[Crónicas do vírus, DCLIV]
Não paramos
de apanhar morteiros
nas cicatrizes dos corpos.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Bebo
a maresia
dos teus olhos
na manhã remota.
Nado
no nevoeiro
dos teus cabelos
entre os lençóis vagos.
Respiro
os verbos
selados pelo teu corpo
no jardim efémero.
Anoiteço
a aritmética
nos teus sonhos
sob a vigilância da lua.
Parto em vantagem.
A algibeira recheada de alma
no desfiladeiro onde se desfazem
os medos.
Parto em vantagem:
pode não ser modo de o dizer
na folhagem varrida pelo vento
que se arquiteta no chão cansado;
mas digo-o sem disfarce
depois de exorcizadas as farsas
que se alardeavam no céu sem estribeiras.
Depois mando notícias
sobre a vantagem
de partir em vantagem.
Não são os cães vadios
que mordem nos parapeitos da noite.
Não são os peixes sem nome
que anoitecem as areias da praia.
Não são os que procuram redenção
que glosam o livro das profecias.
Não são as viúvas enlutadas
que possuem as sílabas claras.
Não são aspirantes à fama
que falam com a língua desembaciada.
Não são as luzes esforçadas
que colonizam a noite baça.
Não são as vozes mortificadas
que ladram o dia em glória.
Diziam ser a trigonometria dos párias:
a misantropia consagrada
imersa numa coroa de hibiscos dourados
e o verbo que contaminava as águas puras
enquanto se apressavam
na estatura que ninguém gostava de ter.
Na equação entravam insultos,
o ostracismo indolor
e uma convocatória para a solidão.
Os párias
não precisavam de negociar
com esta trigonometria.
Eram os seus infatigáveis percursores.
O poema forma-se no corpo insubmisso.
Não se esconde do crepúsculo
onde capitulam os fracos.
O poema
é a redenção dos que não têm armas
a beligerância que se atesta em metáforas
o vinho raro na colheita da alma.
Fala sem tutor
na fila onde desmaiam
os da voz empenhada.
[Crónicas do vírus, DCXLVII]
Não se sabe
se a cortina foi levantada
ou se, descida,
anestesiou o palco.
A tempestade acolhe o texto
nas horas matinais.
Ensaiam-se os verbos nórdicos
a julgar pela esquadria das árvores.
A propósito do cio dos elementos
o medo não é a melhor medida.
Sobrepostos
os braços sem identidade
fundem-se na espera.
Quando a tempestade embaçar
a tarde pode fazer ouvir
a sua voz.
Atiro palavras ao dia
e não espero que o dia
seja recíproco.
As sílabas sobem
métricas
à boca.
Dispõem a moldura
das metamorfoses
na antítese
do mosto que se reproduz
no tempo indiferente.
Recolho as palavras
na rede
deixada ao largo dos olhos.
Empresto-lhes o silêncio
que as tutela
no jogo dos sentidos.
As cordas dos violinos
amanhecem por dentro da boca.
Avistam o pecúlio maior
e o suor não o desmente.
A janela traz a manhã sentinela.
Em vez do silêncio
um rumorejo destina-se em estrofe.
Por dentro do ciciar ao longe
as vozes fundidas
no estaleiro a que damos
os ossos.
[Crónicas do vírus, DCXLV]
Capitulação:
rasuramos do presente
a seiva vivente
de que somos feitos.
Os segredos
escondidos
pelas copas das árvores:
em cada tiragem do sol
a maresia decantada
pelos ramos;
haveria um dilacerado bocejo
se não fossem tão rotineiras
as rotinas que assim se apresentam.
Há quem diga
que aquelas árvores matrizes
são um ponto cardeal;
o antídoto contra a matéria flácida
que contamina
os dias.
Às vezes
as páginas ensinam a simplicidade.
Aprenderam
com as árvores irrelevantes
que estão no centro do mapa.
Se falamos
a linguagem da lua
somos mandatários maiores
dos mapas em segredo.
Se ao luar
trazemos um caiar
juramos as estrofes sem tempo
que coabitam nas mãos.
Se da lua
habitamos a sua lava
hasteamos a alma crepuscular
e aprendemos a modéstia.
Se não é estranho
o idioma que nos sagra
é por termos terraplanado as crateras
que infundiam os medos.
[Crónicas do vírus, DCXLI]
Num mergulho pelo medievalismo,
os arcaicos que fogem das seringas
como (diz-se)
o diabo foge da cruz.
O jogo furtivo
aquece nas telhas rubras
da tarde soalheira.
Mandatamos um de nós
para ser teste-de-ferro da provocação,
sem saber se o fazemos
por preguiça ou por utilidade
(alguém sugere
que não podemos falar todos
ao mesmo tempo).
É como deixar a palavra embebida
numa ruela lisérgica
enquanto a tarde se consome
e arrefece nos corpos à sombra.
O lugar de procurador de todos nós
fica deserto.
No jogo do empurra
sobra o abismo onde não há vivalma.
Já prefaciava o adágio
sobre cães danados e vozeiros
e almas estranhamente silenciosas.
[Crónicas do vírus, DCXL]
Manual para lidar com uma peste
(segundo os regentes em funções):
sucessivas camadas de desigualdade
umas em cima das outras.
O silêncio
não é estrutural.
A bandeira que o traduz
não é um ocaso.
O silêncio
compreende todas as palavras.
As videiras arcanas
habilitam a fala emudecida.
Nem as mãos fundidas nas serranias
devolvem a voz articulada.
O silêncio
é um momento
que se efemeriza.
E nem a cólera
que substitui a maré deitada
distribui uma fala inerente.
A voz prolixa
escuda-se no banal;
empossa o silêncio
na armadura contra o desmedido.
Não é por cima do crepúsculo
que amolecem as palavras duras.
Um gesto a jeito,
um amparo no ocaso
e a ajuda de umas mãos gentis
é tudo quanto se precisa
no fingimento da farsa imanente.
Não se diga
que não houve aconselhamento.
No tira teimas
hão de pesar as palavras alvorada.