Dos chás
em possibilidade referencial
cheias ainda as chávenas
que por endereço têm
almas outras.
[Londres]
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Dos chás
em possibilidade referencial
cheias ainda as chávenas
que por endereço têm
almas outras.
[Londres]
Mentir para viver
a praça-forte do resignado
disfarce que já nem é
fingimento
acorrentando num palimpsesto
de paralelas inverdades
sem se constituir arguido
por mitomania.
Mentir para viver:
ou não saber
que a mentira vem no dicionário
e não se subleva
contra os seus patriarcas.
Na boca
o meu corpo
um vulcão pária
onde a tua pele se tatua
na certeza que é amanhã.
Se ao menos
hoje
houvesse um vulcão ativo
só para cobrir os olhos
com a cinza.
Se ao menos
do sangue vívido fruíssem
peixes
– eu lá sei se peixes –
e um detonador ressuscitasse o zero
e desse zero subissem montanhas
o punho irado a remexer o céu
e dele,
indisposto,
um vulcão do avesso
bolçasse a sua lava amoedada.
Hoje
só hoje
até que a fratura dos dias
dissesse
em murmúrio sortílego
que as migalhas do medo
não contam para o PIB
nem as realezas defuntas
passam das páginas amarelecidas
em que se sepultam.
Do pé do precipício
com paisagem improvável a beijar os olhos
sacudimos as cinzas que os embotaram
e de alma lavada
as mãos tingindo o céu com uma cor despoluída
dizemos o que dantes não foi dito
e dançamos
– ah! sim, dançamos! –
para povoar o sangue com a História do futuro.
Toda esta gente
tanto este arrependimento
todas as luzes desfocadas
talvez o areópago indesejado.
Todo o penhor desalmado
tanta a ferrugem na boca
todos os remédios fingidos
talvez a suposição de um abismo.
Toda esta fala
tanto o silêncio
todas as estrofes permeáveis
talvez na abastança das almas.
Todo o critério exilado
tanta a bravata improfícua
todos os dedos altivos
talvez a noite aberta aos audazes.
Um murmúrio do Outono
conta com a chuva morna
vertida pelo céu pendido.
É uma chuva
que mente ao calendário
e diz aos costumes:
os marcos geodésicos do tempo
são arbitrárias convenções.
A chuva inaugural
desmentindo o Verão em seu lugar
amacia a pele gasta pelo sol repetido
em presságio outonal.
Sentado nos lugares da frente
deixando
o corpo experimentar a chuva destemida
como se houvesse um chamamento
pela dobra do Verão:
a chuva,
dizem uns protestos ecoados
por vozes em surdina,
foi proclamada a destempo,
cicia
as páginas que são uma profecia
arrancando outras de permeio
em ligação direta
com um tempo que está à espera de tempo.
Se é da fortuna
o relógio andante
gabo-me da safra
na colheita da medida
do tempo.
Se é do acaso
ou da temperança
dos dias sucessivos
não tenho modo
de atestar.
Se é das mãos
que se metem,
fundas,
no chão húmido
em demanda da fortuna
podem testemunhas válidas
certificar em boa memória;
e se é do porvir
que despendo o tempo servil
deixando ao proveito do olvido
o denso passado em lei de bronze
inscrevo no percentil das hipóteses
o rosto parcimonioso
que espera
sem denunciar o destempo de outros
o poema vivo que espreita
sobre a varanda que deixa ver
o esvoaçar dos dias sucessivos.
Não se aleguem
barrigas de misérias,
não vá cair o libelo
de body shaming.
[Continuação do #2518 por outras palavras]
Ah!
se ao menos
o Instituto Nacional de Estatística
fosse amestrado.
O Instituto Nacional de Estatística
teimosamente
bolça números ingratos,
números que causam desprazer nos regentes.
[Inspirado em Auden]
Em reparações convulsivas,
os arrependimentos.
Não choram as lágrimas
ausentes:
fingem
no fingimento irresponsável
de quem é intencionalmente farsante
do passado.
No fim do ciclo
tudo fica por reparar,
pese embora convicção usada,
pois o irreparável apenas se adestra
com o jugo do futuro.
Neste matadouro colossal
que é o teatro
onde somos matéria pública
não há direito a segundas hipóteses.
Às páginas do calendário
penhores máximos da crueza do tempo:
antes desfocadas,
vasos sanguíneos por onde desfila
o tremendo apetite que esconjura
o medo.
Dizemos
em brandos sinais
que um teatro herético que absorve a geografia
a abundante lógica sem formalização
ou apenas
a telúrica palavra
que abranda as dores que destilam o corpo.
As ideias passeiam
insubmissas
no copo que recebe os lábios em ebulição:
parecem folhas outonais
desarrumadas
por um vento que entoa a tempestade
vão e veem no indeclarado óbito dos soezes
desautorizados artesãos que esculpem
o céu perenemente plúmbeo.
Tomo o dia
como pressentimento de mim
e julgo
com as armas retóricas que não tenho
as relíquias que esperam pela minha feição.
Se as mãos
não servem para agarrar o dia
antes nos destinem a proibição do modo
o intempestivo flagelar que lembra,
com a persuasão da dor que de nós se abraça,
que somos filhos pródigos
da vontade que se agiganta
nos poros suados.
Quem sobra da catástrofe silenciosa
quem se opõe à vertigem dos argutos
da perseguição dos rostos irreferendáveis
dos povoadores de ideias sem paternidade?
As laranjas secas
fruem nas planícies decadentes.
Os latidos rompem a placidez da madrugada
entoados por sacerdotes sem séquito
em alvoroço
pela ausência das estatuárias credenciais
em vez da orfandade que os segue.
Sobram do vento futuro
as profecias que não cobram rostos
a matéria puída dos filamentos frágeis
que são os vasos capilares que mantêm
vidas sem biografia.
A janela não é nada
se não se abrir
para uma rua formosa.
A janela não é nada
se corromper o silêncio.
A janela
não é nada.
A não ser
que esbraceje a manhã sumptuosa
e no teatro fundacional
perfume a casa com o aroma
inaugural.