[Crónicas do vírus, DCCCXXIX]
Legados da peste (145):
os braços atirados
em riste
contra as promessas
de passado.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, DCCCXXIX]
Legados da peste (145):
os braços atirados
em riste
contra as promessas
de passado.
A metáfora cantada
na consequência do dia
atualiza a pele antecipada.
Das rugas não há inventário:
o espelho está partido
e a linhagem do tempo
é o esquecimento.
[Crónicas do vírus, DCCCXXVIII]
Legados da peste (144):
a lava torrencial
enfim cristalizada
ou o disfarce de um disfarce
em forma de logro (disfarçado)?
[Crónicas do vírus, DCCCXXVII]
Legados da peste (143):
pandemia ou endemia:
jura de alívio
ou apenas o jogo da semântica?
Podia ser
a fuligem que açaima o mar
a insaciável sede de maresia
ou apenas
o embaraço de ser.
Podia ser
um beijo sem cor
a temperar o rosto melancólico
e as temporadas não seriam vãs
no seu improvável presságio.
Fossem as palavras castelos sem sombra
e a fala um idioma sem segredos
todos os versos combinariam com a manhã
e
por fim
os mastins seriam calados.
Sem que fossem promessas à espera
o caudal servia de paramento para as juras
e de véspera em véspera
Aas mãos incansáveis seriam mestras do dia.
Até que
enfim
o céu consumido pelo ocaso
já não fosse um segredo sem cofre
e as rimas
fossem o lugar possível da fala.
[Crónicas do vírus, DCCCXXV]
Legados da peste (141):
uma tela
tão impressionista
que é tatuagem imorredoira.
A lava rejeita a pele
como tatuagem.
Deixa para a erupção
o magma tangencial
que sobe aos olhos lívidos
antes que a tarde suba
num frémito peregrino.
As casas são feitas de papel
– diz-se por aí
como se o pranto não tivesse
lágrimas.
Somos irrisórios
e disso
é que podemos ter a certeza.
[Crónicas do vírus, DCCCXXIV]
Legados da peste (140):
os muitos véus
sobrepostos
num labirinto sem mapa.
[Crónicas do vírus, DCCCXXIII]
Legados da peste (139):
a porta dos fundos
outra vez
(quando
já tinham jurado o Éden
precipitadamente).
Se as pessoas conhecessem os gatos
não diriam
“caga nisso”,
como quem diz
não dês importância ao sucedido
ele faz-se esquecer por si mesmo.
Se as pessoas conhecessem os gatos
saberiam
que os gatos escondem o que cagam
para não deixarem vestígios
à sua passagem.
[Crónicas do vírus, DCCCXXII]
Legados da peste (138):
timoneiros
que não passam de regentes
e regentes
que não têm cepa
de timoneiros.
Não se é novo
na véspera da eternidade.
Uma centelha foge do céu.
Desenha uma estrada de sonhos
e nós,
que novos somos,
anexamos o orvalho pendido das uvas
por sabermos
que é o elixir alojado na pele sem regras.
Nos socalcos a poente
o refrão entoa desde o vale profundo.
Não somos nós a profanar
o austero relógio que encomenda as almas;
deixamo-nos
por conta da vontade
arqueada na frontaria desimpedida
onde se assina o livro de honra.
Não se é novo
na véspera da eternidade;
E o que é a eternidade
se não uma servidão?
[Crónicas do vírus, DCCCXXI]
Legados da peste (137):
tivemos direito
à (todavia dispensável) quota
de homens providenciais.
[Crónicas do vírus, DCCCXX]
Legados da peste (136):
porque será
que disfarce
quase rima
com farsa?
[Crónicas do vírus, DCCCXIX]
Legados da peste (135):
quando nos for devolvido
o que somos
– ou: se nos for devolvido
o que fomos?
[Crónicas do vírus, DCCCXVIII]
Legados da peste (134):
nunca
tão invadidos
foram os narizes
(precondição do Natal).
Seria enxovalho da alma
Aa cobrança à revelia
enquanto os pregões dos eruditos
subiam no estuário das desideias.
O piano gasto era testemunha.
Sem as nuvens como página
as mãos trémulas arriscavam as palavras
à espera de doutrina válida
à espera
da caução sem remorso
como se fosse a antítese da angústia.
Não eram as chuvas de inverno
que desarranjavam o sangue;
a chama entediada jogava-se nos quarteis
os lugares perdidos que não sabiam de chão
nem cortejavam o mapa das almas.
Como não houve enxovalho
as almas não desistiram.
Hoje
falam ao ouvido dos deuses
e ensinam-lhes
em bom idioma
o povoamento das almas.
[Crónicas do vírus, DCCCXVII]
Legados da peste (133):
há máscaras açaimes;
e máscaras
bandeiras da estética.
A ponte
maior
do que o rio.
O estuário
acomoda-se.
É o fotógrafo
da paisagem
adereçada com a ponte.
A ponte
subleva-se
contra as fronteiras.
É poliglota das almas.
Casamenteira
(por que não admiti-lo?).
À ponte
lembra-se
a serventia
quando reparações
a atrasam.
[Crónicas do vírus, DCCCXVI]
Legados da peste (132):
se em vez de atalhos
nos dessem
sol sem giestas
e poemas no adro.
[Crónicas do vírus, DCCCXV]
Legados da peste (131):
a cada curva da peste
um pontapé nos olhos,
cortesia dos regentes.
[Crónicas do vírus, DCCCXIV]
Legados da peste (130):
de adiamento em concessão
transportados
pelo pérfido buço da peste.
A boca sem tamanho
maior do que a boca de um cão faminto
estipula a chuva tardia
no arranjo delicodoce das árvores matinais.
Serve de estuário aos impropérios
diletante juramento das presas de infâmias
ou apenas um enclave
onde se situam as manhãs sem paradeiro
sem toponímia que as salve
sem fruição.
O sangue sincopado mente aos costumes.
A boca fanfarrona desdiz-se
e ninguém toma conta da mitomania.
Pudera.
Os costumes só são bons
se forem useiros no tributo à verdade
por mais que os seus apóstolos
mintam
com os dentes puídos que disfarçam
no impossível esconderijo da boca disforme.
[Crónicas do vírus, DCCCXIII]
Legados da peste (129):
um vai-e-vem
interminável
a perguntar pela resistência.
[Crónicas do vírus, DCCCXII]
Legados da peste (128):
o enxovalho da desconfiança
é o perjúrio da dignidade.
A moratória
espera pela lassidão do tempo.
Não se adiam
se não os coices da alvorada.
Entre as cicatrizes do futuro
e o fingimento do presente
pressente-se
uma máscara descida sobre rostos
amedrontados.