26.6.23

O cidadão-ensaísta

Certeiro o rasgo

no reduto da torre de marfim

o selo escondido dos olhares indiscretos

como se da lã fizesse um disfarce

e a carne,

refugiada no labirinto arrematado. 

Depois do mundo

tiro o dia para saber da cidade

dos urbanos desvios à conta de predestinados

correndo por fora sem estar no fio do invisível

provoco o cidadão inerme

refém da letargia

antes que as cismas corram de vez

com um escol em vias de perpetuação. 

As lentes estão riscadas

baças com a humidade primeva

mas os olhos não deixaram de ter serventia

nem os circuitos cerebrais entraram 

em modo de segurança:

à vez

os mascotes enfeitados com autorictas

medem as falas no mercado das juras fáceis

contam com suserania dúctil

presas fáceis da mitomania que amura a cidade

preguiçosamente no coldre dos mandantes

só à espera

de serem as balas descartadas 

no tabuleiro em que são peões sem nome. 

Esta é a torre de marfim puída

uma cortina de espelhos

o jogo no baile dia disfarces

um cortejo de meãos inertes, domáveis,

especialistas em tudo e sabedores de nada

os que são agitadores sem fazerem vento

apregoando sucessivas mágoas e logo a seguir

transigem com os que atiram culpas

num sórdido tribunal de culpados sem pena

e de juízes sem toga. 

Não esperem da torre de marfim

um oásis. 

Não esperem

que a indigência fermente a excelência:

uns são o espelho dos outros

e estes o espelho do escol sufragado

e quando tudo está nestes preparos

quem pode contestar o palco onde todos se movem?

#2825

Estimada coligação de couraças:

a sobrevivência da cidade

agradece.

25.6.23

#2824

Cento e oitenta graus,

a popa empatada com a proa. 

24.6.23

A árvore sem nome

Aprendi com esta árvore (que nacionalizei para proveito próprio) como se pode ser uma metáfora sem perder a arrumação das ideias. A árvore soube ser centrípeta, um passaporte para identidades sem paradeiro. A cor lampejante das suas flores (mas efémera: dura junho) tomou conta do sangue que me transporta. O meu grupo sanguíneo são aquelas flores.

Injustiças indocumentadas (125)

Aos costumes

disse:

atleta de baixa competição.

#2823

A tela sem moldura:

a vida dispensa o arnês. 

23.6.23

Delta

Como se fosse um delta

todas as ramificações 

cintadas a um labirinto ousado

e tudo esbarra

numa constelação de dúvidas

descarnado desde a raiz

até à madrugada gentil,

uma embocadura que ganha estuário.

Injustiças indocumentadas (124)

Arma branca,

o racismo

pode ser do avesso.

#2822

Não sabemos

das revoluções 

que são todos os dias.

22.6.23

O velório das farsas e outros quinhentos sobre o futuro

Dita o fogo ateado na carne

o modo de sobrevivência

 

(e não se fale em sobrevivência por acaso,

se é um estado acima da vida).

 

Ontem 

dizia-se que dantes 

é que era bom

e-não-sei-que-demais-lamúrias

mas isso era 

porque nada era o que se sabia

sobre o futuro. 

 

O fogo que se promete 

é em piras futuras

e aquele há demandado

agonia no caudal das memórias

a funda espada 

que dilacera o que sobra 

do frescor que se esvai. 

 

E não se prometam elixires 

que disfarçam a madurez

ou a farsa da decadência emulsionada

a menos 

que as ilusões 

sejam o império por diante.

#2821

Habitamos 

sobre os escombros

que soubemos ser História.

21.6.23

Estendal

Somos os escultores 

em que tremeluz a fala

os dedos húmidos limpando as arestas

e as estrofes militantemente anónimas

contra o sequestro encenado pelos mastins.

Injustiças indocumentadas (123)

Em boa verdade – diz-se;

sem enunciar as diferenças

entre uma boa verdade

e uma verdade simplória.

#2820

Não se esperem cordilheiras

do rato parturido pela montanha.

20.6.23

Motor de combustão

Lágrimas exaustas cobrem o rosto da angústia. 

O dia é um sacrifício. 

As pontes quebradas 

não entram no condomínio da alma

despovoam as margens

deixadas a esmo na noite testemunha. 

Feitiços inviáveis emparedam o sono

e o silêncio entranha-se no sangue, 

nos ossos

à espera de se tornar a gramática imperativa

destronam a fala 

em sucessivos golpes de solidão. 

Podia ser um dia de tempestade

mas não passa de fingimento

a tempestade enquanto metáfora

ditando a convulsão insubmissa que agita

até os vulcões adormecidos.

Podia ao menos

ser um dia testemunha. 

A angústia podia ser timorata

faça-se a encomenda 

aos procuradores das intendências;

se não for para passar pela casa da partida

os terramotos crepusculares afeiçoam a carne

e tudo por dentro se subleva

subindo 

ao promontório sempre ocupado pelo nevoeiro. 

Oxalá fosse o suor 

a percorrer as avenidas gastas

as sílabas encontrassem o seu tempo

e a agonia fosse a geografia dos outros. 

Até cantar em coro com as aves na sua migração 

e nelas saber o regaço

a petição do exílio. 

Titânio

Se nem por dentro dos sonhos

somos miragem

se nem na coutada da noite

bebemos da árvore centrípeta

se nem no luar ornamentado

subimos os degraus da maresia

se nem no coaxar das rãs

participamos na insónia;

se é no ousado dissidir

que somos 

nomes inteiros

matéria vulcânica ateada

braços de cepa audaz

noite sem vultos a adejar

os ramos frondosos de uma praia

enseada a aprender a falar o futuro 

– combine-se a procuração contra os agiotas

que não é de medo que se assanham as bocas

nem de uma alma venal aos olhos de suseranos

que falam as estrofes de titânio. 

#2819

Não irá vestida a agonia

na passerelle da discórdia.

19.6.23

Injustiças indocumentadas (122)

Tantos cortam na casaca

e contudo

tão poucos alfaiates inventariados.

Injustiças indocumentadas (121)

Chamou-lhe um figo

e por que não

“eu sei lá”

uma framboesa?

#2818

Acusado de crueldade

respondeu

que foi apenas pessoa.

18.6.23

#2817

Sem que fossem as sombras

a decantação do medo

no verossímil refúgio

onde a vontade se faz alta.

17.6.23

#2816

O dia 

confessa a tontura da alma

à espera de absolvição.

16.6.23

Injustiças indocumentadas (120)

Os anjos não têm costas.

E essa

é a definição de incapacidade ao quadrado.

#2815

É desta maré avassaladora

eivada de imperativos irrecusáveis

que fujo com as forças que tenho.

15.6.23

Bonsai

O vulcão líquido atravessa os ossos

fica com um quinhão 

que amedronta os sismos qualificados

e em equações sem propósito joga-se o belo

jogam

os anfitriões que mostram as sílabas do pecado.

 

São os despojos que confecionam as paredes

sem que da estultícia dos sacerdotes

recolham as baias dos costumes.

Se não for pelas espadas argutas

que seja através dos colóquios 

onde se antecipam os títeres doravante.

 

Todos mostram as mãos

como se houvesse um mandado do tribunal

e as curvas retorcidas fossem prova dos párias.

Não interessa.

Todos combinaram

em silêncio

que as mãos ficam prostradas

assim como quem finge não saber o idioma

ou não ter faculdades mentais.

 

Às vezes

o húmus referencial subleva-se

e nem o odor pestilento

cobra as dívidas futuras

nem as sereias amestradas

coabitam com as fontes agelastas. 

#2814

Os verbos rimavam com

depostos todos os sem

que dantes eram embaraço.

14.6.23

#2813

O tesouro

voa com o vindouro

deixando o chão deserto.

13.6.23

Botânica

A flor bela

devora

a flor bala.

Antes fosse

a flor bola

lamenta a flora bala

quase a cair na boca

da flor bela.

Tudo

sob os auspícios

da flor bula.

Injustiças indocumentadas (119)

Tarde.

É tarde.

À tarde.

#2812

Atravessam as cores

atravessam os vulcões

com os nomes ensandecidos

com os olhos assestados no futuro.