Deixas na cela
a veia sem sela
a ideia que se sela.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Um murmúrio do Outono
conta com a chuva morna
vertida pelo céu pendido.
É uma chuva
que mente ao calendário
e diz aos costumes:
os marcos geodésicos do tempo
são arbitrárias convenções.
A chuva inaugural
desmentindo o Verão em seu lugar
amacia a pele gasta pelo sol repetido
em presságio outonal.
Sentado nos lugares da frente
deixando
o corpo experimentar a chuva destemida
como se houvesse um chamamento
pela dobra do Verão:
a chuva,
dizem uns protestos ecoados
por vozes em surdina,
foi proclamada a destempo,
cicia
as páginas que são uma profecia
arrancando outras de permeio
em ligação direta
com um tempo que está à espera de tempo.
Se é da fortuna
o relógio andante
gabo-me da safra
na colheita da medida
do tempo.
Se é do acaso
ou da temperança
dos dias sucessivos
não tenho modo
de atestar.
Se é das mãos
que se metem,
fundas,
no chão húmido
em demanda da fortuna
podem testemunhas válidas
certificar em boa memória;
e se é do porvir
que despendo o tempo servil
deixando ao proveito do olvido
o denso passado em lei de bronze
inscrevo no percentil das hipóteses
o rosto parcimonioso
que espera
sem denunciar o destempo de outros
o poema vivo que espreita
sobre a varanda que deixa ver
o esvoaçar dos dias sucessivos.
Não se aleguem
barrigas de misérias,
não vá cair o libelo
de body shaming.
[Continuação do #2518 por outras palavras]
Ah!
se ao menos
o Instituto Nacional de Estatística
fosse amestrado.
O Instituto Nacional de Estatística
teimosamente
bolça números ingratos,
números que causam desprazer nos regentes.
[Inspirado em Auden]
Em reparações convulsivas,
os arrependimentos.
Não choram as lágrimas
ausentes:
fingem
no fingimento irresponsável
de quem é intencionalmente farsante
do passado.
No fim do ciclo
tudo fica por reparar,
pese embora convicção usada,
pois o irreparável apenas se adestra
com o jugo do futuro.
Neste matadouro colossal
que é o teatro
onde somos matéria pública
não há direito a segundas hipóteses.
Às páginas do calendário
penhores máximos da crueza do tempo:
antes desfocadas,
vasos sanguíneos por onde desfila
o tremendo apetite que esconjura
o medo.
Dizemos
em brandos sinais
que um teatro herético que absorve a geografia
a abundante lógica sem formalização
ou apenas
a telúrica palavra
que abranda as dores que destilam o corpo.
As ideias passeiam
insubmissas
no copo que recebe os lábios em ebulição:
parecem folhas outonais
desarrumadas
por um vento que entoa a tempestade
vão e veem no indeclarado óbito dos soezes
desautorizados artesãos que esculpem
o céu perenemente plúmbeo.
Tomo o dia
como pressentimento de mim
e julgo
com as armas retóricas que não tenho
as relíquias que esperam pela minha feição.
Se as mãos
não servem para agarrar o dia
antes nos destinem a proibição do modo
o intempestivo flagelar que lembra,
com a persuasão da dor que de nós se abraça,
que somos filhos pródigos
da vontade que se agiganta
nos poros suados.
Quem sobra da catástrofe silenciosa
quem se opõe à vertigem dos argutos
da perseguição dos rostos irreferendáveis
dos povoadores de ideias sem paternidade?
As laranjas secas
fruem nas planícies decadentes.
Os latidos rompem a placidez da madrugada
entoados por sacerdotes sem séquito
em alvoroço
pela ausência das estatuárias credenciais
em vez da orfandade que os segue.
Sobram do vento futuro
as profecias que não cobram rostos
a matéria puída dos filamentos frágeis
que são os vasos capilares que mantêm
vidas sem biografia.
A janela não é nada
se não se abrir
para uma rua formosa.
A janela não é nada
se corromper o silêncio.
A janela
não é nada.
A não ser
que esbraceje a manhã sumptuosa
e no teatro fundacional
perfume a casa com o aroma
inaugural.
És uma bruxa,
ou és uma bruxa,
Derruído pelo abismo do tempo?
Uma bruxa que resfolega o mirante
sucedâneo de morteiro andante
morteiro mortal
morteiro mortal
(como se a musicalidade das sílabas
se abraçasse numa tela hedionda
onde está vertida a venalidade da espécie).
Bruxas
somos todos?
Se demandássemos um compasso,
um compasso comprovado
pelas entidades regulamentadoras,
diria de nós o compasso
que somos bruxas,
depravadas na exaustão que rima
com autofagia.
Espantam-se até os espantalhos,
primos diletos de todas as bruxas,
avoengos das rezes lisérgicas
que compõem a paisagem sem nome.
Pedem
que não se sonegue
a curadoria dos estultos.
As manhãs correm no seu tempo.
Cada feixe de luz
devora a letargia herdada da noite.
Não são os olhos estremunhados
que depõem o dia emergente.
De cada vez
que as veias incendeiam o sangue
abre-se a escotilha por onde espreitam
os mais ácidos marinheiros
da vida.
Não se intimida o espírito
com os laivos de apatia somados ao tempo;
o fogo que levita no magma
cuida dos preparos do dia
inventariando-o como porta-voz
de um saber viver
que não se aprende nos compêndios.
Uma fotografia
arrependimento venal
tirania da memória
bebida no sangue diuturno
nas danças demenciais
nos dias furtivos
escondidos da História.