19.9.22

O Homem como lobo de si mesmo

Arranca-se a voz trémula

aos peões que aparecem à frente

em substituição das covardia

dos mandantes.

Eram a carne para canhão

hoje

são a carne e os ossos e o sangue

e almas

em dádiva

aos arsenais perfidamente sofisticados.

 

De um golpe só

o pensamento estaciona na angústia

de quem sabe

tanta ser a lucidez dos Homens

em proveito de totens que tornam

ridiculamente nula

a vida do Homem sem nome 

– em proveito dos soezes 

que não sabem que os Homens têm nome.

 

Aos soldados

devia-se ensinar

a saberem soletrar os seus nomes

e meia dúzia de artigos

(apenas os mais distintos)

da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Para que o Homem

todo o Homem que tem um nome

e uma alma não venal

não tenha de derramar a angústia

ao saber de todas as terras

onde o sangue vertido 

tomou o lugar

das lágrimas.

Para que esse Homem,

todo e sem exceção Homem,

não se esqueça do seu nome.

 

Para que não haja 

soldados

apenas Homens.

#2529

Delírios místicos 

– dizia, ufano

Convencido do que fora

Património pretérito;

não precisava de ter como morada

o hospital psiquiátrico.

 

[“Pára-me de repente o pensamento”, de Jorge Pelicano]

18.9.22

Concurso

Dos jacarandás

o verbo irradiante

uma centelha 

que adormece as trevas

o curso de um rio

de onde mana o ar sem areias

o decilitro cheio

sem se disfarçar de meias medidas

a fronteira desaproveitada

no caudal de calendários

que aformoseia 

um dia 

sozinho. 

No estábulo das ideias

o jacarandá acabou de florir

e eu sei

que por maior prodigalidade que seja

ninguém se encontra 

nem nas bainhas descosidas

nem no centímetro a mais,

condenado 

ao desperdício. 

#2528

Dos chás

em possibilidade referencial

cheias ainda as chávenas

que por endereço têm

almas outras. 

 

[Londres]

17.9.22

Mentir ou viver

Mentir para viver

a praça-forte do resignado

disfarce que já nem é 

fingimento

acorrentando num palimpsesto 

de paralelas inverdades

sem se constituir arguido 

por mitomania. 

 

Mentir para viver:

ou não saber 

que a mentira vem no dicionário

e não se subleva 

contra os seus patriarcas.

#2527

A resina nas mãos

divide o dia

em hemisférios não calafetados.

16.9.22

Injustiças indocumentadas (18)

Desconfio

que um rasgado elogio

é um elogio rasgado.

Injustiças indocumentadas (17)

Se há um Porto Santo

que agravo cairá

sobre o outro Porto?

#2526

E agora

que o luar emudeceu

dizemos que o mar

é composto pelo nosso olhar.

15.9.22

Cassiopeia

 

Ólafur Arnalds, “The Invisible Front”, 
in https://www.youtube.com/watch?v=9yfL28dhedc

Na boca

o meu corpo

um vulcão pária

onde a tua pele se tatua

na certeza que é amanhã.

Acerto de contas

Se ao menos

hoje

houvesse um vulcão ativo

só para cobrir os olhos

com a cinza.

Se ao menos

do sangue vívido fruíssem

peixes 

– eu lá sei se peixes – 

e um detonador ressuscitasse o zero

e desse zero subissem montanhas 

o punho irado a remexer o céu

e dele, 

indisposto,

um vulcão do avesso

bolçasse a sua lava amoedada.

Hoje

só hoje

até que a fratura dos dias

dissesse

em murmúrio sortílego

que as migalhas do medo

não contam para o PIB

nem as realezas defuntas

passam das páginas amarelecidas

em que se sepultam.

Do pé do precipício

com paisagem improvável a beijar os olhos

sacudimos as cinzas que os embotaram

e de alma lavada

as mãos tingindo o céu com uma cor despoluída

dizemos o que dantes não foi dito

e dançamos

– ah! sim, dançamos! – 

para povoar o sangue com a História do futuro.

#2525

A vela permanente:

o mar que se sente

no mal que se lamente.

14.9.22

Audazes (ode)

Toda esta gente

tanto este arrependimento

todas as luzes desfocadas

talvez o areópago indesejado.

Todo o penhor desalmado

tanta a ferrugem na boca

todos os remédios fingidos

talvez a suposição de um abismo.

Toda esta fala 

tanto o silêncio

todas as estrofes permeáveis

talvez na abastança das almas.

Todo o critério exilado

tanta a bravata improfícua

todos os dedos altivos

talvez a noite aberta aos audazes.

#2524

Deixas na cela

a veia sem sela

a ideia que se sela.

13.9.22

#2523

Um grito

que emudece

na tempestade diuturna.

12.9.22

O Outono prematuro

Um murmúrio do Outono

conta com a chuva morna

vertida pelo céu pendido. 

 

É uma chuva 

que mente ao calendário

e diz aos costumes:

 

os marcos geodésicos do tempo

são arbitrárias convenções. 

 

A chuva inaugural

desmentindo o Verão em seu lugar

amacia a pele gasta pelo sol repetido

em presságio outonal. 

 

Sentado nos lugares da frente

deixando

o corpo experimentar a chuva destemida

como se houvesse um chamamento

pela dobra do Verão:

 

a chuva,

dizem uns protestos ecoados

por vozes em surdina,

foi proclamada a destempo,

cicia

as páginas que são uma profecia

arrancando outras de permeio

em ligação direta 

 

com um tempo que está à espera de tempo. 

#2522

Sob o céu derruído

sequestrado por um pesar

lamacento.

11.9.22

#2521

Não cumpro resposta

para as perguntas salinas

e adio a maré

antes que me constitua 

náufrago. 

10.9.22

Homenagem

Se é da fortuna

o relógio andante

gabo-me da safra

na colheita da medida

do tempo. 

 

Se é do acaso

ou da temperança 

dos dias sucessivos

não tenho modo

de atestar. 

 

Se é das mãos

que se metem, 

fundas,

no chão húmido

em demanda da fortuna

podem testemunhas válidas

certificar em boa memória;

e se é do porvir

que despendo o tempo servil

deixando ao proveito do olvido

o denso passado em lei de bronze

inscrevo no percentil das hipóteses

o rosto parcimonioso

que espera 

sem denunciar o destempo de outros

o poema vivo que espreita

sobre a varanda que deixa ver

o esvoaçar dos dias sucessivos. 

#2520

Rasgo

a profecia rarefeita

antes que seja despojo

da minha própria circunstância. 

9.9.22

Injustiças indocumentadas (16)

Não se aleguem

barrigas de misérias,

não vá cair o libelo

de body shaming.

#2519

[Continuação do #2518 por outras palavras]

 

Ah!

se ao menos

o Instituto Nacional de Estatística

fosse amestrado.

#2518

O Instituto Nacional de Estatística

teimosamente

bolça números ingratos,

números que causam desprazer nos regentes.

 

[Inspirado em Auden]

8.9.22

Sobre a inutilidade dos arrependimentos

Em reparações convulsivas,

os arrependimentos.

Não choram as lágrimas

ausentes:

fingem

no fingimento irresponsável

de quem é intencionalmente farsante

do passado. 

No fim do ciclo

tudo fica por reparar,

pese embora convicção usada,

pois o irreparável apenas se adestra

com o jugo do futuro.

#2517

Neste matadouro colossal

que é o teatro 

onde somos matéria pública

não há direito a segundas hipóteses.

7.9.22

Elixir

Às páginas do calendário

penhores máximos da crueza do tempo:

antes desfocadas,

vasos sanguíneos por onde desfila

o tremendo apetite que esconjura 

o medo. 

 

Dizemos

em brandos sinais

que um teatro herético que absorve a geografia

a abundante lógica sem formalização

ou apenas 

a telúrica palavra

que abranda as dores que destilam o corpo. 

 

As ideias passeiam

insubmissas

no copo que recebe os lábios em ebulição:

parecem folhas outonais

desarrumadas 

por um vento que entoa a tempestade

vão e veem no indeclarado óbito dos soezes

desautorizados artesãos que esculpem

o céu perenemente plúmbeo. 

 

Tomo o dia

como pressentimento de mim

e julgo

com as armas retóricas que não tenho

as relíquias que esperam pela minha feição. 

 

Se as mãos 

não servem para agarrar o dia

antes nos destinem a proibição do modo

o intempestivo flagelar que lembra,

com a persuasão da dor que de nós se abraça,

que somos filhos pródigos 

da vontade que se agiganta 

nos poros suados.

Depósito a prazo

O ocaso 

não é a fala do medo

é a véspera da glória 

que se evade dos destroços.

#2516

Nos rostos amanhecidos

o rasto de vulcões

silenciados.

Injustiças indocumentadas (15)

Contrainformação

– e a informação 

não retalia?

6.9.22

As vidas sem biografia (apostilha do anonimato)

Quem sobra da catástrofe silenciosa

quem se opõe à vertigem dos argutos

da perseguição dos rostos irreferendáveis

dos povoadores de ideias sem paternidade?

As laranjas secas 

fruem nas planícies decadentes.

Os latidos rompem a placidez da madrugada

entoados por sacerdotes sem séquito

em alvoroço 

pela ausência das estatuárias credenciais

em vez da orfandade que os segue.

Sobram do vento futuro

as profecias que não cobram rostos

a matéria puída dos filamentos frágeis

que são os vasos capilares que mantêm

vidas sem biografia.