18.10.22

#2558

Ao teu lado

as manhãs 

são boreais.

17.10.22

Extraviado

E se da matança não houver ouvidos

os sentidos rasgados desmaiam no caudal

talvez sangrando as palavras opacas,

este o graal consentido.

O ringue está sempre pronto:

os imprevidentes impérios

tutelam-se nas mangas dos burocratas

tornam-se adultos 

no avesso das páginas remendadas.

As mentiras sobram nas goteiras

cobrem as vidraças com o orvalho demorado

e as pessoas avançam no meio das ilusões

apagadas

como sempre são as pessoas

no fingimento de serem as peças centrípetas

que sobem a palco

ao palco sem residência nem existência certa.

E as palavras

invisivelmente sangradas

escorrem no meio da podridão coeva.

Não se enfastiam

os mecenas do teatro dos fingimentos;

sabem que só são periscópios

enquanto os demais 

forem corsários da grande mentira universal,

a mentira que se entronizou

metáfora da verdade.

#2557

O vento periférico

um avesso que se veste

na rosa servida pela manhã.

Novos horizontes

Colho

na penumbra do outono

as sílabas sortilégio

o almirante miradouro

que levanta do céu embaciado

as cortinas vetustas

e sei

que o outono é promitente

de outonos que não cumprem

o selo da decadência

nele levitando novos horizontes. 

16.10.22

#2556

Obstinados

os poetas bebiam nas palavras

a lava que arrefecia o sangue.

15.10.22

Injustiças indocumentadas (30)

Quando chove

molha-tolos

só mesmo os mesmos

saem à rua.

#2555

Ouvir as nuvens

em seu sereno vagar

e extrair dos sonhos

os medos de atalaia.

14.10.22

Casa de penhores

Desse palco soube distância. 

O povoado sabia-se torto

sem ser pela impureza 

a dissidência:

as fragas 

sussurravam na esquina do Outono

e a linhagem das palavras entoadas

soava a farsa invalidada

pela muralha da cidade. 

 

Mas o Outono era tardio. 

 

O ciciar do caudal dele dizia ser timorato

um pouco como as bocas 

que eram parentes da afoiteza

mas não passavam da medida pequena

assim encerrando-as 

na sua soez descapacidade. 

 

Ao menos

à noite 

ninguém via rostos e bocas e rio

e até os murmúrios se metamorfoseavam

em silêncios. 

#2554

Sobre 

a matéria dos sonhos

a súplica do olvido.

13.10.22

Testa-de-ferro

A voz perdeu as sílabas

mas não se calou.

Os calos da boca

enchem-se de brio

e resistem

resistem ao veneno bolçado

pelos apátridas que desadoram 

a liberdade.

#2553

Em dívida 

pela dádiva devida

no rumor 

da dádiva da dívida.

12.10.22

Estado de sítio

Estado de sítio:

tomamos a convulsão como verbo

reféns do imorredoiro protesto

contra o estado das coisas. 

Consideramos:

é da natureza das coisas

a sublevação 

contra a natureza das coisas

pois as coisas

em sua natureza

seriam destinadas ao malogro

se de nós soubessem 

a apatia. 

E nem que preciso seja 

adejar uma conspiração

devolvemos à nostalgia a sua inutilidade

por insatisfatória condição;

preferimos 

avançar a desmedo

arroteando os touros à medida que desfilam

desfazendo as bandeiras que se supõem

equinócios baratos

juntando nas mãos a neve vagamente prometida

coabitando na memória do presente 

– o maior presente que deixamos

em memória do futuro. 

A rendição 

não se traduz no nosso dicionário. 

Queremos ser procuradores do avesso continuo. 

Há quem garanta

tratar-se apenas de feitio mal concebido. 

Não somos desmancha-prazeres

nem é da nossa lavra

a contradição condenada a ser um logro. 

Não escondemos sob o tapete

as más cores que embaciam

o estado das coisas. 

Somos

apenas

seus legítimos artesãos

sem esconder 

as reentrâncias da contrafação. 

#2552

Dos arquitetos daninhos

colho a indiferença.

11.10.22

MB da vida

Consulta de saldo

sobre o tempo sobrante

em crédito à conta da vida. 

 

O empenho menor

atraiçoa o sangue murmurado

arrefece os dedos

o étimo da capitulação. 

Não se sabe

ninguém sabe

a que úbere se dá a vida a beber

pois de sortilégios vários 

cumpre-se

a função mínima. 

 

O recibo da consulta de saldo

dança um número. 

Se fossem varandas expandidas sobre o céu

diria palavras inestimáveis,

incomensuráveis, 

esse número em forma de aval. 

Seria um salvo-conduto

quase

uma garantia vinculativa

amarrada a um cumprimento escrupuloso

sem pretextos como enredo

ou salvaguardas cimentadas em imprevisíveis. 

Se fosse assim,

que não é. 

A transgressão da garantia 

começa na ausência de entidade reguladora:

 

ainda bem 

que não há 

uma ASAE 

para as vidas.

#2551

Não maltratem o mensageiro

se a culpa é da babel

em que respiram os mandantes.

10.10.22

Injeção eletrónica

A cada luar sentado no telhado

uma quimera que entra na fala

e compõe os oráculos sem destino. 

 

A cada fado tresmalhado

uma centelha que não se cala

e anima o vento clandestino. 

 

A cada erro sem ser combinado

a carne arrematada pela dura bala

e um espelho com rosto prístino.

#2550

A saliva

não desiste

da pele improvável.

9.10.22

A sorte da pregoeira

Num pregão dissimulado

a pregoeira lamentava

a sorte maldita.

Ao menos

alguém houvesse

em pose burocrática

a lembrar

que uma sorte maldita

é um oximoro:

se é maldita

entra nos pertences da contrariedade

ou se é sorte sem espinhas

tem de levar na sela

um adjetivo conforme.

#2549

Sirvam 

a onomatopeia predileta

o gongórico perorar

cacofonia elevada ao megafone.

8.10.22

#2548

Quebra

as cabeças

antes que sejam

um quebra-cabeças.

7.10.22

Injustiças indocumentadas (29)

Um banho de multidão

é primo torto do insalubre,

um bando da multidão.

Injustiças indocumentadas (28)

Quanta é a dose em falta

para o meio-maluco

não pecar por defeito?

#2547

Dos corsários

nem a fazenda

se aproveita.

 

[Trova dos conformistas]

6.10.22

Cordilheira

Serve de afeição

a cordilheira entrançada

os folhos revirados como se fossem

as entranhas viradas do avesso

que é onde se atesta

a têmpera de que versam as entrelinhas.

No bojo que desalinha do modo

a cordilheira contém

as rugas da palma da mão

fica à mercê desta cartografia

desligada de tudo

frágil

tão frágil que nem parece

o sinaleiro do dicionário sem autoria.

À vista desarmada

limitada pela miopia da distância

dir-se-ia da cordilheira 

ser uma cortina de ilusões

o logradouro 

onde se entretêm os falsos letrados.

Não é dessas cordilheiras 

que se compõe a minha carne combustível:

os veios que rompem como arestas 

balbuciam as dores excruciantes

como 

as que mortificam 

misantropos voluntários.

#2546

Não há 

uma maneira má

de dar 

uma boa notícia.

5.10.22

#2545

O adeus que se perpetua,

a morada da apatia

no medo que tem âncora

no passado.

Os maus são uma minoria

Os maus são uma minoria 

– era da lavra de um espelho

onde se abastavam as desmedidas

e ninguém rimava com ilusão.

 

Os maus são a minoria 

– sempre que os ventos 

mugiam os tetos plúmbeos

e só os desatentos fugiam do Éden.

 

Os maus, minoria 

– que uma centelha refulgente

em seu ocaso improvável

devolve os férteis frutos às mãos

e os desvalidos perdem a linhagem.

 

Os maus são uma minoria 

– da tença de quem esgota a inverdade

e dela lança a sementeira 

que estilhaça lugares-comuns delapidados

para um fogo de artifício ao menos extasiante. 

4.10.22

#2544

O amoedado estiolar

à medida 

que o outono se afiança

na medida da decadência. 

Injustiças indocumentadas (27)

A lagoa

só pode ser um lago pequeno

se o feminino for o santuário

da pequenez.

Injustiças indocumentadas (26)

Se a lagoa

é um lago pequeno

os farroupilhas da nova língua

andam distraídos.