Quem nunca saltou
para uma caixa de Pandora
quem nunca se perdeu
nos enredos de um labirinto?
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Dois ou três dedos de conversa:
dizem
um bálsamo
que converte a solidão
ou então
fermento que aviva diferenças
incensando opostos que não coabitam.
A palavra
tão depressa se abastarda
na tirania da intolerância
e os anátemas estendem-se ao comprido
maquiavelicamente incapazes
de tomarem o lugar onde está o outro.
Desse mal se abjure
a conspiração
onde se desalimentam os que ficaram
esquecidos
numa qualquer esquina controversa do tempo.
A matilha não se cansa
os dentes tatuados do sangue das vítimas
e eles
tão aparentemente poderosos
reduzidos
à miséria de uma condição soez.
Extingue-se a penumbra.
Os gatos dissolvem-se das ruas
agora colonizadas por pessoas.
O céu tingido de tons alaranjados
rima com a preguiça que acompanha
o dia inaugurado.
O sangue das pessoas ainda é letargia.
As palavras saem a custo
muitas preferiam habitar
se pudessem
o exílio de uma cama.
As ruas ainda não crepitam;
prometem fazê-lo
pela experiência que trazem ao dorso.
Notam-se uns despojos da noite destreinada:
um punhado de boémios a desoras
perdidos na iconoclasta ebriedade
alguns operários do turno da noite
em contramaré
apressados para o sono
os estilhaços de garrafas averbadas na boémia
o lixo negligente de quem habitava
sentidos embaciados.
O dia que se inaugura
com o primeiro sopro da aurora:
que mentira tão bem montada
se o dia
este dia para efeitos de contabilidade do tempo
já leva no inventário
meia dúzia de horas.
Arrancado à dureza dos maxilares
um silêncio povoado de noite
esgrime contra a pálida expressão do medo.
A fala, submersa,
amotina-se.
Arruma a rigidez dos tendões
e a teimosia dos músculos,
contrária a mudez estrutural
vendo como os copos
entretanto vazios
dançam com as palavras dantes reprimidas
as palavras agora espalhadas pelas paredes.
Um rosto ensonado adia a manhã,
acredita na ilusão.
A luz inaugural fere o olhar
a mesma agressão da fala emudecida
enquanto a noite onde se sentam as solidões
vocifera um bolçar que não se ouve.
O silêncio não passa de um disfarce.
Todo o peso das pessoas
arqueia as ruas
que cedem à profusão de páginas faladas
pelo somatório de todos os que souberam
das ruas.
Essa amálgama é a indelicadeza da cidade
uma teia de haveres que se entretece
com os segredos habilitados
em testamentos guardados no silêncio fundo,
a estola que cai sobre o seu dorso.
A nudez da cidade
enfim
disfarçada por este coro claro.
Os nomes
não importam.
Não se fale
de extorsões
que se fingem
de incenso.
Um nome não é
o sangue
que habita as veias
as esporas que se atiram
na projeção do horizonte
e desembaraçam
janelas com artesões
não é
um nome
o esconjurar
supersticioso
do medo de sermos ninguém.
E, todavia,
quantos nomes há
que são apenas
ninguém?
Quantos
são os nomes
esquecidos
na almofada do tempo
na incúria da memória
num adeus inconfessável
no dorso de uma montanha
escondida nas ameias da noite?
Os nomes
não passam
de uma expropriação de almas
que se diz de o serem
depois de serem um labirinto
num nome.
Os nomes
se não fossem um cárcere
podiam importar.
Não
à conta do exílio
nem pela conta certa
averbada pelo sombrio ocaso
não
é não o que proclamo
aos que da inércia se alimentam
à projetada ideia de não dissidência
aos que se inquietam porque alguém se interroga
à castração das ideias
aos aios úteis de farsantes inúteis.
Não
pode ser o degrau heurístico
onde é crime dizer não
e onde dizê-lo
constitui uma ode
à liberdade mansamente reprimida.
Não
é a medalha sublime
desta irredutível desobediência
o salvo-conduto para a liberdade
não ser apenas um princípio sem substância.
Soou o ciciar de um fantasma
na fortaleza que guardava a noite
e do pano gasto resgatou o olhar
embaciado.
Suou no crepúsculo do pesadelo
que enfeitiçou os sentidos
enquanto a lava açambarcava
o sangue.
Muda a janela sobre o mundo
apunhalou pelas costas os mastins
em metódico gesto de reparação
do indevido.
Muda de máscara, gasta,
antes que um cortejo de seráficas personagens
o traga para o pelourinho em sede
de julgamento.
Cala todos os silêncios amaldiçoados
a fonte de rebeldia sentada à margem
sentado na coreografia embainhada
nas desregras.
Batem por dentro
no avesso das pálpebras
as palavras atónitas
o sal hirsuto do mar
o vento em protesto
os corpos desassisados
fulgurantes centelhas em meneios
nos antípodas da carne apaziguada.
Se fossem exílio
as asas apressadas seriam maneirismo
um fingimento a calhar em estrofes
ornato precioso na bolsa sem fundo.
Mas não são.
Suplicam as bocas foragidas
em idiomas por inventariar
os modos sem instruções
uma gramática por cada pessoa
um tribunal inferior que seja bastante
no imprevidente salvo-conduto
à fortificação apresentado.
A roupa torcida
não se amarrota na descompostura:
dela é a marca registada dos habilitados
o corpo em preparos inverosímeis
como se acabasse de escolher um púlpito
e não deixasse em memória futura
herança a caber.
Os dias são iguais.
Arrumo os escombros na fileira do esquecimento
e dou o inteiro de mim à acintosa manhã
eu que sou meão
e não aspiro a que do meu nome saibam
paradeiro.
Não seja em mim encontrada
a peugada da heráldica
que da orfandade
tenho uma impressão da espécie.
Em todas as marés
desapareço
fundindo o vulto em que me tornei
na espuma levantada pelos mares desarrumados.
Sou como um navio
a água do mar como morada
e o rosto como a lombada de livros em barda,
o demais escondido do voyeurístico espiolhar.
Sou
exílio por dentro
os pulmões cheios de versos por saber
e uma manhã que se confunde
com os acordes em espera.
Sou
a provável fragilidade
que se não esconde
o lema tirado à sorte
(ou atirado à sorte)
na filigrana em que se habilitaram as mãos.
Espero por o que não posso esperar
e nisso faço-o não-espera
o vocábulo irredentista
a fação compulsiva que arremete contra o dia
em mil e duzentos archotes que dividem a avenida
enquanto se espera
aquilo por que não se pode esperar.
Trocas a mentira
em bolsa de futuros
e de vez arranjas o foro
onde descansas o medo.
Assentas o chão
em tugúrios rombos
e de vez suplicas a farsa
onde remedeias a mentira.
Que sombra sou
na boca da maré
que fantasma em mim se leva
na pele que pétrea se faz
timoneira do devir que se açambarca
num desvio da maresia?
Que jura
não consigo ser
no tempo inverosímil
nas candeias apertadas contra o labirinto
neste sudário
onde se enxaguam as mãos?
Amanhece
na boca
o sol posto.
Às coisa demais
digo do menos
digo
em sílabas ímpares
as cadeiras vilãs
máscaras em adiamento
um bocejo arqueado.
Sobre a janela
o mar tardio.
Sobranceiro
um pescador
fiador da sua solidão.
Se vier
a maré esperada
o anoitecer tresmalhado
deixa em magma vivo
o orvalho averbado.
Anoitece
e o crepúsculo desmaiado
anuncia um luar
maior do que o céu
que o recebe.
Era uma ideia eunuca
as núpcias averbadas no desmazelo
e os aspirantes a querubins
persistindo
no tirocínio qualificativo.
Mas veio uma tempestade:
os trovões calaram os verbos enfatuados
a chuva, diluviana,
colonizou a força braçal da ideia
era como se os deuses arrotassem o mau hálito
e nos desassossegassem.
Sobrou a lama
uma pantalha que já não era termal
e o estuário que se perdeu
nos deslimites das margens arrombadas.
Nem assim os indefetíveis desmobilizaram.
Andamos com eles a tiracolo
como se fossem parasitas
e nós,
ignorados pelos deuses
(assim ausentes),
pediríamos pássaros para o dorso
só para expulsarmos os parasitas.
O corpo
com a sua maresia
atravessa o equador
não precisa de capitães
que o adestrem no astrolábio
o corpo que amanhece
no fuso desacertado
gutural.
O corpo
consulta as dádivas
e respira entre o tojo tardio
penhor do sangue arrebatado
em óperas ditas de cor
enquanto avança
na cordilheira.