Não é o tempo
que existe;
nós
é que dele
fazemos uso.
Somos a sua fábrica.
E sabemos:
mesmo as folhas caducas
que galanteiam o Outono
cultivam
o esvaziar do tempo.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
O colibri orquestra o oceano.
Ele não sabe que seu parto
deu-o o mar imensurável.
Não sabe
que de tão imenso
o mar se esconde com medo
de o tomarem como exíguo.
As vozes protestam:
vivemos todos num enclave
sitiados por paradoxos que nos consomem
sem sabemos a autoria das noites medonhas
das comendas que se advertem
contra o chão puído que nos não quer.
O colibri vigia o oceano.
Ele não sabe do seu pranto
do mar hercúleo
desfeito nos estilhaços da sua fragilidade.
Não sabe que armas precisa de terçar
para libertar os farsantes do seu pecúlio
e para da madrugada sobrante erguer estátuas
poemas válidos que substituam a gramática
devolvendo aos matriciais arquitetos
as regras deixadas a apodrecer.
O colibri pergunta ao oceano
o que o traz iracundo.
O oceano deixa o silêncio a levitar
uma coreografia que se subleva
contra os feitores de tanta coerência.
E o oceano
vulcanicamente atirado contra os cais
que dele protegem alguém
não desiste do sufrágio das almas:
quer que elas venham às janelas
espreitar o oceano temerário,
que mais parece um foragido a sair de si mesmo
na colonização da terra que não é seu domínio.
O colibri não desiste do oceano.
Amanhece ao seu lado,
como se um mago afagasse o seu rosto
numa tentativa de temperança
e das suas veias
retirasse todo o veneno que o consome
que consome as pessoas vestidas na sua humildade.
Mas o oceano contraria os vates que o desenharam
bucólico;
sitiado na sua agitação insolente
imita o alpinista e cresce por cima das dunas
ocupa o chão empedrado da alameda vizinha
deixando para memória futura
um restolho que não finge o desacato.
O colibri não se inquieta.
As mealhas da História conhecem os ciclos
e da destruição episódica
que reverte a favor da povoação das almas.
[Crónicas do vírus, DCCXLVII]
Legados da peste (63):
um exército de mercenários
a soldo
de conspirações
e de dogmas.
Ostenta-se
a cilada
no remoto gesto
da palavra.
No alpendre
as ruínas ascendem
no olhar túrgido
dos idosos.
Não é a decadência
o antídoto
se em páginas gastas
se apaga a dança.
O resto
tem a tutela do luar
e em nós as mãos caldeadas
adiam a tirania do tempo.
Era vê-lo
todo ufano
em comentário indiscretamente marialva
admitir:
“não percebo nada da poda
mas percebo tudo de foda”.
[Crónicas do vírus, DCCXLV]
Legados da peste (61):
guardamos o esquecimento
como o avesso propositado
dos contratempos.
Interrogação (não retórica):
cai o Carmo e a Trindade
se for dito
que a cosmética
se assemelha àqueles bolos
com quimérica ornamentação
à base de chantilly disfarçado:
comem os olhos
para grande lamentação da boca.
[Crónicas do vírus, DCCXLIV]
Legados da peste (60):
oração da obviedade:
mudou o que tinha de mudar
manteve-se o demais.
Na sentinela de um tempo habilitado
as vozes esquecidas arrumam os despojos
e os corpos nus perfilam-se no luar aberto.
As paragens anunciam os comboios completos.
Não interessa, já íamos a pé
e a impureza genesíaca não se abate
com vozes soturnas e verbos sem paradeiro.
Fechamos os olhos
e vemos a aurora boreal
desenhada no avesso do olhar.
As cortinas escondem a ossatura da casa
a ossatura dos seus moradores.
É assim a pele despida
de sentinela ao desejo que se consuma
na finitude dos teatros gentis.
As nossas mãos artesãs
levantavam o dia inaugural
libertado da tirania da noite.
Eram as mãos alquimistas
juntando às somas
todo o ouro colhido
nas arestas da manhã.
Desta matemática
houve memória anotada
já não um amontoado de hieróglifos
ou um raciocínio aprisionado
no véu da culpa.
Deste a matemática
como não havia notícia
e arrumaste a um canto
os dedicados educadores presos ao cânone.
Não foi preciso dizer
“no fundo”,
limitar-nos-íamos a atestar:
foste professor:
aquele que se dedica
a saber que os aprendentes
ficam a saber.
[Crónicas do vírus, DCCXLII]
Legados da peste (58):
uma lição
sobre a perenidade
da contingência.
Encobre-se a anatomia
com heras próprias de uma laguna.
Antes fossem nenúfares
para neles cismarem
em sua metódica curiosidade
cisnes desajuizadas.
Não seria dionisíaco deus grego
(nunca tive jeito para estátua);
limitar-me-ia
no que ao helénico porte diz respeito
a um punhado de sobremesas lácteas,
a convocatória da necessária matéria-prima.
Quanto ao demais
nunca entendi
por que dizem os assarapantados
que se viram gregos.
[Crónicas do vírus, DCCXLI]
Legados da peste (57):
deslumbrados
no engodo do triunfalismo
que soa a vingança sobre nós mesmos.
Os intrépidos
desenham a aventura
no avental dos sonhos.
Emagrecem a bravura
disfarçada como o bodo abdominal
e na verve abastada
dão a beber aos outros
façanhas que nem a crédito suas são.
Os novelos de voz
amontoam-se nos dias a eito.
Deles se diz que são audazes
pelo risível que sobre eles se deita
na exata medida do verbo farto
em compensação
dos exíguos túbaros em que lobrigam.
À parte
o acintoso espanejar que dos outros desemudecem
não são concedidas diatribes ou sublevações
nem nódoas circunstanciais
que despenteiam modas.
São satélites de um nada imenso
fulgurantes esbracejares retidos na mudez
um povoado sem estirpe
casas destinadas ao abandono
mal sejam feitorias de lugares vagos,
por demissão dos demais.
[Crónicas do vírus, DCCXL]
Legados da peste (56):
depois dos baixios lamacentos
a cumeada,
outra vez
a promessa da grandeza.
[Crónicas do vírus, DCCXXXIX]
Legados da peste (55):
voltamos
a ter as cores
na sua gramática inteira.
[Crónicas do vírus, DCCXXXVIII]
Legados da peste (54):
a subserviência do medo
perdeu prazo de validade.
A colheita dos frutos senescentes
angariada no úbere farto
da melancolia.
Arqueiam a bandeira
por declarada insubmissão
eles que sempre ficaram à frente
das mordaças.
Não foram as intenções que marearam
entre os parágrafos das vitórias
e a procuração dos antigos.
Em sextas-feiras entardecidas
germinaram os fetos imberbes
sem que as juras pueris fossem
uma tradução.
E não eram as apostas com o passado
a ebulição dos corpos algemados
que as preces tinham ficado no esquecimento
das luzes acesas.
Em vez de peles tatuadas
sobraram despojos sem nome
e aos nomes sem rosto
não foi dado
paradeiro.
Cismo
com o sismo
que é meu cisma.
Do sismo
que a esmo
me crisma.
Nesta cisma
rejeito o carisma
contras os ismos.
Se no sismo
valido o istmo
cismo que sou cisma de mim.
Vago a pele na tarde sem marca.
Havia musgo
versos e sintonia
entre a amálgama do saber
e o vazio da morte.
Se em meu pecúlio me escondo
não é um estertor a carpir um futuro;
é a serena exposição dos abetos
arbustos como outros
a notável indiferença que somos sem mágoa.
A tola esperança na fadiga dos estetas
agrava os fusíveis sem escala
e nas trevas ferve o destemor
por conta das mãos contundentes
que não se desalojam das raízes fundas
a razia a prazo no pranto sem juras.
É neste magma que ordeno a lava.
Façam-se por conta das anónimas preces
os volteios que
registados
se fundam nos vitrais.
Entre a maré da tarde
e a incontinência da noite
sou eu
marinheiro sem praça
a estiolar no clã que se estremunha
eu,
perdidos os versos na armadilha da fala,
sentido com tanta prodigalidade.
Da marca
não registada
levo a pele
aberta por tatuagens sem autor.
[Crónicas do vírus, DCCXXXV]
Legados da peste (51):
a vida é um jogo
sem se fazer
um jogo com a vida.
[Crónicas do vírus, DCCXXXIV]
Legados da peste (50):
a liturgia dos oportunistas,
uma procissão inacabada.
Antes que seja cedo
e as miragens se abracem ao corpo
a fala angustia-se no teatro da rebeldia.
Ao entardecer
contam-se os abismos esquecidos
sem povoar as paredes com a prematura candeia.
Não se deixam louvores
aos mártires de outrora
pois deles é o heroísmo em volteios pueris.
[Crónicas do vírus, DCCXXXIII]
Legados da peste (49):
o breviário da vida
a opulência
nunca esquecida.