[Crónicas do vírus, DCCCXXXIII]
Legados da peste (149):
as bandeiras
retêm o bolor
dos ventos a desfavor.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, DCCCXXXIII]
Legados da peste (149):
as bandeiras
retêm o bolor
dos ventos a desfavor.
Sai-te a fava
mas encomenda-os
à mesma
antes
que a fava se torne fada
e a fama se converta
em fado.
[Crónicas do vírus, DCCCXXXII]
Legados da peste (148):
empossados como guerreiros
na perene fragilidade
do prélio contra os sicários
que tomam de assalto
o nosso domínio.
[Crónicas do vírus, DCCCXXXI]
Legados da peste (147):
a peste
banaliza-se
e deixa de ser
peste.
(Manifesto da esperança)
Podia dizê-lo
um trilião de vezes
até as palavras
se esgotarem no seu sentido
e, presas à vacuidade,
serem letradas menores
do idioma exaurido.
Podia dizê-lo
modestamente
na austeridade de palavras
que é sua predileta homenagem
antes que,
açambarcadas,
sejam reféns da vulgaridade.
E não,
não digam que
as palavras são imunes
ao gasto.
[Crónicas do vírus, DCCCXXX]
Legados da peste (146):
a memória
é um paradoxo
que convoca o futuro.
A roda dos ventos
vestira-se com o mais fino traje
aquele que se servia
de nobre fazenda
– o traje cerimonioso
que vê a luz do dia
um punhado de vezes.
Apessoada e vaidosa
a rosa dos ventos esperava pelo vento
que se jurava iracundo.
As previsões dos peritos saíram furadas.
E ali ficou a rosa dos ventos
prostrada
refém da melancolia
ao saber que o vento
primara pela inércia.
[Crónicas do vírus, DCCCXXIX]
Legados da peste (145):
os braços atirados
em riste
contra as promessas
de passado.
A metáfora cantada
na consequência do dia
atualiza a pele antecipada.
Das rugas não há inventário:
o espelho está partido
e a linhagem do tempo
é o esquecimento.
[Crónicas do vírus, DCCCXXVIII]
Legados da peste (144):
a lava torrencial
enfim cristalizada
ou o disfarce de um disfarce
em forma de logro (disfarçado)?
[Crónicas do vírus, DCCCXXVII]
Legados da peste (143):
pandemia ou endemia:
jura de alívio
ou apenas o jogo da semântica?
Podia ser
a fuligem que açaima o mar
a insaciável sede de maresia
ou apenas
o embaraço de ser.
Podia ser
um beijo sem cor
a temperar o rosto melancólico
e as temporadas não seriam vãs
no seu improvável presságio.
Fossem as palavras castelos sem sombra
e a fala um idioma sem segredos
todos os versos combinariam com a manhã
e
por fim
os mastins seriam calados.
Sem que fossem promessas à espera
o caudal servia de paramento para as juras
e de véspera em véspera
Aas mãos incansáveis seriam mestras do dia.
Até que
enfim
o céu consumido pelo ocaso
já não fosse um segredo sem cofre
e as rimas
fossem o lugar possível da fala.
[Crónicas do vírus, DCCCXXV]
Legados da peste (141):
uma tela
tão impressionista
que é tatuagem imorredoira.
A lava rejeita a pele
como tatuagem.
Deixa para a erupção
o magma tangencial
que sobe aos olhos lívidos
antes que a tarde suba
num frémito peregrino.
As casas são feitas de papel
– diz-se por aí
como se o pranto não tivesse
lágrimas.
Somos irrisórios
e disso
é que podemos ter a certeza.
[Crónicas do vírus, DCCCXXIV]
Legados da peste (140):
os muitos véus
sobrepostos
num labirinto sem mapa.
[Crónicas do vírus, DCCCXXIII]
Legados da peste (139):
a porta dos fundos
outra vez
(quando
já tinham jurado o Éden
precipitadamente).
Se as pessoas conhecessem os gatos
não diriam
“caga nisso”,
como quem diz
não dês importância ao sucedido
ele faz-se esquecer por si mesmo.
Se as pessoas conhecessem os gatos
saberiam
que os gatos escondem o que cagam
para não deixarem vestígios
à sua passagem.
[Crónicas do vírus, DCCCXXII]
Legados da peste (138):
timoneiros
que não passam de regentes
e regentes
que não têm cepa
de timoneiros.
Não se é novo
na véspera da eternidade.
Uma centelha foge do céu.
Desenha uma estrada de sonhos
e nós,
que novos somos,
anexamos o orvalho pendido das uvas
por sabermos
que é o elixir alojado na pele sem regras.
Nos socalcos a poente
o refrão entoa desde o vale profundo.
Não somos nós a profanar
o austero relógio que encomenda as almas;
deixamo-nos
por conta da vontade
arqueada na frontaria desimpedida
onde se assina o livro de honra.
Não se é novo
na véspera da eternidade;
E o que é a eternidade
se não uma servidão?
[Crónicas do vírus, DCCCXXI]
Legados da peste (137):
tivemos direito
à (todavia dispensável) quota
de homens providenciais.
[Crónicas do vírus, DCCCXX]
Legados da peste (136):
porque será
que disfarce
quase rima
com farsa?
[Crónicas do vírus, DCCCXIX]
Legados da peste (135):
quando nos for devolvido
o que somos
– ou: se nos for devolvido
o que fomos?
[Crónicas do vírus, DCCCXVIII]
Legados da peste (134):
nunca
tão invadidos
foram os narizes
(precondição do Natal).
Seria enxovalho da alma
Aa cobrança à revelia
enquanto os pregões dos eruditos
subiam no estuário das desideias.
O piano gasto era testemunha.
Sem as nuvens como página
as mãos trémulas arriscavam as palavras
à espera de doutrina válida
à espera
da caução sem remorso
como se fosse a antítese da angústia.
Não eram as chuvas de inverno
que desarranjavam o sangue;
a chama entediada jogava-se nos quarteis
os lugares perdidos que não sabiam de chão
nem cortejavam o mapa das almas.
Como não houve enxovalho
as almas não desistiram.
Hoje
falam ao ouvido dos deuses
e ensinam-lhes
em bom idioma
o povoamento das almas.
[Crónicas do vírus, DCCCXVII]
Legados da peste (133):
há máscaras açaimes;
e máscaras
bandeiras da estética.
A ponte
maior
do que o rio.
O estuário
acomoda-se.
É o fotógrafo
da paisagem
adereçada com a ponte.
A ponte
subleva-se
contra as fronteiras.
É poliglota das almas.
Casamenteira
(por que não admiti-lo?).
À ponte
lembra-se
a serventia
quando reparações
a atrasam.
[Crónicas do vírus, DCCCXVI]
Legados da peste (132):
se em vez de atalhos
nos dessem
sol sem giestas
e poemas no adro.
[Crónicas do vírus, DCCCXV]
Legados da peste (131):
a cada curva da peste
um pontapé nos olhos,
cortesia dos regentes.