónicas do vírus, DCXLV]

 

Capitulação:

rasuramos do presente

a seiva vivente 

de que somos feitos.

12.7.21

Varrer os estilhaços

Os segredos

escondidos

pelas copas das árvores:

em cada tiragem do sol

a maresia decantada

pelos ramos;

 

haveria um dilacerado bocejo

se não fossem tão rotineiras

as rotinas que assim se apresentam. 

 

Há quem diga

que aquelas árvores matrizes

são um ponto cardeal;

o antídoto contra a matéria flácida

que contamina 

os dias. 

 

Às vezes

as páginas ensinam a simplicidade. 

Aprenderam

com as árvores irrelevantes

que estão no centro do mapa.

#2072

[Crónicas do vírus, DCXLIV]

 

Os rituais

perderam o lastro,

perderam-se

como rituais.

11.7.21

#2071

[Crónicas do vírus, DCXLIII]

 

A História é feita

de histórias 

que nunca mais acabam.

#2070

[Crónicas do vírus, DCXLII]

 

Continuamos

no avesso da vida.

(E não 

com a vida do avesso.)

10.7.21

Engenharia

Se falamos

a linguagem da lua

somos mandatários maiores

dos mapas em segredo.

 

Se ao luar

trazemos um caiar

juramos as estrofes sem tempo

que coabitam nas mãos.

 

Se da lua

habitamos a sua lava

hasteamos a alma crepuscular

e aprendemos a modéstia.

 

Se não é estranho

o idioma que nos sagra

é por termos terraplanado as crateras

que infundiam os medos.

#2069

[Crónicas do vírus, DCXLI]

 

Num mergulho pelo medievalismo,

os arcaicos que fogem das seringas

como (diz-se)

o diabo foge da cruz.

9.7.21

Da coragem

O jogo furtivo

aquece nas telhas rubras

da tarde soalheira.

Mandatamos um de nós

para ser teste-de-ferro da provocação,

sem saber se o fazemos 

por preguiça ou por utilidade

 

(alguém sugere 

que não podemos falar todos

ao mesmo tempo).

 

É como deixar a palavra embebida

numa ruela lisérgica

enquanto a tarde se consome

e arrefece nos corpos à sombra.

 

O lugar de procurador de todos nós

fica deserto.

No jogo do empurra

sobra o abismo onde não há vivalma.

Já prefaciava o adágio

sobre cães danados e vozeiros 

e almas estranhamente silenciosas.

#2068

[Crónicas do vírus, DCXL]

 

Manual para lidar com uma peste

(segundo os regentes em funções):

sucessivas camadas de desigualdade

umas em cima das outras. 

8.7.21

O gato comeu-te a língua

O silêncio

não é estrutural. 

 

A bandeira que o traduz

não é um ocaso. 

 

O silêncio

compreende todas as palavras. 

 

As videiras arcanas

habilitam a fala emudecida. 

 

Nem as mãos fundidas nas serranias

devolvem a voz articulada. 

 

O silêncio

é um momento

que se efemeriza. 

 

E nem a cólera

que substitui a maré deitada

distribui uma fala inerente. 

 

A voz prolixa

escuda-se no banal;

empossa o silêncio

na armadura contra o desmedido. 

#2067

[Crónicas do vírus, DCXXXIX]

 

Há sempre novos muros 

que se levantam

por mais que os neguem.

7.7.21

Paragem

Não é por cima do crepúsculo

que amolecem as palavras duras.

Um gesto a jeito,

um amparo no ocaso

e a ajuda de umas mãos gentis

é tudo quanto se precisa

no fingimento da farsa imanente.

Não se diga

que não houve aconselhamento.

No tira teimas

hão de pesar as palavras alvorada.

#2066

[Crónicas do vírus, DCXXXVIII]

 

Este jogo que jogamos

é a cabra-cega

ou a roleta russa?