17.11.22

Betão armado contra espátula

As veias tornadas paredes

na sumptuosa enseada

à prova de juras

abjuram o medo consular 

a matéria funda que bolça

sobre a inocência.

A inocência,

ah!

como rima com incoerência

 

(a proscrita, hélas! incoerência)

 

como são remotos os paladares

as virgens que nunca o foram

as estantes destinadas ao vazio

as fábricas sem operários

um pouco

como aqueles comboios modernos

que viajam sem condutor.

As veias

congeminadas por dentro de vulcões

imperatrizes da sua própria lava

não se intimidam:

atirem-se os mastins a elas

para serem derrotados sem remissão

num remoinho nuclear que tudo dilacera

até a palavra estilhaços

banida do dicionário

banida das convenções outorgadas

banida de

banida de...

banida.

Os modos perderam-se

ainda a tempo

de serem desmentidos.

E todo o sangue devolvido às veias

tradução válida de um corpo inamovível

avisa os destemidos que tinham de o ser

contra a avassaladora tempestade sideral

o céu a fugir por entre os dedos da alma

e um copo de água

singelamente

derramado 

para avivar as sementes

para memória futura.

#2588

O ativamente conservador

rasgou o futuro,

tatuado 

nas paredes do passado.

16.11.22

Má fama

Não se diga

da má fama

que é uma fama 

a desproveito;

pois de uma fama

não se dirá

ser de má rés

ou fama não será.

#2587

Desse à chave um destino

soubesse do paradeiro 

da porta.

15.11.22

Azulejo

A ave espacial

esbarrou

à nascença

com a nave especial. 

 

Os fundos conjunturais

afinal têm fundo

pois o fundo que as fundeia

tem um forro de anteparo. 

 

Os senescentes não têm medo do futuro

o futuro é que se inquieta

ao saber que o será

sem a companhia dos senescentes. 

 

As estrelas fugiram do dia

confirmando

que o jogo que interessa

se joga à noite.

#2586

Devia haver 

na toponímia da cidade alvar

a avenida do presente imperfeito.

14.11.22

As flores e os nomes

Os nomes

escritos sobre as fotografias

como se as palavras evocassem

flores

flores contíguas ao sangue contínuo

e os nomes

apenas uma distância vaga

entre os despojos do dia

e a maresia do amanhã.

#2585

O sal sulca o suor

o sol síndico

dos sonhos.

13.11.22

Injustiças indocumentadas (40)

O dedo mindinho

como metáfora da adivinhação

é a revolta dos pequenos

a revolução

sem inventário nos compêndios.

Metafísica às metades

Chegou a mim 

a descoberta

que deus não existe

porque tem joanetes.

#2584

Uma ponte sem alfândega

uma pertença sem limites.

12.11.22

#2583

São estas palavras

o nome do sangue

em sacrifício do passado.

11.11.22

Certificado

Dizias

que o peito se enche de alma

quando a noite se disfarça

de um verbo que não esconde

o desejo. 

Dizias

com o olhar desembaraçado

que as palavras emprestam o sal

que se tornou rarefeito

neste lugar composto por gente meã

neste lugar

onde todos calçam as galochas do videirinho

e afocinham no juízo sumário

à custa de ordenanças gozadas por preconceito. 

Dizias

como se fosse preciso fazê-lo

que lugares destes são poços inválidos

cidades órfãs de mapa

idiomas que põem as pessoas a desentenderem-se. 

Dizias

que estás cansado deste desentendimento

que toma partido dos vãos

e que extinguem os voos largos

que asas decepadas não deixam embainhar.

#2582

Não é do futuro

que se alimenta 

o medo;

é do passado.

Cabalística (2)

11+11=22.

10.11.22

#2581

Cada um devia ter o direito

à revisão constitucional

e isso devia fazer parte

da revisão constitucional.

9.11.22

Triunvirato

Registo a patente

antes 

que a preguiça me tente

e em brancos dentes

se afogueie um tenente.

 

Vejo com desdém as pontes

e arrumo

antes que tu os contes

os anéis que cuido com aprumo

no balcão que guarda os dotes.

 

Das mãos verto este sumo

alteroso

e remedeio sem medo do fumo

o miado medroso

a que não me acostumo.

#2580

O acento

toma assento

na tónica

que não é água.

Os espanhóis

Os espanhóis

precisam de quem lhes faça 

desenhos 

no pecúlio da gramática;

de outro modo 

não teriam

pontos de exclamação

e pontos de interrogação

a prefaciar as frases. 

8.11.22

O elefante não saiu do jardim zoológico

Afinal

o elefante esteve 

este tempo todo

no jardim zoológico. 

Injustas foram as injunções

sobre o seu parco estatuto diplomático

em metáfora que mexia

com porcelanas de fino calibre

e salões onde solenes salamaleques

decorriam a preceito 

– os senhores 

pressurosamente 

desfazendo-se em cortesias hipócritas

e as senhoras

contrafeitas

reprimindo fantasias nas ameias da mente. 

Ao elefante

vítima de injustificada injustiça

devia ser reconhecido o direito de reparação

que hoje quadra tanto com os modismos

que às vítimas de outrora

assiste a reposição da justiça a seu favor

para que possam descansar 

no sossego da consciência dos outros. 

O mundo inteiro

(concessão ao rigor: 

o mundo quase inteiro

que não se impetra o consenso forçado

tão próprio de um centralismo democrático

de má memória)

devia saldar uma interrogação:

como foi possível

passar tanto tempo agrilhoado

à metáfora do elefante na loja de porcelanas

se o elefante

tão paquidérmica criatura

nem sequer cabia na loja?

Ninguém 

dera conta

que o elefante

não tinha saído do jardim zoológico.

Injustiças indocumentadas (39)

É 

manifesto exagero de patente

falar-se

de um general Inverno.

#2579

Desfilam

em passerelles sem Outono

os modelos à procura de ímpar. 

7.11.22

#2578

Quero do luar

a mesma fortuna

que traz o mar.

6.11.22

#2577

Sem o juízo a juízo

nada sobra de um siso.

5.11.22

#2576

Os fazedores de tendências

os engenheiros de mercados:

biltres, 

papalvos,

ou exibicionistas?

4.11.22

#2575

Coleção

de absurdos gramaticais

a rimar 

com a imperícia dos regentes.

3.11.22

Menos que noite

É o superlativo embate

na onda que se agiganta

desde o magma lancinante:

nada se oferece em vão

e os mármores sublimam

uma opulência que é disfarce.

Nas mangas da incerteza

gravitam as constelações sem freio

e os pés que sentem a falta de chão

não se desordenam

não encaixam no caos aparente.

Deixem-nos à sua sorte

que eles 

sabem procurá-la.

#2574

Não somos corsários

e não damos resposta

a convocatórias de zaragata.

2.11.22

O jogo sem fim

Sexto sentido:

as covas da estrada

desamortecem os contratempos

em que se prevê o tempo por andar. 

 

Vão as janelas, os contemporâneos:

assustam as nuvens malvadas

que fazem coro com a tempestade,

sabem que forte é a sua têmpera

quando porfiam contra o mar levantado. 

O corte válido

é aquele que resgata os sentidos

que nunca chegam a ser velhos. 

Se o fuso horário não enganar

e o rio arrematar a nostalgia dos forasteiros

das barcas trôpegas desembarca

uma gesta de virtuosos,

aqueles que trazem no bolso

resposta afivelada para qualquer pergunta. 

 

O miradouro tira as teimas:

no lugarejo conhecido como mentira

desaprovam-se todas as palavras. 

Mal se desencanta um lugar assim

que toma as dúvidas por mentiras

e isenta de culpa as mentiras que o são,

legítimas.

#2573

Se os sonhos 

enfraquecem

as páginas restantes

tornam-se bastardas.