2.12.21

Jugo

Daí a lanterna

no labirinto do crepúsculo

bússola, talvez, 

ou dicionário

contra os vultos baços

que instruem a cobiça. 

#2223

[Crónicas do vírus, DCCXCV]

 

Legados da peste (111):

só os olhos

falam sorrisos.

1.12.21

Paredes-meias

Fala-se de vileza

e os olhos amedrontam-se

no estertor do sangue embaciado.

 

Fala-se de apatia

e as mãos ensanguentam-se

no fiorde do medo tardio.

 

Fala-se de remédios

e o corpo inteiro agasalha-se

nas luvas do tempo sem medida.

#2222

[Crónicas do vírus, DCCXCIV]

 

Legados da peste (110):

somos 

um estaleiro duradouro

à espera 

da beligerância sem rosto.

30.11.21

#2221

[Crónicas do vírus, DCCXCIII]

 

Legados da peste (109):

o medo 

não se paga

com a tença do abismo.

29.11.21

Cheque em branco

Era sem saber da lareira

que o Inverno se acomodava

entre os poros cansados 

e as preces não atendidas 

dos seus inimigos. 

Se ao exílio comparecessem

os arrojados embaixadores da fecundidade

prover-se-iam de toda a carne a jeito,

a vantagem não artificial na boca do desmedo

rindo, gulosamente, 

contra os padrões. 

Não sabendo do exílio

não se sabia do seu paradeiro

a loucura espalhada pelos átomos de todo o chão

chamando pelos fugitivos desamparados

seduzindo-os com a armadilha do fingimento. 

E eles

já não sabiam

se era de exílio que cuidavam apascentar

ou se era apenas o idioma estilhaçado. 

A fábrica ao longe,

marcando 

o horizonte que separa do desconhecido,

moderava as sílabas 

que medravam das bocas famintas. 

Não era o túmulo onde, 

serenos,

druidas esquecidos 

povoavam a errática condição. 

Os vultos não consentiam a identificação. 

Ninguém anda pela rua

a perguntar os nomes.

#2220

[Crónicas do vírus, DCCXCII]

 

Legados da peste (108):

não fosse errática a peste

maus não seriam

os ofícios dos regentes

(segundo o estalão benevolente).

28.11.21

#2219

[Crónicas do vírus, DCCXCI]

 

Legados da peste (107):

pandemia-pandemónio

um leve travo

a manicómio.

27.11.21

Chão de sangue feito

Os nomes não eram surdos. 

Plantados contra as ervas daninhas

cresciam pelo mosto do orvalho

desmentindo os oráculos sombrios. 

De cada vez que vinham à boca

eram resgatados ao desaparecimento

e ficavam a adejar sobre a impossibilidade

como se fossem elixires à mão

irrecusáveis convites para ladrões de almas. 

Na contingência da estrada sem noite

marcávamos os olhos com areias vivas

e sabíamos

que um destes dias os frutos colhidos

dariam conta da nossa safra. 

Até lá

jogávamos os nomes contra os estilhaços do dia

amparados pelas mãos invioláveis

e pelo verbo 

que só as nossas bocas sabiam entoar.

#2218

[Crónicas do vírus, DCCXC]

 

Legados da peste (106):

a peste terça as garras

e espreita 

com seu insidioso estar.

26.11.21

Resignação

Um tempo perdido

arrancado ao céu embaciado

jura que não será repetido.

 

Os tiranos sem punição

com a bênção de deuses ínvios

mastigam almas sem guarida.

 

Tiram à sorte a sua cautela

súbditos sem fala

enquanto olham, passivos, o devir.

#2217

[Crónicas do vírus, DCCLXXXIX]

 

Legados da peste (105):

um passo atrás

serve para 

depois

dois à frente?

#2216

[Crónicas do vírus, DCCLXXXVIII]

 

Legados da peste (104):

há sempre tempo

para dar um passo atrás.

25.11.21

Beligerância contra o silêncio

Não há mudez por antecipar. 

É o Evereste de todos os dias

a fala imperativa

o estorvo derradeiro 

à solidão. 

Não se conjugam verbos

no nevoeiro que tudo embacia:

contadas as sílabas 

com o vagar da indolência

sobra um tudo imenso

à conta da narração. 

A fala fica

então

à espera da comenda

antes que o sangue se cale.

#2215

[Crónicas do vírus, DCCLXXXVII]

 

Legados da peste (103):

afinal

já não somos

cidadela.

24.11.21

Novembro tardio

Lá fora

novembro tardio. 

De uma árvore à espera da nudez

o outono repara

no grasnar de uma ave. 

Já anoitece

a uma hora gentil no Verão. 

Não se enlouquece

nas cortinas desamparadas 

que são a estiva do dia. 

Seja o isco da temporada invernal

a hibernação fingida no temor das tempestades;

tanta embriaguez dos elementos

joga-se contra a pele impreparada

e as varandas medem a estultícia dos homens. 

Não sei da torre de Babel. 

Às tantas

anda perdida no estômago de um labirinto

e as vozes que emudecem

podiam ser portadoras de tanta tinta;

mas os vultos 

querem ser perenes

ornamentar os sonhos

esperar 

pelas preces ditadas por combinações improváveis

enquanto os peixes fogem do isco

e das uvas quase podres 

se lobriga um vinho de paranças singulares. 

Desajeitado

não me proponho à dança. 

Quisessem outras artes

(murmuro

sem disfarçar o esgar de ironia).

Se atravessarmos o canal

medindo o peso de cada onda

deixaremos em doação uma parte de nós. 

Desminto o novembro farsante:

as páginas estavam perdidas

a meio da ferrugem que tingiu as palavras

e a mudez passou a ser critério. 

De mim não escutarão

palavras exangues

oráculos imprecisos

o leite diuturno em cabazes de pele

estrofes desarrumadas na tirania da métrica

juras sem filamento

ou almocreves em desvario. 

Se a estas desmodas me dou

sei que de mim não se espera hipoteca. 

É o que o novembro a destempo

ajuramenta.

#2214

[Crónicas do vírus, DCCLXXXVI]

 

Legados da peste (102):

do cancelamento

dos estados de espírito.

23.11.21

Transgressão

Marco

a tinta-da-china

o lugar. 

 

Desfaço

com as mãos frias

as ameias. 

 

Devolvo

no esgar mecanicista

o verbo. 

 

Imagino

no sofá de um poema

o sangue último. 

 

Acabo

no anoitecer válido

a especular. 

#2213

[Crónicas do vírus, DCCLXXXV]

 

Legados da peste (101):

o rosto cansado

de uma liberdade 

condicional.

22.11.21

Os parecidos

O relógio das parecenças

só sabe falar com metáforas. 

Mal se afunda

num dezembro sorumbático

desfia um rol de provérbios

até a linguagem ficar exangue. 

É da cepa dos gongóricos 

– esses aspirantes à erudição

farsantes de um conhecimento pronto-a-vestir. 

 

São parecidos

e não sabem ser

mais do que isso. 

 

Suas não são as páginas escorreitas

eles apenas lagares do lugar-comum

verbo repetido 

no espelho em que não são eles

a imagem devolvida. 

 

Se fossem filhos de si mesmos

seriam os primeiros parricidas.

#2212

[Crónicas do vírus, DCCLXXXIV]

 

Legados da peste (100):

foi cedo de mais

para o legado da peste? 

#2211

[Crónicas do vírus, DCCLXXXIII]

 

Legados da peste (99):

não se diga

a destempo

que encerrado 

está o assunto.

21.11.21

Uma conspiração das boas

O jornal começava na página quatro.

A tarde esperou que a andorinha se deitasse.

O polícia abusou da bolacha americana.

A tia vetusta subiu a saia um dedo acima do joelho.

O artista internacional sorriu ao porteiro do hotel.

No cemitério não havia portas abertas à noite.

O estroina fazia-se à vida à boleia do elétrico.

Os versos arrumados combinavam uma conspiração.

O rio não adormeceu a convite do luar.

A mulher sozinha perdeu-se no jardim central.

As velas nas casas não eram um idioma.

O rústico habitar remoto dispensava companhia.

O medo de ter medo rimava com a loucura.

Os dados percorriam o suor dos dedos.

Os amantes desamparados fugiam das lágrimas.

O vinho colhido aprendia a saber os dias.

Os candeeiros apagados amaldiçoavam a noite.

Os socalcos dispunham-se na vertigem do entardecer.

A tiara açaimada escondia-se dos aspirantes.

O grande palco indiferente não dispensava as almas.

Em vez de um sensato abocanhar do dia

a demencial escapada nos interstícios da boémia.

A véspera colonizava a emergência do futuro.

As pessoas avisadas não sabiam do futuro.

Colmeias inteiras ensinavam os misteres.

À mesa dos reis sabiam-se pútridos comensais.

Na voragem dos pressentimentos achava-se um escudo.

#2210

[Crónicas do vírus, DCCLXXXII]

 

Legados da peste (98):

viradas do avesso

as bandeiras

falam um idioma árido.

20.11.21

#2209

[Crónicas do vírus, DCCLXXXI]

 

Legados da peste (97):

o espelho da desídia,

viperino,

a tomar conta da clepsidra.

19.11.21

Benefício

Tira as teimas

de cima do joelho

e atira os despojos

para a rasante do rio.

Se não chegar a incumbência

sopra 

(em seco) 

umas velas de aniversário

e destina ao oráculo que vier

as impressões digitais antes das cesuras.

Dizem os sábios

que a armadura dispensa o polimento

se na carne estiver embebido

o estandarte desarmado.

E se as teimas forem teias

que se desprendam as sílabas

das arcanas algemas que sopesam as eras.

#2208

[Crónicas do vírus, DCCLXXX]

 

Legados da peste (96):

os rostos 

como se tivessem sido

roubados.

18.11.21

Desmatado

Esta mortalha

sopra um amarelo iracundo

resolve a litania rastejante

num abraço entre as sílabas cantantes

movimento que sabe não ser perpétuo. 

Queria dizer:

eu sou perpétuo;

mas logo a mortalha residente

desocupa as estridentes esperanças

no torno onde se afeiçoam os lúgubres peões. 

Os vultos

com parecenças com abutres de atalaia

dirão

que um dia haverá

sem ser o amanhã da véspera.

#2207

[Crónicas do vírus, DCCLXXIX]

 

Legados da peste (95):

ficámos entre mãos

com uma caricatura

do que fomos.

17.11.21

Agiota sentimental

De nota artística:

o roube eloquente

disfarçado de autoria

militava a favor da estultícia.

Os narradores enfeitiçados compunham a sala.

Do lado de lá da lombada

a audiência

num frémito enquanto as palavras não eram 

embuçadas.

Não se sabia do entardecer

que (consta) tinha sido convocado

mas continuava empedernidamente contumaz.

 

(Acontece

às almas dissidentes

que evocam um sentido de misantropia

de cada vez 

que uma multidão é a manta que os acolhe.)

 

De vez em quando

um murmúrio assaltava o estranho silêncio:

reclamava a seu favor

a atenção das divindades de atalaia

em vez das vezes perdidas 

nos corredores da impaciência.

Os luares emaciados não desistiam.

Pediam vozes fundas

que trouxessem no dorso das sílabas

os parapeitos coloridos de verbos famintos.

Às regras enquistadas

sobrepunha-se a angústia escondida

no avesso da língua turgida.

As bocas esperavam

para serem os úberes das vozes que irrompiam

contra a mudez.

 

(Os roubos invisíveis

tomavam conta das almas sentidas

enquanto a geografia se tornava um verso

e os animais não fugiam do retrato.)

 

Soubessem das chaves do desmedo

e todos subiriam a palco.

As janelas continuam do avesso

cumprindo-se juras sem fiel depositário

à espera que seja noite

e do crepúsculo se levantem as falas inteiras.

Os bravos meãos silenciados

não arredavam pé:

deles seria o sapato sem paradeiro

ou apenas se cumpriam 

como os labores que não perdem pela demora 

– e o palco continuava em deserção.

 

Não importava nada.

Os olhos eram todos campestres

tributários de uma singularidade desarmante

e neles se compunham as estrofes 

que pediam sonhos em vez de ouro.