5.12.22

O adro das intenções

Pelo fundo da garrafa

o pináculo da audácia

numa cordilheira de juras.

Amedronta-se o medo:

nem vulcões irascíveis

lobrigam o rapto do sono

nem eles

fermentam o desassossego militante.

Amedrontem-se

as estrelas cadentes

os astronautas de galáxias amancebadas

os regentes garbosos:

pelo fundo da garrafa,

que é onde sobra a valentia pura,

os dias chegam ao peito

e são eles que se afeiçoam

à lava incandescente

imparável

que sobe à boca

contra as vendas amestradas

os emissários do silêncio

os procuradores da tirania arrevesada.

Até que o fundo da garrafa

traduza a inteireza

apenas a inteireza

que não capitula 

às reticências oxigenadas

pelos apóstatas da liberdade

que não desaprendem de cuspir

no direito a ser 

que é o ser dos outros.

Injustiças indocumentadas (47)

A idade média

não é 

uma média de idade.

#2607

O suor

que fala pela alma

o idioma embainhado

no sacrifício.

4.12.22

Testamento

Testamentário 

da vontade dos deuses

vestia o oráculo sem flores a ornamentá-lo

e murmurava

no cio do dia

os versos saídos de sonhos

os versos

que outrora ficavam 

reféns da desmemória.

#2606

O artesanal sentir

em vez 

do malquisto penhor

ao irmos de visita

a mercados larvares.

 

[Dirás não ao ominoso capitalismo]

3.12.22

#2605

O elevador da glória

é puramente

antidemocrático.

2.12.22

Fogo de artifício

Os segredos

ouviam-se em sessões clandestinas

quando todos estavam a dormir

ou em lugares adivinhados pela ausência. 

Os segredos

se viessem a ser contados

estariam por conta de catástrofes

por não irrisórias bombas crepusculares. 

Os segredos

são facas afiadas sobre o futuro

penhores que absorvem o oxigénio

areias movediças só depois de lá entrados. 

 

Se sumissem os segredos

o que seria das mentiras?

E se fosse declarada extinta a mentira

            

(que o seria

certamente

pelos maiores mitómanos)

 

deixariam os diligentes curadores da verdade

de falarem seu nome?

#2604

Nem as fronteiras

travam o nómada.

#2603

Logo em menino

queria ser arauto da moral.

Ninguém lhe explicou

que estava condenado a fracassar.

1.12.22

Injustiças indocumentadas (46)

Quem se ri

a partir um coco?

#2602

Benzina, dantes

cripto moedas, agora.

(E depois, amanhã?)

30.11.22

A paz sem disfarce

Os dedos correm em simultâneo

sobre as cortinas que escondem

a fúria que amaldiçoa estes lugares.

São eles que servem o antídoto

passeando generosamente pela pele

onde a desarrumação das almas

se agiganta.

Mãos quiméricas

em vez de armas que se terçam

na inviolável condição dos estultos

que são os perspicazes mastins do caos.

Hoje

as notícias mandaram boas novas

aos que continuam a acreditar 

que o otimismo vai derrotar o pessimismo:

as mãos 

foram agraciadas com uma comenda

muito mais do que honorífica

uma espécie de Nobel 

à paz que não faz de conta.

#2601

Se morrer é para sempre

e viver o seu contrário

faça-se do viver 

a perene condição da vida.

29.11.22

Injustiças indocumentadas (45)

Laurear a pevide

sem se saber

a proeza da pevide.

Um oásis, vírgula

Um salto depois

Paris ou Istambul

Berlim ou Budapeste

extinto o sentido das fronteiras

os idiomas deixam de ser embaraço

e um caldo de cultura

feito de fusão

do sangue e da carne que não falam idiomas

nem são paradas em fronteiras

vem no lugar da roda sobressalente. 

As bandeiras hasteadas são todas brancas

nelas esvoaçam os vincos das palavras

nelas se sucedendo os idiomas amostra

desenhando 

a tinta da China 

o músculo da concórdia

o ecumenismo de diferentes

que só o são nas convenções arrumadas

no parapeito da banalidade. 

Somos 

os nomes que se dizem

em todos os idiomas

as bocas que se cruzam 

no desmedo das diferenças

os corpos cosmopolitas que aprendem a sê-lo

na vertigem do corpo sempre outro

seja qual for a sua linhagem. 

Numa eutopia militante

onde se jogam dedos em forma de pétalas

armas sem munições

as palavras mosqueadas em poemas espontâneos

bebendo a inspiração em marés untuosas

maresias anestesiantes

esboços de sonhos não proibidos por lei

nem desdenhados por tributos variegados. 

Esse lugar 

onde habitam os sonhos

não vem no mapa. 

É imarcescível na fusão das falas

no ditado dos corpos

na recusa das pertenças que disfarçam prisões. 

O lado escondido

abriga-se 

nos segredos

e em páginas de livros

sem inventário nas bibliotecas. 

Assim seja,

em Budapeste ou Paris,

em Istanbul ou Berlim,

à espera que um sinal funda as algemas

à espera

das sílabas com a raiz funda

onde os ossos encontram 

a lava adormecida.

#2600

Uma corda

no sapato rombo

desmentindo o desfalque

que envelhece a carne.

28.11.22

Herdeiro

Tingidas as folhas

o desencanto arrumado:

pelo andar dos boémios

a noite respira o eterno

e só os que se dobram 

é que confirmam o efémero. 

Agigantam-se 

os deuses nada óbvios:

as estrofes que esbracejam

vingam a cor sobre os vultos madraços

e todas as páginas

todos os parágrafos

são como as folhas 

herdadas do Outono.

#2599

A clepsidra estilhaçada

perpetuava

a tirania do tempo. 

27.11.22

Margens

A margem incendeia a pele

por a tocha centrípeta

acenar da margem outra. 

 

A lava ascende

por súplica do magma

a pele não capitula na demanda. 

 

Por ser tanto o desejo

inventa-se uma ponte

e as margens coalescem numa só. 

 

Não se extinguem as margens 

no sulfuroso atear das mãos

que se desfazem da sede recíproca. 

 

Entre as margens testemunhas

corre a caudalosa redenção

a poesia colocada entre os sexos intensos.  

Injustiças indocumentadas (44)

Terra 

seria o nome do planeta

se mares fossem só sete.

#2598

Faz-se o verbo

do jasmim disfarçado

de estandarte. 

26.11.22

Oriental

Já às margens correm

artesanais

por conta de evidentes notas de rodapé

ainda o sol não espreitou às costas da noite

enquanto se ouve 

apenas 

o murmúrio dos apressados emergentes

naquele pressentimento da exoneração da noite

e os olhos

na intenção de abandonarem o estremunhado

encantam-se com a luz inaugural. 

Oxalá 

se deuses houvesse

essa luz ficasse eterna

emoldurada num bola de cristal. 

#2597

O espelho

é o pior imitador.

25.11.22

#2596

Servisse de atalho

a instigação permanente

ao desassossego.

24.11.22

Trigonometria

Da pele em alvoroço

a lava tingida de branco

e o beijo em aval de poesia

sem os emolumentos do mal

só uma maresia que toca a boca

no pressentimento maior

que deus nenhum adivinha.

 

A roca do medo

extinta

e a maré que entra no rio

a caudalosa maré que enche o rio

desfeita a noite em mil pedaços de pele

e as estrofes que asfaltam a estrada

nos braços enlaçados

que voejam a manhã que arde.

Injustiças indocumentadas (43)

Autoridades competentes,

o prefácio e o posfácio

a um oxímoro.

#2595

À condição de um senão

para não arrematar

a hostilidade.

23.11.22

Desaviso

Cortar

a eito

sem esperar

pela porta aberta:

insiste

a destemperança

no rosto febril

de quem se desencanta

no êxodo da noite

no refúgio do luar.

#2594

Entregue como arrás

a agonia sine die.

22.11.22

Esclarecimento

O laço apertado

adorna a jugular

e a levitação dos sentidos

como se fosse lisérgica

enfeita as luzes bastardas.

 

Não se julgue

precipitadamente

o principesco abotoar da goela

que isto não é 

a matança dos galináceos.