4.11.23

#2953

Não fiz nada 

e já fiz tudo.

3.11.23

Os embaixadores e os meliantes

Assobiavam

todos aperaltados

os embaixadores enfatuados

o idioma franco balbuciado

à medida dos vermutes bebericados.

Apareceu uma quadrilha

a caminho de um assalto.

Ficaram todos

(embaixadores e meliantes)

com o movimento entre parêntesis.

Caiu uma chuvada torrencial

e todos se refugiaram 

numa paragem do autocarro.

Horas depois

um dos meliantes deu pela falta

de uns diamantes desviados ao legítimo.

Lembrou-se

do estalão da divina justiça

e de um perdão de mil anos

amaldiçoando a chuva que torrencial

caiu.

Injustiças indocumentadas (222)

Continência ao general

que o general é incontinente.

Potência ao general

que o general é impotente.

Injustiças indocumentadas (221)

Pela hora da morte.

Pela 

a hora da morte.

Apela à hora 

da morte.

Há hora da morte.

#2952

Trespasso 

os provérbios em barda 

deito-me 

com a indigência de origem protegida.

2.11.23

Sociologia de algibeira

Corsários que deixam o mar suado

cruzados que sobem as árvores imodestas

sacerdotes que sepultam o pecado

artesãos descuidados com o véu lúcido

eruditos a estagiar numa taberna viciosa

beligerantes castrados nas desoras da vida

aspirantes demitidos no ato

cozinheiros que devolvem segredos ao mar

procuradores sem mandato desovado

mecenas sem latitude material

tiranetes condenados à solidão

cúmplices adestrados no contorcionismo

estetas mergulhados na feiura

vozes que se servem do silêncio

boémios extasiados com a manhã baça

mendigos amesendados em hotéis superiores

capitalistas a provarem a suína fatiota

ácaros militantes que dispensam o labor

treinadores de almas que empenham o unto réptil 

distraídos a beberem o dia pelo artelho da bota

primeiros-ministros que parecem quintos

rececionistas que mendigam bondade

avarentos que escondem gorjetas puídas

sonhadores que apanham um avião intercontinental

generais que fazem a incontinência.

#2951

Protestam

com rugidos pueris

a sua voz percutida no desdiz 

de quem os impugna. 

1.11.23

Injustiças indocumentadas (220)

A partida de desempate

passou a ser a branca.

#2950

Que acordamos dizer

na estiva da maré 

– que palavras 

juntamos com as mãos

à servidão de que nos isentamos?

31.10.23

As fragas

Dei sementes ao lago furtivo

os nenúfares atravessavam a margem

e do idílico fazia novelos em forma de luar. 

De cada vez que o cimento pedia corda

regressava aos atávicos humores

os costumes esconjurados 

em meia página de sono. 

Depois

em aldeolas erráticas

subia o pulso fraco e fazia-me cordilheira

um anjo sem coroa nem domínio

fogo haurido no pedestal das vozes híbridas. 

Se não pudesse saber a manhã das palavras

fugia de mim por dentro da carne tingida

o dorso curvado nas escadas desarrumadas

como se em bocejos se contivessem 

as juras que dão cor ao mundo. 

Todavia

as bandeiras avulsas sossegavam a mentira:

era preciso contar mentiras

até às próprias mentiras

em nome próprio ou na procuração arregaçada

para que ninguém fique em detrimento

para que ninguém

ficasse em dívida à mentira

e ela seja o trono que a todos democratiza. 

Não se foge da penumbra altiva

os estilhaços advertem os sobressaltos 

em contínuo

na miragem das palavras acertadas:

desenganem-se

os colonos do amanhã

os feitores de quimeras por empunhar

os embaixadores do obsoleto

os párias que perderam povoamento:

o amanhã espera a conjugação atempada

e será a vez dos apocalipses verem desmentida

a data.

Cronómetro

Em vez de sermos 

exílio por fora. 

 

Antes de sermos 

matéria puída 

no avesso do tempo. 

 

A tempo de sermos 

alguém

depois dos fantasmas.

#2949

Sôfrego

o agarrar da manhã

com as duas férreas mãos

antes que venha de tarde

escarninha.

Injustiças indocumentadas (219)

Ele há jantares grátis

(se for outro

a pagar a conta).

30.10.23

Albergaria

É este o desatino

que me alicerça

 

este

 

o destino

em forma de barca

por onde me retiro

 

do abismo convocado. 

 

Este

 

o areal tingido 

pelos vultos dos náufragos

 

o imaterial testemunho

de uma vida vindoura. 

 

É neste mar

 

que me antecipo

ao passado

 

em esgrima com o grotesco

o arsenal sem marca 

que merca as cicatrizes 

 

embalsamadas. 

 

Este 

 

o mar minha morada

o largo espelho de vozes

um sufrágio inteiro de equívocos

 

o arrependimento disfarçado.

Injustiças indocumentadas (218)

Roem a corda

e não são só

ratos.

#2948

O cobrador de fraque

não é pelo nudismo.

29.10.23

Injustiças indocumentadas (217)

Este

é o mister

do mister.

#2947

O corsário

é um baldio

ninguém o agarra

por bem.

28.10.23

Injustiças indocumentadas (216)

Um favor

aos militantes do não casamento:

desposar é fronteiro a despojar.

#2946

Nunca o vi mais magro

– murmurou, a dieta, 

ao corpo inteiro.

27.10.23

Versado

Arrumo os lençóis da angústia

na mortalha deduzida 

ao penhor da razão. 

Assimilo as vontades que se angariam

o salvo-conduto alistado 

nas desoras do medo. 

Os poucos remédios acreditados

erram nas estantes empoeiradas. 

Não são as poções diligentes 

que amadrinham no peito preparado 

para dias amuralhados. 

Aos hinos histriónicos

dou de oferta tiros certeiros

vou ao coldre 

com a pressa de matar mitos. 

Este é o vício manancial

um querer sobreposto ao medo

calendário visível por dentro da fornalha 

infernal

e a boca insilenciável 

que investe contra as vendas

ela própria invendável

insaciável. 

De toda esta fome

uma boca hasteada 

desenha a cordilheira 

a abóbada onde os segredos 

sabem da guarida contra as cicatrizes.

Injustiças indocumentadas (215)

Pobre César

não há mulher

que o queira desposar.

#2945

O tempo

nunca deixou de ser

(a)manhã.

Injustiças indocumentadas (214)

Quem

(consegue ver)

corações

(de certeza)

caras.

#2944

Sentado ao colo do Outono

conto as folhas puídas

que atestam o tapete acobreado.

26.10.23

Carapaus de corrida

Virtudes eclipsadas:

protestava o elitista

com o consentimento 

do moralista incorrigível,

que de pantanas está o mundo

e já não têm serventia

as preces encomendadas 

aos druidas habituais. 

O monárquico afoga-se nos prantos

enquanto emagrece no saudosismo

o boçal já não acredita

que as mulheres tenham direitos

(ou, vá lá, um leve direito ao orgasmo)

o latifundiário todavia falido

lamenta que queiram banir as touradas

o reacionário beócio levanta estandartes

contra os prevaricadores que sopram a poeira

o beato condói-se só de supor

que se fornica desalmadamente 

por este mundo

dentro. 

Em movimento paralelo

o ilustre intelectual força consensos

sob a capa ultrajante do único pensamento

(que jura abjurar)

o profeta de futuros apocalipses

embebeda-se 

porque o mundo já devia ter acabado

o erudito continua convencido

que deve ser um pastor das iletradas massas

(cansou-se de genuflexões arcaicas)

o pastor social

dependem de um rebanho para apascentar

a ditar imperativos categóricos

enquanto enche a boca de democracia

e engana os tolos com papas

e um jovem precocemente militante

convencido que é lente dos mais velhos

arrota postas de moralidade.

#2943

Sentado no bolor,

bolça a podridão 

e inspira 

um gole de ar reatado.

25.10.23

Caudal

O crepúsculo

amadurece por dentro

da pele. 

 

O olhar

tingido pela madurez

sem adiamento. 

 

A carne

não desarma

das intendências. 

 

A claridade

arrasta as intempéries

sujeitas a outras latitudes. 

 

Digo

que as feridas abertas

dispensam suturas. 

 

Digo

que as cicatrizes vindouras

são o espelho de um estado contínuo. 

 

Aprendi

a prescindir da severidade

em nome de um nome vindicado. 

 

A centelha

continua desfolhada

a par do hino madrigal. 

 

Trago

a manhã arrumada 

no dorso. 

 

Não finjo

estados estultos

fantasmas perfunctórios. 

 

Tirei ao medo

um paradeiro e um património

e fiquei a par da liberdade. 

 

Arrumei

as luvas do desencanto

jurei desenganar a angústia. 

 

Apalavrei

este desprendimento

nas cicatrizes tatuadas. 

 

Espero

com juros imodestos

a paga em volta. 

 

Ou então

com o selo da modéstia

apenas o saber da vida perlongada.

#2942

Trouxe o verbo sem freio

colado à audácia destemperada

sem saber como batizar a fala.

24.10.23

Sem órbita

Gravado a fogo

o nome ouro esperava santuário

enquanto as juras submergiam 

no vulcão atónito

vertiam uma babugem 

como se fosse

parte de uma fala interminável. 

Os dados fugiam do tabuleiro

e as pessoas não iam a jogo

grevistas sem saberem no despojado chão. 

O nome era o ouro arrematado pela boca

e a língua nómada 

arrancava as palavras escondidas

gravando a medo a pose desautorizada

o meigo afago que desenhava o rosto

desmentindo os pusilânimes algozes

os que erravam nas cicatrizes das pessoas

agravando a insónia. 

De cada vez que o sol se levantava

os espelhos armavam-se 

contra a tirania dos farsantes

os déspotas também arrancados de dentes

mordendo por dentro das horas consecutivas.

Dizia-se dos adiares 

que eram escotilhas

o lugar sereno 

onde as pessoas guardavam os alfaiates

fossem de moda feita ou por inaugurar. 

Lívidos

os outrora reféns 

narravam a bondade dos torcionários

como os demoviam das monstruosidades

antes que fossem demitidos das graças 

e devolvidos fossem aos arcanos mosteiros

onde lápides convocavam o futuro. 

Sem ficarem órfãos da chuva celebrada

os miríficos tecedores de palavras

escondiam-se dos outros 

juntando-se 

aos poemas intemporais. 

De nada sabiam

os meãos paladinos 

que viravam as palavras do avesso:

sua era uma coutada sem morada

e da pele assumida ficavam de pé 

as sílabas profanadas

as sílabas que faltavam

para um sentido inteiro 

ser dado aos deuses.