Ninguém vai preso
por ter cão
ou pela sua ausência.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
És uma bruxa,
ou és uma bruxa,
Derruído pelo abismo do tempo?
Uma bruxa que resfolega o mirante
sucedâneo de morteiro andante
morteiro mortal
morteiro mortal
(como se a musicalidade das sílabas
se abraçasse numa tela hedionda
onde está vertida a venalidade da espécie).
Bruxas
somos todos?
Se demandássemos um compasso,
um compasso comprovado
pelas entidades regulamentadoras,
diria de nós o compasso
que somos bruxas,
depravadas na exaustão que rima
com autofagia.
Espantam-se até os espantalhos,
primos diletos de todas as bruxas,
avoengos das rezes lisérgicas
que compõem a paisagem sem nome.
Pedem
que não se sonegue
a curadoria dos estultos.
As manhãs correm no seu tempo.
Cada feixe de luz
devora a letargia herdada da noite.
Não são os olhos estremunhados
que depõem o dia emergente.
De cada vez
que as veias incendeiam o sangue
abre-se a escotilha por onde espreitam
os mais ácidos marinheiros
da vida.
Não se intimida o espírito
com os laivos de apatia somados ao tempo;
o fogo que levita no magma
cuida dos preparos do dia
inventariando-o como porta-voz
de um saber viver
que não se aprende nos compêndios.
A poeira não sobe à boca:
não está vento de feição
e neste cais
as paredes são fortaleza.
Os tumultos desfazem-se na maré
elidindo os sobressaltos com escritura
dissolvidos num nada sem vestígios por dentro.
Sem os olhos embaciados
a transgressão esconjura-se
e ficam por contar as centelhas venais
contra as miosótis promitentes
e as páginas esplêndidas que amanhecem
a despeito dos maus prognósticos.
Os rostos
amontoam-se nas esquinas da memória.
Não falam:
passeiam as suas expressões sintomáticas
com a ajuda de sucessivas camadas de silêncio,
a proverbial consumição das palavras vãs.
As folhas das árvores ainda não estão caducas.
Resistem
como só os espíritos enraizados sabem resistir.
Daqui a uns meses
quando as folhas cadáveres derem à estampa
saber-se-á da linhagem das gentes
se conservam a volumetria de deuses improváveis
ou se capitulam
na sincera decadência da sua fragilidade.
Um astrolábio rudimentar
como oráculo:
se fossem visíveis
as constelações apareciam
com os nomes de flores
e os nomes outros seriam
imitação das constelações.
Dizias:
não quero outro paradeiro
a não ser as tuas mãos desordeiras
e eu concordava;
os molhos de jasmim
cuidavam da minha estultícia,
a estultícia
(julgava eu)
irremediável,
à mercê do teu patronato diligente
em forma de dissolução desse mal.
Teríamos estrelas de atalaia
no intenso precipício acobreado
o breve flúmen pendido no fundo
quase renunciável
quase martirizado pelo estio a desoras.
Sabes:
remexi a terra emoliente com as mãos nuas,
nem parece meu, eu sei,
e de lá trouxe os miríficos saberes
que não se cuidam em compêndios vetustos.
Se as constelações arcarem os nomes de flores
sabê-las-ei de cor
mesmo nada sabendo sobre as flores
que têm esses nomes.
Sossegas-me
contemplativamente juntando ao havido
que esses são nomes furtivos
como se pertencessem à curadoria
das estrelas-cadentes.
Os ecos
património ou destroços
em equação que sinaliza
a vontade desembaraçada.
Os ecos:
o que fazes com eles
é gramática que é teu assunto
fabulosa erupção sem som.
Desse estendal
retira para o lado
as mentiras sem quartel.
Os estilhaços do Verão
juntam-se às algas
em despojos onde a maré termina.
Os espíritos estivais protestam:
o Verão devia ser mais duradouro
apesar dos corpos suados
das noites de sono embaciado
das ideias anestesiadas
do torpor hasteado em nome do cansaço
herdado do tempo precedente
ou talvez
apenas por causa
da indolência que não paga multa
na demorada temporada
do mui constitucional direito ao ócio.
Os estilhaços do Verão
pressentem a temporada consecutiva
o rame-rame outra vez
o adiamento das coisas que importam
a perene sensação da exiguidade do tempo
a sensação de tirania
exercida sobre quem da faina precisa
para manter o pescoço acima da linha de água
(um eufemismo para a sobrevivência).
O terrível nariz de mostarda
espera pela suite prometida
pois
aos odores não se atraiçoa o delido.
O palco não se desfaz nas paredes caiadas
se ao alpendre subirem as divindades perdidas:
pratique-se à besta casmurra
o mesmo destrato que aos tiranetes:
colheres de mostarda de Dijon a esmo
até as veias do cérebro se esgotarem
nos filões ávidos de ideias
lisérgicas.
Os idiomas falavam à vez.
As bocas procuravam nomes
como quem encontra uma morada.
O dia era o espelho das traduções.
Nada ficava por entender
não por falta de correspondência
entre os idiomas.
Alguém supôs um idioma universal
mas todos recusaram a intenção.
A língua franca
condenava os idiomas à insignificância.
Todos
(menos os eruditos do idioma franco)
baniam as intenções
que baniam a biodiversidade das línguas.
Os idiomas falavam à vez.
Mas falavam todos
uns com os outros.