[Crónicas do vírus, DCCXCVI]
Legados da peste (112):
servidos
num caudal tumultuoso
como se não fosse nossa
a vontade.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, DCCXCVI]
Legados da peste (112):
servidos
num caudal tumultuoso
como se não fosse nossa
a vontade.
Fala-se de vileza
e os olhos amedrontam-se
no estertor do sangue embaciado.
Fala-se de apatia
e as mãos ensanguentam-se
no fiorde do medo tardio.
Fala-se de remédios
e o corpo inteiro agasalha-se
nas luvas do tempo sem medida.
[Crónicas do vírus, DCCXCIV]
Legados da peste (110):
somos
um estaleiro duradouro
à espera
da beligerância sem rosto.
Era sem saber da lareira
que o Inverno se acomodava
entre os poros cansados
e as preces não atendidas
dos seus inimigos.
Se ao exílio comparecessem
os arrojados embaixadores da fecundidade
prover-se-iam de toda a carne a jeito,
a vantagem não artificial na boca do desmedo
rindo, gulosamente,
contra os padrões.
Não sabendo do exílio
não se sabia do seu paradeiro
a loucura espalhada pelos átomos de todo o chão
chamando pelos fugitivos desamparados
seduzindo-os com a armadilha do fingimento.
E eles
já não sabiam
se era de exílio que cuidavam apascentar
ou se era apenas o idioma estilhaçado.
A fábrica ao longe,
marcando
o horizonte que separa do desconhecido,
moderava as sílabas
que medravam das bocas famintas.
Não era o túmulo onde,
serenos,
druidas esquecidos
povoavam a errática condição.
Os vultos não consentiam a identificação.
Ninguém anda pela rua
a perguntar os nomes.
[Crónicas do vírus, DCCXCII]
Legados da peste (108):
não fosse errática a peste
maus não seriam
os ofícios dos regentes
(segundo o estalão benevolente).
[Crónicas do vírus, DCCXCI]
Legados da peste (107):
pandemia-pandemónio
um leve travo
a manicómio.
Os nomes não eram surdos.
Plantados contra as ervas daninhas
cresciam pelo mosto do orvalho
desmentindo os oráculos sombrios.
De cada vez que vinham à boca
eram resgatados ao desaparecimento
e ficavam a adejar sobre a impossibilidade
como se fossem elixires à mão
irrecusáveis convites para ladrões de almas.
Na contingência da estrada sem noite
marcávamos os olhos com areias vivas
e sabíamos
que um destes dias os frutos colhidos
dariam conta da nossa safra.
Até lá
jogávamos os nomes contra os estilhaços do dia
amparados pelas mãos invioláveis
e pelo verbo
que só as nossas bocas sabiam entoar.
[Crónicas do vírus, DCCXC]
Legados da peste (106):
a peste terça as garras
e espreita
com seu insidioso estar.
Um tempo perdido
arrancado ao céu embaciado
jura que não será repetido.
Os tiranos sem punição
com a bênção de deuses ínvios
mastigam almas sem guarida.
Tiram à sorte a sua cautela
súbditos sem fala
enquanto olham, passivos, o devir.
[Crónicas do vírus, DCCLXXXIX]
Legados da peste (105):
um passo atrás
serve para
depois
dois à frente?
[Crónicas do vírus, DCCLXXXVIII]
Legados da peste (104):
há sempre tempo
para dar um passo atrás.
Não há mudez por antecipar.
É o Evereste de todos os dias
a fala imperativa
o estorvo derradeiro
à solidão.
Não se conjugam verbos
no nevoeiro que tudo embacia:
contadas as sílabas
com o vagar da indolência
sobra um tudo imenso
à conta da narração.
A fala fica
então
à espera da comenda
antes que o sangue se cale.
Lá fora
novembro tardio.
De uma árvore à espera da nudez
o outono repara
no grasnar de uma ave.
Já anoitece
a uma hora gentil no Verão.
Não se enlouquece
nas cortinas desamparadas
que são a estiva do dia.
Seja o isco da temporada invernal
a hibernação fingida no temor das tempestades;
tanta embriaguez dos elementos
joga-se contra a pele impreparada
e as varandas medem a estultícia dos homens.
Não sei da torre de Babel.
Às tantas
anda perdida no estômago de um labirinto
e as vozes que emudecem
podiam ser portadoras de tanta tinta;
mas os vultos
querem ser perenes
ornamentar os sonhos
esperar
pelas preces ditadas por combinações improváveis
enquanto os peixes fogem do isco
e das uvas quase podres
se lobriga um vinho de paranças singulares.
Desajeitado
não me proponho à dança.
Quisessem outras artes
(murmuro
sem disfarçar o esgar de ironia).
Se atravessarmos o canal
medindo o peso de cada onda
deixaremos em doação uma parte de nós.
Desminto o novembro farsante:
as páginas estavam perdidas
a meio da ferrugem que tingiu as palavras
e a mudez passou a ser critério.
De mim não escutarão
palavras exangues
oráculos imprecisos
o leite diuturno em cabazes de pele
estrofes desarrumadas na tirania da métrica
juras sem filamento
ou almocreves em desvario.
Se a estas desmodas me dou
sei que de mim não se espera hipoteca.
É o que o novembro a destempo
ajuramenta.
Marco
a tinta-da-china
o lugar.
Desfaço
com as mãos frias
as ameias.
Devolvo
no esgar mecanicista
o verbo.
Imagino
no sofá de um poema
o sangue último.
Acabo
no anoitecer válido
a especular.
[Crónicas do vírus, DCCLXXXV]
Legados da peste (101):
o rosto cansado
de uma liberdade
condicional.
O relógio das parecenças
só sabe falar com metáforas.
Mal se afunda
num dezembro sorumbático
desfia um rol de provérbios
até a linguagem ficar exangue.
É da cepa dos gongóricos
– esses aspirantes à erudição
farsantes de um conhecimento pronto-a-vestir.
São parecidos
e não sabem ser
mais do que isso.
Suas não são as páginas escorreitas
eles apenas lagares do lugar-comum
verbo repetido
no espelho em que não são eles
a imagem devolvida.
Se fossem filhos de si mesmos
seriam os primeiros parricidas.
[Crónicas do vírus, DCCLXXXIII]
Legados da peste (99):
não se diga
a destempo
que encerrado
está o assunto.
O jornal começava na página quatro.
A tarde esperou que a andorinha se deitasse.
O polícia abusou da bolacha americana.
A tia vetusta subiu a saia um dedo acima do joelho.
O artista internacional sorriu ao porteiro do hotel.
No cemitério não havia portas abertas à noite.
O estroina fazia-se à vida à boleia do elétrico.
Os versos arrumados combinavam uma conspiração.
O rio não adormeceu a convite do luar.
A mulher sozinha perdeu-se no jardim central.
As velas nas casas não eram um idioma.
O rústico habitar remoto dispensava companhia.
O medo de ter medo rimava com a loucura.
Os dados percorriam o suor dos dedos.
Os amantes desamparados fugiam das lágrimas.
O vinho colhido aprendia a saber os dias.
Os candeeiros apagados amaldiçoavam a noite.
Os socalcos dispunham-se na vertigem do entardecer.
A tiara açaimada escondia-se dos aspirantes.
O grande palco indiferente não dispensava as almas.
Em vez de um sensato abocanhar do dia
a demencial escapada nos interstícios da boémia.
A véspera colonizava a emergência do futuro.
As pessoas avisadas não sabiam do futuro.
Colmeias inteiras ensinavam os misteres.
À mesa dos reis sabiam-se pútridos comensais.
Na voragem dos pressentimentos achava-se um escudo.
[Crónicas do vírus, DCCLXXXII]
Legados da peste (98):
viradas do avesso
as bandeiras
falam um idioma árido.
[Crónicas do vírus, DCCLXXXI]
Legados da peste (97):
o espelho da desídia,
viperino,
a tomar conta da clepsidra.
Tira as teimas
de cima do joelho
e atira os despojos
para a rasante do rio.
Se não chegar a incumbência
sopra
(em seco)
umas velas de aniversário
e destina ao oráculo que vier
as impressões digitais antes das cesuras.
Dizem os sábios
que a armadura dispensa o polimento
se na carne estiver embebido
o estandarte desarmado.
E se as teimas forem teias
que se desprendam as sílabas
das arcanas algemas que sopesam as eras.
Esta mortalha
sopra um amarelo iracundo
resolve a litania rastejante
num abraço entre as sílabas cantantes
movimento que sabe não ser perpétuo.
Queria dizer:
eu sou perpétuo;
mas logo a mortalha residente
desocupa as estridentes esperanças
no torno onde se afeiçoam os lúgubres peões.
Os vultos
com parecenças com abutres de atalaia
dirão
que um dia haverá
sem ser o amanhã da véspera.
[Crónicas do vírus, DCCLXXIX]
Legados da peste (95):
ficámos entre mãos
com uma caricatura
do que fomos.