7.9.21

Misantropia militante

O bramido

idioma da multidão

cala as vozes únicas

que a discordância se afoga

na estrénua vociferação. 

 

As vozes únicas

átomos perdidos

perdem o direito a serem voz

a menos 

que recheiem o caudal tumultuoso

do bramido tonitruante. 

 

O coro imperativo

ensina as sílabas minuciosas

e gravita na gramática rudimentar. 

 

Já se sabia

que os números esbracejam

a antítese da excelência. 

#2132

[Crónicas do vírus, DCCIV]

 

Legados da peste (23):

o direito à véspera,

resgatado das trevas.

6.9.21

Auto vindima

Com o mosto,

a filigrana de mim,

um inventário em falta:

aqueles inquéritos em moda

 

(dizem-se estivais

como se a época tola

precisasse de notários)

 

convocam as interiores peregrinações

que não tropecem no medo

ou na mentira. 

 

E talvez o medo 

seja o avesso da mentira

e os dois ilustram um binómio

 

(contudo, pouco reconhecido).

 

Uma história

depressa se transfigura

em estória

e das vozes estroinas 

ecoam palavras apenas lúgubres

ou a simulação das palavras intuídas. 

 

Cobram-se as folhas caducas

no pressentimento do Outono

 

(convém avivar a memória:

o Outono despoja o Verão);

 

à época tola 

arruma-se no demais restolho

e as fantasias

as elucubrações de que se compõem

os fingimentos

ficam sem apeadeiro. 

É nesta altura

que se vindimam as cepas

antes que caramelizem

e os frutos se esqueçam na podridão. 

 

(E, todavia,

as colheitas tardias

apuram a doçura.)

#2131

[Crónicas do vírus, DCCIII]

 

Legados da peste (22):

abraçamos as janelas

que desamedrontam o futuro.

5.9.21

Poemática

Fazer um poema

é como 

tirar as natas

depois de o leite fervido. 

#2130

[Crónicas do vírus, DCCII]

 

Legados da peste (21):

os códigos transfigurados

sem caução legífera.

4.9.21

#2129

[Crónicas do vírus, DCCI]

 

Legados da peste (20):

as máscaras tribalizadas

admitem a concurso

a hipótese do teatro perene.

#2128

[Crónicas do vírus, DCC]

 

Legados da peste (19):

as máscaras

já não são

a marca do teatro.

3.9.21

Introdução

Este é o prefácio. 

Antes do começo,

um esgrimir de intenções

que amanhecem regras do jogo. 

Os verbos telúricos

abraçam-se à vontade sem tutor. 

Quando já não houver páginas

e o crepúsculo ditar o seu império

nem de posfácios será embainhada

a memória.

#2127

[Crónicas do vírus, DCXCIX]

 

Legados da peste (18):

mudaram as etiquetas

e os azimutes

mas não mudámos de mais.

2.9.21

Exílio 3.0

Os moinhos adestrados

ensaiam o vento. 

No vale

um rumorejo

denúncia o rio

ainda infante. 

A manhã adolescente

aprende com o sol

no compasso 

das árvores que esbracejam. 

O silêncio campestre

povoa o planalto. 

O corpo ascende

como se tomasse conta

do horizonte. 

Não fala:

o silêncio estrutural

embebido

como idioma. 

Um avião

corta o céu

como se fosse uma vírgula

tartamudeada na paisagem.

A urze irrompe

pressentindo o outono. 

O olhar fixa-se nas cumeadas

como se estivesse à espera

de miradouros. 

No cruzamento

três caminhos oferecem-se

como hipóteses. 

A um canto,

discretamente,

umas alminhas apascentam 

um bouquet

enquanto as velas exibem

à exaustão do combustível. 

Ninguém diria

que tão ermo lugar

é curadoria de uma alma dispensada. 

Há vezes

em que o exílio se convoca

imperativo

no desmentido dos contos idílicos

industriados pela cidade. 

#2126

[Crónicas do vírus, DCXCVIII]

 

Nas ruas

às cegas

o mapa

sem fronteiras.

1.9.21

Matéria-prima

Vamos rasgar bandeiras

vamos contar histórias a cachalotes

vamos transpirar o medo que poupámos

vamos estrelar a lua por caiar

vamos desenhar as páginas com um poema

vamos ciciar a alvorada junto ao pólen em espera

vamos arrumar os contratempos no parapeito

vamos dançar as marés intempestivas

vamos devolver as flores ao mar de platina            

vamos aprender com a latitude hasteada

vamos ornar as tatuagens que se escondem na pele

vamos celebrar todos os corolários

vamos ser a matéria quimérica que somos no sangue.

#2125

[Crónicas do vírus, DCXCVII]

 

Legados da peste (17):

teremos aprendido

a não verter cal

na carne viva?

31.8.21

Planalto

Faço de meus pés

o planalto

onde estiola o mosto

que murmura versos

às veias incandescentes.

Desconverso a fala diuturna:

o remoço não começa

na haste fruída das flores colonizadas

mas nos baldios 

onde a liberdade se antecipa.

O planalto

deixo-o sozinho

a macerar a noite.

#2124

[Crónicas do vírus, DCXCVI]

 

Legados da peste (16):

está por demonstrar

se mantemos a cepa

ou se traduzimos a mudança.

30.8.21

Teoria geral dos fretes

Os comboios

trazem notícias

que são mais 

do que a soma do peso 

dos passageiros. 

Não são 

como os fretes nos cargueiros,

muito embora a especialização em fretes

seja uma constante nos compêndios

que nos atiram como lastro.

Já a tara dos comboios

arranja-se no lastro

que se compõe do peso dos passageiros. 

Os comboios

não se importam com fretes

e nem supõem

a taragem dos fretes

se pudessem saber das vidas que os habitam

transitoriamente. 

 

(Que é um eufemismo 

para o inferno são os outros

que não é lema ensinado 

aos comboios).

#2123

[Crónicas do vírus, DCXCV]

 

Legados da peste (15):

as miragens

nunca mais

vão ser iguais.

29.8.21

Congresso (partidário)

O regatear

deixou se ser nas feiras;

emigrou

para comícios

e congressos partidários.

O capataz modula a voz

comanda as emoções do séquito 

– confirmando 

que o séquito não passa de um séquito

ordeiramente obediente

cimentando uma pertença

à medida dos decibéis do palestrante

que usa a batuta desde o púlpito.

#2122

[Crónicas do vírus, DCXCIV]

 

Legados da peste (14):

os narizes assaltados

e não é por mistelas inaladas. 

28.8.21

Os hinos (e os hunos)

Os hinos

são

como papas

para tolos.

#2121

[Crónicas do vírus, DCXCIII]

 

Legados da peste (13):

um epitáfio

a preto e branco

e o silêncio arrumado

a contemplar.

27.8.21

Aguarela dinamite

O leito 

onde o rio se faz rio

entre falésias que antecipam a morte

e o doce ciciar dos corços. 

Uma pequena balsa 

desenha-se no rio

sem medo das fragas escondidas

arrumando o estio no orvalho ainda matinal. 

As vozes sobem os penedos

alimentam-se nas arestas que ferem

mas não se intimidam com o precipício. 

Onde não há afoiteza diante de contratempos

não há possibilidade de vida

nem o frémito da vontade. 

#2120

[Crónicas do vírus, DCXCII]

 

Legados da peste (12):

como azulejos estilhaçados

à procura de estuque.

26.8.21

Poema potencial

Por defeito

os palácios enganam os verbos

perdidas as algemas que eram seu

silêncio.

Na argamassa do mundo fátuo

alquimistas venerandos exibem

o elixir da quarta idade.

Os outros

desconfiam de tanta decadência

e perguntam

se podem perguntar

pelas perguntas que investem

a sabedoria.

Nas águas-furtadas,

a pátria do exílio voluntário,

o olhar perde-se onde a sepultura do rio

se mistura com o horizonte.

Poemas potenciais

iluminam a candidatura a vate,

por mais que essa não seja almejada

condição.

As janelas deixam entrar

o ar carregado de calor de agosto.

Maldita a hora 

em que ordenou a filiação das janelas:

os pensamentos adormeceram

sob as pálpebras contumazes

e já não sobram palavras para completar 

o poema potencial.

#2119

[Crónicas do vírus, DCXCI]

 

Há sempre

um ângulo morto

da ciência.

25.8.21

Puzzle

O presente é perfeito

e apresenta

o perfeito presente

no tempo cosmopolita

que é fusão 

de antanho e porvir. 

 

Corre a marginal

no parapeito do rio

e do sobranceiro patamar

a cidade em socalcos derrete-se

até ao caudal. 

 

É como 

se o pretérito se fundisse

no coevo

e no rio morasse 

o poço sem fundo

que desarmadilha o futuro. 

 

Até que

na irremediável, breve foz

todos os rostos se extinguem

e sobre apenas uma memória,

ela por sua vez 

perecível

assim que os sedimentos são levados

para o fundo mar.

#2118

[Crónicas do vírus, DCXC]

 

Legados da peste (11):

nunca as casas

foram tanto exílio.

24.8.21

Tecnologia

Arranquei a maldição

do meio do dia que estava. 

Outros arqueiam-se 

na superstição. 

Não digo

êxodo. 

Nem participo

com o meu corpo transido

na amálgama a que chamam

prazeres;

prefiro a enseada que se desenha

sob os poros que desinibem a respiração;

na moldura 

que se justapõe aos tempos contínuos

abraço os verbos repelidos:

nunca me achei capaz

de figurar no elenco

onde quase todos participam. 

Os vitrais animam a lucidez. 

Ecos distantes

convocam a pele destatuada. 

Não são os princípios que amparam um fim:

se soubesse com quantas candeias

se escreve o penhor

deixava-me estar sozinho

a um canto

para luzir o cenho descarregado,

o alvitre cheio de possibilidades

no mapa desarmadilhado de tempos erguidos. 

Entronco no grande bazar 

onde as vozes se reduzem ao murmúrio. 

Coroas sem marca 

marcam o cós do tempo. 

Ainda estou para saber

como se leem os versos famintos 

que correm no estuário desmaiado. 

Julgo 

que as palavras assim terçadas

explicam as águas termais do estuário.

#2117

[Crónicas do vírus, DCLXXXIX]

 

O rosto mau da política:

uma constante 

não interrompida pela peste.