8.11.21

Escadaria

Dantes

era enseada

as águas bucólicas

vertendo irrisórias lamentações

em limítrofes umbrais 

paradeiro de solitários. 

 

Agora

era emboscada

à mercê de uma maré

investida no embaraço da ira

em vez dos rostos seráficos

das assim vistas tágides. 

 

Amanhã

será evaporação 

o sensacional desinteresse

açambarcado ao armazém das coisas sérias

à mercê dos eufemísticos deuses

que não sabem do trono.

#2196

[Crónicas do vírus, DCCLXVIII]

 

Legados da peste (84):

enlutados,

sem parecer que sim,

na gloriosa marcha

até ao próximo precipício.

7.11.21

#2195

[Crónicas do vírus, DCCLXVII]

 

Legados da peste (83):

náufragos,

habitantes 

de uma boia salva-vidas.

6.11.21

#2194

[Crónicas do vírus, DCCLXVI]

 

Legados da peste (82):

contra a deslembrança

a boca faminta do monstro

a sair do esconderijo.

5.11.21

O vulcão não precisa de ser teatro

Não se esconde

a ira da Terra.

As veias incensadas

arrematam a terra por fora

e de sua lava amanhece um ontem

transfigurado.

Um apanhado de estetas

extasia-se

provavelmente insultando 

(sem darem conta)

os que perderam tudo

para a boca faminta da lava

rejeitada pelo vulcão.

#2193

[Crónicas do vírus, DCCLXV]

 

Legados da peste (81):

A maré que se abate

outra vez

com a fiança da altivez.

4.11.21

FM estéreo

Não constam do património

os restos de dias sem bitola. 

Os murmúrios 

rugem nas arcadas da memória. 

Não se desembaraçam

na sua infinita complexidade

como se neles houvesse labirintos puídos.

Às vezes

o caudal desvia-se das intenções

e são os pés gastos que narram a história. 

Sem o avesso da pele

não contamos; 

nem como cobaias de nós mesmos. 

Oxalá houvesse fronteiras. 

Só pelo prazer de as atravessar.

#2192

[Crónicas do vírus, DCCLXIV]

 

Legados da peste (80):

navegamos entre

o investimento na euforia

e a desconfiança dos fantasmas.

3.11.21

Vago

O lugar vago

não é o paradeiro sem intenção

uma espécie de orfandade estiolada

um pesar que se pesa

na lassidão de um silêncio. 

O lugar que se vaga

é uma metáfora que se desenha

na urdidura dos dedos artesãos

afidalgados por uma vontade estrénua. 

Os lugares que vagam

estão à espera 

do lugar de um corpo. 

Nunca chegam a vagar

enquanto não for vaga a vontade

dos corpos que se não rendem

ao vagar. 

#2191

[Crónicas do vírus, DCCLXIII]

 

Legados da peste (79):

a perpetuação

da arqueologia

da vulnerabilidade.

2.11.21

Todos os santos e eu também

Dia

de todos os santos

incluindo eu.

 

(Ou:

dia de miopia agravada

e de julgamento em causa própria.)

#2190

[Crónicas do vírus, DCCLXII]

 

Legados da peste (78):

um forte sem fronteiras,

a usura do desmedo

(ou a província da impaciência).

1.11.21

Sumo de limão disfarçado

Amoedo a diplomacia cortante

as armas guardadas no quartel 

e a demais guarnição

(como não?)

aquartelada.

 

    (Se fosse mandante

    seria das poucas ordenanças 

    por mim lavrada:

    desarmar o exército.)

 

Se a teimosia vingasse

as rodas dentadas mudavam de lugar

e o mundo,

este mundo tão perfeito

e ao mesmo repleto de deformidades,

não seria o mesmo.

 

E eu

ainda estou a tentar perceber

se um diferente mundo

seria menção recomendável.

#2189

[Crónicas do vírus, DCCLXI]

 

Legados da peste (77):

o regateio

das vozes que resgatam

o lugar dissipado.

31.10.21

#2188

[Crónicas do vírus, DCCLX]

 

Legados da peste (76):

não na boca do lobo

na pele do lobo

(outra vez).

30.10.21

O desmentido da eternidade

Dizia:

a eternidade

o lance venal que se deita

nos segredos improcedentes

de um rio que se não sustém

na demanda do estuário

onde visitado é pelo anúncio

do estertor.

#2187

[Crónicas do vírus, DCCLIX]

 

Legados da peste (75):

a corruptela da altivez

no venal esquecimento.

Dicionário do Outono

O outono falava.

A desarrumação do chão

(folhas caducas já sem lugar nos ramos)

o céu antagonista

o mar que queria transbordar

transportando no seu azimute

uma ira mal calculada

a chuva arrastada pelo vento insubmisso;

as pessoas mal-humoradas

de tão mal-habituadas a um outono severo.

29.10.21

#2186

[Crónicas do vírus, DCCLVIII]

 

Legados da peste (74):

agora 

é a voz da cacofonia

pois dantes 

foi a vez da mordaça.

28.10.21

Circo

Como somos:

se não a réplica 

do que julgamos ser

feriado enxertado em página baça

intransigência com o avesso recusado

turno onde nós desafeiçoamos do dia. 

 

Somos

o contrário do avesso 

em que juramos não habitar. 

Somos

a indiferença

por dentro de nós.

 

Nestes preparos

de que serve

o bestiário de nos vestirmos

tão solenemente importantes

se nem por dentro de nós

disso retiramos importância?

#2185

[Crónicas do vírus, DCCLVII]

 

Legados da peste (73):

a deserção

do deserto interior

em retaliação

contra a misantropia forçada.

O selo mais raro

A absolvição

não se abraça à lucidez.

Toma-se

em doses homeopáticas

antes que seja do tempo irado

a safra restante.

27.10.21

Princípio geral do pecado

As escamas puem a pele aturdida

num opúsculo de decadência

que não estava no programa.

Fala-se da senescência

e as mãos furtivas 

procuram um outro mapa

desencantadas

com o augúrio do tempo presente

que parece conspirar com um porvir belicoso.

Fogem os dedos trémulos

(decantados numa miríade crepuscular)

das estrofes aprisionadas em labirintos

gastas em fogos noturnos

como se andassem à candeia

no chamamento de uma lua embaciada.

Os corpos adiantam-se ao tempo

(diz-se, com angústia sentida).

Aos altares sem paradeiro

responde-se com a contumácia indiscreta

antes que sejam tardios 

os murmúrios que se emaranham nos sonhos.

A ferrugem das ideias

não parece ter sido vertida no estuário

enquanto o corpo extático se arrasta 

na marca da usura

(ou com a usura das marcas hasteadas,

quem sabe?).

#2184

[Crónicas do vírus, DCCLVI]

 

Legados da peste (72):

das juras desandadas

às bandeiras por arrematar.

26.10.21

Zelo

Coabita

no vagar da boca gutural

e murmura

o sangue patrimonial

no húmus arrancado aos ossos

sem embaraços nem medos

apenas

a altitude a que tomamos conta

da paisagem de que cuidamos

a beleza. 

#2183

[Crónicas do vírus, DCCLV]

 

Legados da peste (71):

do trigo e do joio

a invisível semelhança.

25.10.21

Postal ilustrado

Chamamos os diamantes por grosso

um lápis assentando no xisto

a tentar fazer a diferença. 

O fortuito pesar não pesa nas olheiras

que antes de serem um acaso

fruem das varandas deitadas 

sobre as luzes varonis. 

Sedentos de labirintos escondidos

os moradores das almas gastas

todavia 

desencomendavam-se da decadência

atribuindo-a vizinho primeiro. 

Antes que viesse a noite

que desse lugar ao luar furtivo

deixando a ossatura bem composta,

desistindo do empalidecido dia insistente

na vertigem de um beijo ajuramentado,

juntámos as páginas num sobressalto sem nome. 

Sempre dissemos

que não tínhamos medo de aeroportos

e as avenidas fartas à mercê de idiomas tantos

disso fizeram prova. 

O testamento dar-se-á a conhecer 

em memória futura. 

A espera é o que nos espera

enquanto não nos debatemos

com a exaustão da lisura.

#2182

[Crónicas do vírus, DCCLIV]

 

Legados da peste (70):

voltamos,

ao que parece,

a escrever a fala

a tinta-da-china.

24.10.21

#2181

[Crónicas do vírus, DCCLIII]

 

Legados da peste (69):

as bandeiras que bordam uma fala,

porta-vozes da vingança.

Rios sem nome

No nome de um rio

um fingimento:

quanto do caudal

leva os pergaminhos dos afluentes

e aquela água é um espelho cosmopolita

até esmaecer no lugar remoto

onde se metamorfoseia em mar.

No rio centrípeto

os caudais afluentes

dissolvem-se num nome sem petição.

E no mar

quanto do seu nome

é feito de rios 

que nele perderam voz.