2.12.22

Fogo de artifício

Os segredos

ouviam-se em sessões clandestinas

quando todos estavam a dormir

ou em lugares adivinhados pela ausência. 

Os segredos

se viessem a ser contados

estariam por conta de catástrofes

por não irrisórias bombas crepusculares. 

Os segredos

são facas afiadas sobre o futuro

penhores que absorvem o oxigénio

areias movediças só depois de lá entrados. 

 

Se sumissem os segredos

o que seria das mentiras?

E se fosse declarada extinta a mentira

            

(que o seria

certamente

pelos maiores mitómanos)

 

deixariam os diligentes curadores da verdade

de falarem seu nome?

#2604

Nem as fronteiras

travam o nómada.

#2603

Logo em menino

queria ser arauto da moral.

Ninguém lhe explicou

que estava condenado a fracassar.

1.12.22

Injustiças indocumentadas (46)

Quem se ri

a partir um coco?

#2602

Benzina, dantes

cripto moedas, agora.

(E depois, amanhã?)

30.11.22

A paz sem disfarce

Os dedos correm em simultâneo

sobre as cortinas que escondem

a fúria que amaldiçoa estes lugares.

São eles que servem o antídoto

passeando generosamente pela pele

onde a desarrumação das almas

se agiganta.

Mãos quiméricas

em vez de armas que se terçam

na inviolável condição dos estultos

que são os perspicazes mastins do caos.

Hoje

as notícias mandaram boas novas

aos que continuam a acreditar 

que o otimismo vai derrotar o pessimismo:

as mãos 

foram agraciadas com uma comenda

muito mais do que honorífica

uma espécie de Nobel 

à paz que não faz de conta.

#2601

Se morrer é para sempre

e viver o seu contrário

faça-se do viver 

a perene condição da vida.

29.11.22

Injustiças indocumentadas (45)

Laurear a pevide

sem se saber

a proeza da pevide.

Um oásis, vírgula

Um salto depois

Paris ou Istambul

Berlim ou Budapeste

extinto o sentido das fronteiras

os idiomas deixam de ser embaraço

e um caldo de cultura

feito de fusão

do sangue e da carne que não falam idiomas

nem são paradas em fronteiras

vem no lugar da roda sobressalente. 

As bandeiras hasteadas são todas brancas

nelas esvoaçam os vincos das palavras

nelas se sucedendo os idiomas amostra

desenhando 

a tinta da China 

o músculo da concórdia

o ecumenismo de diferentes

que só o são nas convenções arrumadas

no parapeito da banalidade. 

Somos 

os nomes que se dizem

em todos os idiomas

as bocas que se cruzam 

no desmedo das diferenças

os corpos cosmopolitas que aprendem a sê-lo

na vertigem do corpo sempre outro

seja qual for a sua linhagem. 

Numa eutopia militante

onde se jogam dedos em forma de pétalas

armas sem munições

as palavras mosqueadas em poemas espontâneos

bebendo a inspiração em marés untuosas

maresias anestesiantes

esboços de sonhos não proibidos por lei

nem desdenhados por tributos variegados. 

Esse lugar 

onde habitam os sonhos

não vem no mapa. 

É imarcescível na fusão das falas

no ditado dos corpos

na recusa das pertenças que disfarçam prisões. 

O lado escondido

abriga-se 

nos segredos

e em páginas de livros

sem inventário nas bibliotecas. 

Assim seja,

em Budapeste ou Paris,

em Istanbul ou Berlim,

à espera que um sinal funda as algemas

à espera

das sílabas com a raiz funda

onde os ossos encontram 

a lava adormecida.

#2600

Uma corda

no sapato rombo

desmentindo o desfalque

que envelhece a carne.

28.11.22

Herdeiro

Tingidas as folhas

o desencanto arrumado:

pelo andar dos boémios

a noite respira o eterno

e só os que se dobram 

é que confirmam o efémero. 

Agigantam-se 

os deuses nada óbvios:

as estrofes que esbracejam

vingam a cor sobre os vultos madraços

e todas as páginas

todos os parágrafos

são como as folhas 

herdadas do Outono.

#2599

A clepsidra estilhaçada

perpetuava

a tirania do tempo. 

27.11.22

Margens

A margem incendeia a pele

por a tocha centrípeta

acenar da margem outra. 

 

A lava ascende

por súplica do magma

a pele não capitula na demanda. 

 

Por ser tanto o desejo

inventa-se uma ponte

e as margens coalescem numa só. 

 

Não se extinguem as margens 

no sulfuroso atear das mãos

que se desfazem da sede recíproca. 

 

Entre as margens testemunhas

corre a caudalosa redenção

a poesia colocada entre os sexos intensos.  

Injustiças indocumentadas (44)

Terra 

seria o nome do planeta

se mares fossem só sete.

#2598

Faz-se o verbo

do jasmim disfarçado

de estandarte. 

26.11.22

Oriental

Já às margens correm

artesanais

por conta de evidentes notas de rodapé

ainda o sol não espreitou às costas da noite

enquanto se ouve 

apenas 

o murmúrio dos apressados emergentes

naquele pressentimento da exoneração da noite

e os olhos

na intenção de abandonarem o estremunhado

encantam-se com a luz inaugural. 

Oxalá 

se deuses houvesse

essa luz ficasse eterna

emoldurada num bola de cristal. 

#2597

O espelho

é o pior imitador.

25.11.22

#2596

Servisse de atalho

a instigação permanente

ao desassossego.

24.11.22

Trigonometria

Da pele em alvoroço

a lava tingida de branco

e o beijo em aval de poesia

sem os emolumentos do mal

só uma maresia que toca a boca

no pressentimento maior

que deus nenhum adivinha.

 

A roca do medo

extinta

e a maré que entra no rio

a caudalosa maré que enche o rio

desfeita a noite em mil pedaços de pele

e as estrofes que asfaltam a estrada

nos braços enlaçados

que voejam a manhã que arde.

Injustiças indocumentadas (43)

Autoridades competentes,

o prefácio e o posfácio

a um oxímoro.

#2595

À condição de um senão

para não arrematar

a hostilidade.

23.11.22

Desaviso

Cortar

a eito

sem esperar

pela porta aberta:

insiste

a destemperança

no rosto febril

de quem se desencanta

no êxodo da noite

no refúgio do luar.

#2594

Entregue como arrás

a agonia sine die.

22.11.22

Esclarecimento

O laço apertado

adorna a jugular

e a levitação dos sentidos

como se fosse lisérgica

enfeita as luzes bastardas.

 

Não se julgue

precipitadamente

o principesco abotoar da goela

que isto não é 

a matança dos galináceos.

#2593

Entre dois dedos de conversa

o encargo e a filosofia

“o dever de falar”.

Injustiças indocumentadas (42)

(Ter) culpa no notário

é fazer um golpe de Estado

à lei.

21.11.22

E assim sucessivamente

Se o mar não fosse fundo;

se as lágrimas tivessem nascente;

se a lava não amanhecesse irascível;

se os lados do mundo fossem fungíveis;

se as bocas não se embebessem em falso mel;

se os países não tivessem bandeira;

se o luto fosse anulado por decreto;

se a lua tivesse paradeiro na orla do dia;

se os peões soubessem que são peões;

se a lucidez não fosse emparcelada;

se os condutores de almas fossem para o diabo;

se os regentes não rimassem com mitomania;

se os corpos não mentissem ao tempo

(ou será o tempo que mente aos corpos?);

se todas as coisas válidas se extinguissem;

se não deixássemos de lado as palavras por dizer;

se não fôssemos reféns de um labirinto;

se nós adiássemos no passado sem causas;

se não fosse perda toda a matéria venal;

se não houvesse carestia de sermos nós;

se os disfarces não ocupassem o palco;

se os versos não se fizessem desacompanhar de mãos;

se a maresia tombasse sobre o entardecer;

se os rostos dos filhos fossem sempre pueris;

se as pernas não tergiversassem ao menor sinal do medo;

se a raiz quadrada de tudo fosse o sangue combustível;

“e assim sucessivamente”.

Injustiças indocumentadas (41)

Dar o braço a torcer

causa uma dor

excruciante.

#2592

Não é 

à conta de esperança

que se contam mentiras

ao futuro.

20.11.22

O palimpsesto de cada dia

O palimpsesto de cada dia:

aqui há um século,

aqui há um século.