[Crónicas do vírus, CMLXXXII]
Legados da peste (273):
Os rostos
em vagaroso processo
de re-significação.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
[Crónicas do vírus, CMLXXXII]
Legados da peste (273):
Os rostos
em vagaroso processo
de re-significação.
O poema que morde
calado que seja o sacerdote altivo
e jura
nos olhos marejados que seja
pelo futuro onde esbracejam,
mortiços,
os braços embaraçados.
E de uma casta apurada
seja casta a ideia desembainhada.
[Crónicas do vírus, CMLXXXI]
Legados da peste (272):
Ainda há espelhos
que teimam,
embaciados por máscaras.
São estes dados
certeiros
o desfecho pungente no magma convulsivo
dilacerando os despojos ora arrumados
pacientemente.
Às árvores da Primavera estiolada
não deixemos os braços caídos
no pendor assintomático do verbo mortiço.
Aos primos sem sangue
os avalizados embaixadores do nada
os temerários salteadores sem nome
aqueles foragidos de cemitérios a destempo
os tribunícios de fala escorreita, e solitária
paguem-se
honorários pelo silêncio
a fecunda fala que esbofeteia o idioma órfão
enquanto se espera
que a maré combine com o sol vetusto
e o vento seja sinónimo de espadas cortantes
os corpos trespassados na sua inteireza
até que deles fiquem estilhaços
em forma de alma sem tamanho.
A voz do vulcão
ao colo nas veias tumulares
no atroz congeminar da claridade.
Descomeçam os inviáveis penhores
lagares de angústia deixados órfãos
enquanto se prepara a alvorada.
O desempate das teimas
é jogado na planura onde se enfeita o fértil
e em dez estocadas nos profetas
se deixa um oráculo em seu devido estatuto.
Sobra nas mãos o úbere abundante
sem manual de instruções
apenas
a visível imagem
de um avesso oculto.
O risco de acreditar
na própria sombra
é proporcionalmente inverso
à pujante ilusão de si mesmo.
Nas equações que se terçam
os algarismos dançam sem mapa.
Se a altivez não sorrisse desmedida
o dicionário era capaz de recuperar
a humildade.
[Crónicas do vírus, CMLXXVIII]
Legados da peste (269):
E agora somos
a explosão de nós
desde o promontório
que selou a liberdade.
O prontuário
de manhãs sem nome
sobe nas bocas desassisadas
e compõe
o terno inventário da coragem.
Servirá
em generosas talhadas
o medo antecipatório
que das mãos aguadas
retira os verbos invencíveis.
[Crónicas do vírus, CMLXXVII]
Legados da peste (268):
A queda do açaime
é liberdade exercida em dobro:
uns aliviaram-se da opressão
outros mantêm o direito de o usar.
Sault, “Heart”, in https://www.youtube.com/watch?v=-5OzNTZystM
O sonho que cicia
na fronteira do ouvido
harpeja o crepitar da lareira
sem que da angústia contumaz
o dia tenha entendimento.
Os degraus movem-se
verticais
à medida que os dedos caiam
a silhueta da enseada.
Ouço palavras atropeladas
espanholadamente atropeladas
num grasnar singular
e o barco promete-se ao mar alto.
E quem não tem as suas enseadas?
Pergunto-me
silenciosamente
omitindo o bramido deslimítrofe
arrumando as cortinas que retesam a claridade
se as enseadas não são privados exílios
ocultando a multitudinária fala gongórica.
[Crónicas do vírus, CMLXXVI]
Legados da peste (267):
Tremenda é a empreitada
de que somos
únicos capatazes.
[Crónicas do vírus, CMLXXV]
Legados da peste (266):
Caíram os açaimes,
longa vida
à beleza e à feiura!
O tratado das coisas
envergonha compêndio
de páginas amarelecidas
embota o rugido das feras
na sincronia das falas sem dicionário.
Trago tratado o dilema
e sem bolçar a digestão dos tempos
arremeto as cores contra o silêncio
neste lugar
que está entre mim
e um outro eu sem paradeiro.
Azulam-se as abóbadas do olhar
em acetinadas colheres que bebem o mar
e no provérbio que dá de viver às almas
arrisco uma vírgula a destempo
arrisco o deleite do provérbio despedaçado.
As coisas tratadas
desembaraçam-se em páginas avulsas
páginas ainda luminosas
dando corda ao mutismo dos timoratos
na divergência das oratórias maduras.
[Crónicas do vírus, CMLXXIV]
Legados da peste (265):
Tudo
não passou
de um pesadelo
que se demorou
numa passerelle encarvoada.
[Crónicas do vírus, CMLXXIII]
Legados da peste (264):
As pessoas
ganharam
(e de vez?)
vergonha na cara.
[Sobre os efeitos duradouros do açaime]
Passei por um autocarro
ia para “Sonhos”.
Não sabia de um lugar
que dá pelo nome de sonhos,
o que ditará
de seus habitantes
serem sonhadores.
Sem nenhuma altercação do pensamento
nem figuração de fingidores a preceito.
Se a alguém
forem visitação assídua
os pesadelos
aconselha-se
temporada nos sonhos
para os habilitar
em detrimento dos pesadelos tentaculares.
Estou convencido:
os antepassados deram nome de sonhos
a este lugar
para um exílio haver
para os fustigados por pesadelos.
[Crónicas do vírus, CMLXXII]
Legados da peste (263):
A comédia
torrencialmente precipitada
sobre a angústia.
Peçam
uma lavagem cerebral
um imorredoiro compêndio de instruções
semáforos diligentemente semeados
em todos os cruzamentos
instruções sobre como ser e atuar
e até como devem proceder
quando as hormonas convidam ao sexo.
Peçam
regulamentos e leis e posturas
e decretos-regulamentares
e uma miríade de regras minuciosas
todas as possibilidades da vida
tatuadas no sortilégio do dedo regulador.
Peçam
para haver regentes em vez de pais
(ou regentes substituindo-se aos pais)
obediência religiosa a uma bandeira
educação meticulosa pelos mestres de escola
dando seguimento à bitola das autoridades
e peçam, ainda,
para as autoridades não se esquecerem
da exibição do poder de império
substituindo-se
a páginas tantas
por autoritários
(que o povo madraço adora “pulso forte”
como se fosse preciso
para um qualquer onanismo místico
que cavalga no poder dos regentes).
Peçam
para tutelarem eufemismos
que escondam farsas bem disfarçadas
e, ato contínuo,
atirem toda a areia do Saara para os olhos
até que a capacidade de inteleção dos súbditos
fique presa por arames.
Nesta altura
não se esqueçam
de pedir
o boletim de voto
e repitam
de preferência,
todo o antecedente.
[Crónicas do vírus, CMLXXI]
Legados da peste (262):
A pedra sobre o assunto
é à prova
de estilhaços?
O verbo na trave
não vá o velho improvável
acertar no buraco da agulha
e ao longe perceber
as pestanas das cortinas
que desviam o olhar para os subúrbios.
Nunca se dispensem
as mãos audazes que se metem
na frente dos provérbios sentenciais.
O guarda-redes abstrato
é um seguro de vida,
perene.
Às vezes
é como se precisasse
de fazer a vindima
o corpo sentido por excesso
e antes que de excessos mais
se encolerize
refém dos meus próprios degraus
habilito o silo com as sobras de mim
para memória futura.
Outras vezes
sento-me no miradouro colateral
e dou de mim à vontade
sem pejo
os fragmentos
os visíveis e os ocultos
no aleatório desconspirar que arremete
basilar
nos socalcos do futuro.
Não fosse o zero
as arestas quadradas
seriam gelo sobre as feridas
o milhão inteiro de profecias
sem dívida por legado
sem vestígios das lágrimas
abandonadas.
Por esconder
o que de mais feio se contém
no humano corpo,
ao sapato
devia ser aposta a comenda
de património da humanidade.
[Crónicas do vírus, CMLXVII]
Legados da peste (258):
Já pouco tempo falta
para reaprendermos
os rostos.
O caminho do silêncio
arroteia marés hasteadas em breve
no descolorido cenário habitado por vultos.
Na gramática do silêncio
contam todas as sílabas
para o apuro dos déspotas.
Descombinam-se os álibis
na congeminação perfeita dos fingimentos
sem cesuras ou outros pespontos
à espera dos promitentes do verbo hausto
à espera
dos mantimentos especulados
nas janelas que tecem suas próprias paisagens.
No caminho do silêncio
nem o arvoredo cicia
e não é pelo vento que se ausentou.
Do silêncio a caminho
o poema que exulta
em frações diferidas do vocabulário loquaz
a mirífica palavra
regida pelas ameias da alma.