7.1.22

#2261

[Crónicas do vírus, DCCCXXXIII]

 

Legados da peste (149):

as bandeiras

retêm o bolor

dos ventos a desfavor.

6.1.22

D. Sebastião (com a devida genuflexão)

Sai-te a fava

mas encomenda-os

à mesma

antes 

que a fava se torne fada

e a fama se converta 

em fado. 

#2260

[Crónicas do vírus, DCCCXXXII]

 

Legados da peste (148):

empossados como guerreiros

na perene fragilidade 

do prélio contra os sicários 

que tomam de assalto

o nosso domínio.

5.1.22

#2259

[Crónicas do vírus, DCCCXXXI]

 

Legados da peste (147):

a peste

banaliza-se

e deixa de ser

peste.

(Manifesto da esperança)

Economia das palavras

Podia dizê-lo

um trilião de vezes

até as palavras 

se esgotarem no seu sentido

e, presas à vacuidade,

serem letradas menores

do idioma exaurido.

 

Podia dizê-lo

modestamente

na austeridade de palavras

que é sua predileta homenagem

antes que,

açambarcadas,

sejam reféns da vulgaridade.

 

E não,

não digam que

as palavras são imunes

ao gasto. 

4.1.22

#2258

[Crónicas do vírus, DCCCXXX]

 

Legados da peste (146):

a memória

é um paradoxo

que convoca o futuro.

3.1.22

Rosa dos ventos

A roda dos ventos

vestira-se com o mais fino traje

aquele que se servia

de nobre fazenda 

– o traje cerimonioso

que vê a luz do dia 

um punhado de vezes. 

Apessoada e vaidosa

a rosa dos ventos esperava pelo vento 

que se jurava iracundo. 

As previsões dos peritos saíram furadas. 

E ali ficou a rosa dos ventos

prostrada

refém da melancolia

ao saber que o vento 

primara pela inércia. 

#2257

[Crónicas do vírus, DCCCXXIX]

 

Legados da peste (145):

os braços atirados

em riste

contra as promessas

de passado.

Antes que o futuro seja

A metáfora cantada

na consequência do dia

atualiza a pele antecipada.

Das rugas não há inventário:

o espelho está partido

e a linhagem do tempo

é o esquecimento.

2.1.22

#2256

[Crónicas do vírus, DCCCXXVIII]

 

Legados da peste (144):

a lava torrencial

enfim cristalizada

ou o disfarce de um disfarce

em forma de logro (disfarçado)?

1.1.22

#2255

[Crónicas do vírus, DCCCXXVII]

 

Legados da peste (143):

pandemia ou endemia:

jura de alívio

ou apenas o jogo da semântica?

31.12.21

Confirmação

Podia ser 

a fuligem que açaima o mar

a insaciável sede de maresia

ou apenas

o embaraço de ser.

 

Podia ser

um beijo sem cor

a temperar o rosto melancólico

e as temporadas não seriam vãs

no seu improvável presságio.

 

Fossem as palavras castelos sem sombra

e a fala um idioma sem segredos

todos os versos combinariam com a manhã

por fim 

os mastins seriam calados.

 

Sem que fossem promessas à espera

o caudal servia de paramento para as juras

e de véspera em véspera

Aas mãos incansáveis seriam mestras do dia.

 

Até que

enfim

o céu consumido pelo ocaso

já não fosse um segredo sem cofre

e as rimas

fossem o lugar possível da fala.

#2254

[Crónicas do vírus, DCCCXXVI]

 

Legados da peste (142):

somos de porcelana,

reativos.

#2253

[Crónicas do vírus, DCCCXXV]

 

Legados da peste (141):

uma tela

tão impressionista

que é tatuagem imorredoira.

30.12.21

Sobre a pequenez dos Homens

A lava rejeita a pele

como tatuagem.

Deixa para a erupção

o magma tangencial

que sobe aos olhos lívidos

antes que a tarde suba 

num frémito peregrino.

As casas são feitas de papel 

– diz-se por aí

como se o pranto não tivesse

lágrimas.

Somos irrisórios

e disso

é que podemos ter a certeza.

#2252

[Crónicas do vírus, DCCCXXIV]

 

Legados da peste (140):

os muitos véus 

sobrepostos

num labirinto sem mapa.

29.12.21

#2251

[Crónicas do vírus, DCCCXXIII]

 

Legados da peste (139):

a porta dos fundos

outra vez

(quando 

já tinham jurado o Éden

precipitadamente).

28.12.21

Se as pessoas conhecessem os gatos

Se as pessoas conhecessem os gatos

não diriam

“caga nisso”,

como quem diz

não dês importância ao sucedido

ele faz-se esquecer por si mesmo. 

Se as pessoas conhecessem os gatos

saberiam

que os gatos escondem o que cagam

para não deixarem vestígios

à sua passagem.

#2250

[Crónicas do vírus, DCCCXXII]

 

Legados da peste (138):

timoneiros

que não passam de regentes

e regentes

que não têm cepa

de timoneiros.

27.12.21

Eternidade

Não se é novo

na véspera da eternidade.

 

Uma centelha foge do céu.

Desenha uma estrada de sonhos

e nós, 

que novos somos,

anexamos o orvalho pendido das uvas

por sabermos

que é o elixir alojado na pele sem regras.

 

Nos socalcos a poente

o refrão entoa desde o vale profundo.

Não somos nós a profanar

o austero relógio que encomenda as almas;

deixamo-nos

por conta da vontade

arqueada na frontaria desimpedida

onde se assina o livro de honra.

 

Não se é novo 

na véspera da eternidade;

E o que é a eternidade

se não uma servidão?

#2249

[Crónicas do vírus, DCCCXXI]

 

Legados da peste (137):

tivemos direito

à (todavia dispensável) quota

de homens providenciais.

26.12.21

#2248

[Crónicas do vírus, DCCCXX]

 

Legados da peste (136):

porque será 

que disfarce

quase rima 

com farsa?

25.12.21

#2247

[Crónicas do vírus, DCCCXIX]

 

Legados da peste (135):

quando nos for devolvido

o que somos 

– ou: se nos for devolvido 

o que fomos?

24.12.21

#2246

[Crónicas do vírus, DCCCXVIII]

 

Legados da peste (134):

nunca 

tão invadidos

foram os narizes

(precondição do Natal).

23.12.21

Vitamina

Seria enxovalho da alma

Aa cobrança à revelia

enquanto os pregões dos eruditos

subiam no estuário das desideias.

O piano gasto era testemunha.

Sem as nuvens como página

as mãos trémulas arriscavam as palavras

à espera de doutrina válida

à espera

da caução sem remorso

como se fosse a antítese da angústia.

Não eram as chuvas de inverno

que desarranjavam o sangue;

a chama entediada jogava-se nos quarteis

os lugares perdidos que não sabiam de chão

nem cortejavam o mapa das almas.

Como não houve enxovalho

as almas não desistiram.

Hoje

falam ao ouvido dos deuses

e ensinam-lhes

em bom idioma

o povoamento das almas.

#2245

[Crónicas do vírus, DCCCXVII]

 

Legados da peste (133):

há máscaras açaimes;

e máscaras 

bandeiras da estética.

22.12.21

Ponte cedular

A ponte

maior 

do que o rio.

 

O estuário

acomoda-se.

É o fotógrafo

da paisagem

adereçada com a ponte.

 

A ponte

subleva-se

contra as fronteiras.

 

É poliglota das almas.

Casamenteira

(por que não admiti-lo?).

 

À ponte

lembra-se 

a serventia

quando reparações

a atrasam.

#2244

[Crónicas do vírus, DCCCXVI]

 

Legados da peste (132):

se em vez de atalhos

nos dessem

sol sem giestas

e poemas no adro.

21.12.21

Não contem às criancinhas sob pena de serem acusados de malvadez

No Natal

há circo

 

Há circo

no Natal.

#2243

[Crónicas do vírus, DCCCXV]

 

Legados da peste (131):

a cada curva da peste

um pontapé nos olhos,

cortesia dos regentes.