[Crónicas do vírus, DCCCIII]
Legados da peste (119):
a transgressão
já não é sinónimo de rebeldia,
anátema
que fere de morte
a liberdade.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, DCCCIII]
Legados da peste (119):
a transgressão
já não é sinónimo de rebeldia,
anátema
que fere de morte
a liberdade.
O sangue não fala
se não no placo da beligerância
quando,
pútrido e fora dos corpos,
ostenta a sua inutilidade.
[Crónicas do vírus, DCCCII]
Legados da peste (118):
cada um por si
– o grau zero da aprendizagem.
No luto
não há um eco de Deus.
Uma silhueta vermelha
rebelde
cativa os insultos
– heresia, oh heresia.
Se houvesse bibliotecas por narrar
seriam olhos sem sono
os que ditavam penhor.
Se pensar bem
as bibliotecas são sepulturas
onde os mortos se corporizam
imorredoiros.
Os cemitérios deviam dar lugar
a bibliotecas.
Não ficava pesado
com o chumbo das sepulturas
o chão assim libertado
e os mortos
todos os mortos
teriam na biblioteca
o seu panteão.
[Crónicas do vírus, DCCC]
Legados da peste (116):
tentativa e erro
uma e outra vez,
uma coreografia inacabada.
Se a montanha
não foi parteira
de um rato
foi o rato que pariu
a montanha.
Ulisses
não nasceu
ontem.
[Crónicas do vírus, DCCXCIX]
Legados da peste (115):
uma emboscada
que sai do esconderijo
e nos atropela,
outra vez.
[Crónicas do vírus, DCCXCVIII]
Legados da peste (114):
de faiança desbotada,
este ADN adulterado.
Um rosto seráfico
de bronze
impede o dedilhar da mentira.
É como se forças sem face
metessem mais à obra
para derrotar uma tempestade,
convencidas da fortuna da maré.
O vinho apresenta-se amigo.
Se ao menos
os cães não andassem em matilha
os remédios
embainhados numa nota de rodapé
diriam
em voz apenas murmurada
que não é prémio de monta
saber dos filhos
como seguidores.
As mentiras
não se contam aos incrédulos,
de acordo com um advogado
que se diz ter procuração de demónios inúmeros.
Da noite para o dia
avançam os vultos disfarçados
na contagem válida das mentiras sobrepostas.
[Crónicas do vírus, DCCXCVII]
Legados da peste (113):
o rosto da peste,
ou uma procuração
da sinédoque da beligerância.
[Crónicas do vírus, DCCXCVI]
Legados da peste (112):
servidos
num caudal tumultuoso
como se não fosse nossa
a vontade.
Fala-se de vileza
e os olhos amedrontam-se
no estertor do sangue embaciado.
Fala-se de apatia
e as mãos ensanguentam-se
no fiorde do medo tardio.
Fala-se de remédios
e o corpo inteiro agasalha-se
nas luvas do tempo sem medida.
[Crónicas do vírus, DCCXCIV]
Legados da peste (110):
somos
um estaleiro duradouro
à espera
da beligerância sem rosto.
Era sem saber da lareira
que o Inverno se acomodava
entre os poros cansados
e as preces não atendidas
dos seus inimigos.
Se ao exílio comparecessem
os arrojados embaixadores da fecundidade
prover-se-iam de toda a carne a jeito,
a vantagem não artificial na boca do desmedo
rindo, gulosamente,
contra os padrões.
Não sabendo do exílio
não se sabia do seu paradeiro
a loucura espalhada pelos átomos de todo o chão
chamando pelos fugitivos desamparados
seduzindo-os com a armadilha do fingimento.
E eles
já não sabiam
se era de exílio que cuidavam apascentar
ou se era apenas o idioma estilhaçado.
A fábrica ao longe,
marcando
o horizonte que separa do desconhecido,
moderava as sílabas
que medravam das bocas famintas.
Não era o túmulo onde,
serenos,
druidas esquecidos
povoavam a errática condição.
Os vultos não consentiam a identificação.
Ninguém anda pela rua
a perguntar os nomes.
[Crónicas do vírus, DCCXCII]
Legados da peste (108):
não fosse errática a peste
maus não seriam
os ofícios dos regentes
(segundo o estalão benevolente).
[Crónicas do vírus, DCCXCI]
Legados da peste (107):
pandemia-pandemónio
um leve travo
a manicómio.
Os nomes não eram surdos.
Plantados contra as ervas daninhas
cresciam pelo mosto do orvalho
desmentindo os oráculos sombrios.
De cada vez que vinham à boca
eram resgatados ao desaparecimento
e ficavam a adejar sobre a impossibilidade
como se fossem elixires à mão
irrecusáveis convites para ladrões de almas.
Na contingência da estrada sem noite
marcávamos os olhos com areias vivas
e sabíamos
que um destes dias os frutos colhidos
dariam conta da nossa safra.
Até lá
jogávamos os nomes contra os estilhaços do dia
amparados pelas mãos invioláveis
e pelo verbo
que só as nossas bocas sabiam entoar.
[Crónicas do vírus, DCCXC]
Legados da peste (106):
a peste terça as garras
e espreita
com seu insidioso estar.
Um tempo perdido
arrancado ao céu embaciado
jura que não será repetido.
Os tiranos sem punição
com a bênção de deuses ínvios
mastigam almas sem guarida.
Tiram à sorte a sua cautela
súbditos sem fala
enquanto olham, passivos, o devir.
[Crónicas do vírus, DCCLXXXIX]
Legados da peste (105):
um passo atrás
serve para
depois
dois à frente?
[Crónicas do vírus, DCCLXXXVIII]
Legados da peste (104):
há sempre tempo
para dar um passo atrás.
Não há mudez por antecipar.
É o Evereste de todos os dias
a fala imperativa
o estorvo derradeiro
à solidão.
Não se conjugam verbos
no nevoeiro que tudo embacia:
contadas as sílabas
com o vagar da indolência
sobra um tudo imenso
à conta da narração.
A fala fica
então
à espera da comenda
antes que o sangue se cale.
Lá fora
novembro tardio.
De uma árvore à espera da nudez
o outono repara
no grasnar de uma ave.
Já anoitece
a uma hora gentil no Verão.
Não se enlouquece
nas cortinas desamparadas
que são a estiva do dia.
Seja o isco da temporada invernal
a hibernação fingida no temor das tempestades;
tanta embriaguez dos elementos
joga-se contra a pele impreparada
e as varandas medem a estultícia dos homens.
Não sei da torre de Babel.
Às tantas
anda perdida no estômago de um labirinto
e as vozes que emudecem
podiam ser portadoras de tanta tinta;
mas os vultos
querem ser perenes
ornamentar os sonhos
esperar
pelas preces ditadas por combinações improváveis
enquanto os peixes fogem do isco
e das uvas quase podres
se lobriga um vinho de paranças singulares.
Desajeitado
não me proponho à dança.
Quisessem outras artes
(murmuro
sem disfarçar o esgar de ironia).
Se atravessarmos o canal
medindo o peso de cada onda
deixaremos em doação uma parte de nós.
Desminto o novembro farsante:
as páginas estavam perdidas
a meio da ferrugem que tingiu as palavras
e a mudez passou a ser critério.
De mim não escutarão
palavras exangues
oráculos imprecisos
o leite diuturno em cabazes de pele
estrofes desarrumadas na tirania da métrica
juras sem filamento
ou almocreves em desvario.
Se a estas desmodas me dou
sei que de mim não se espera hipoteca.
É o que o novembro a destempo
ajuramenta.