25.7.24

Injustiças indocumentadas (401)

À atenção 

da multidão de peritos em inglês 

(tomo 2):

 

just in case

=

apenas no caso?

#3225

São as crias que crias,

o emolumento bastante

das palavras a nu.

24.7.24

Garrafa ao mar

Sou

como uma garrafa 

possivelmente enjeitada e deitada ao mar

sem saber 

o paradeiro do marinheiro

sem saber

onde a garrafa foi rejeitada

sem saber

se a garrafa esconde no seu interior

enigmática ou não mensagem

ou apenas mensagem alguma.

 

Ou sou

como o marinheiro angustiado ou não

que enjeitou a garrafa

ou apenas a entregou nos braços do mar

por enfada com a rotina

ou, talvez,

porque a garrafa apenas fugiu das mãos

devido ao excesso de álcool.

 

Ou sou

como o anónimo que longe ou perto

alcançou a garrafa

e, vá-se lá saber,

ficou indiferente

ou a desalfandegou da estadia no mar

para saber

se escondia um segredo

ou um tesouro.

#3224

O espelho espraia a luz 

aviva os socalcos 

que desabrocham do rio.

23.7.24

Os êmbolos não gostam de cartilhas e as pessoas gostam de êmbolos apesar de se dizerem amigas do ambiente

No estirador

dois êmbolos desengonçados

esperam a combustão. 

Estão a par

e confirmam-se que são pares

e não é por serem em número par. 

A ignição fará o milagre da química

quando o ronronar do engenho

vier alimentado pela fricção dos êmbolos. 

É como uma peça composta para piano

os dedos do pianista 

a percutirem as teclas do piano

enquanto os ouvidos extasiados dos ouvintes

encenam os labirintos onde se exilam:

a música 

é a vacina de que precisam

como tantos outros

contribuintes líquidos 

para a atmosférica poluição

a partir da fricção dos êmbolos,

imersos na combustão que os leva

de um lugar para o outro

e deste para a angústia 

diligentemente anunciada

da decadência dos lugares onde vivemos. 

Injustiças indocumentadas (400)

À atenção 

da multidão de peritos em inglês:

 

at the end of the day

não é

no fim do dia.

#3223

Podia dizer 

hoje 

mas prefere 

hodiernamente 

só par rimar 

com o bordão enciclopédico. 

22.7.24

O erudito que não chama pelo juízo

Saltava os versos rudimentares:

era a patologia dos apóstatas

que a si convocam a erudição exibicionista

e catalogam os pertences 

segundo uma duvidosa hierarquia de preceitos. 

No final de contas

não colhiam juros dessa cacofonia

e nem a pose própria da pertença a uma elite

 

(que não passava disso mesmo,

uma pose)

 

era a boia de salvação da indiferença geral

 

(e da particular também).

 

Nem que usassem lantejoulas as suas palavras

ou viessem cobertas de um oportuno despesar, 

como se houvesse caução divina,

a onerosa condição do anonimato 

não estava em vias de extinção. 

A culpa 

– murmurava 

para acalmar os ânimos interiormente exaltados – 

era do espelho lá em casa

e de todos os outros 

conspirativamente espalhados pela cidade:

e eles se devia

a soberba de quem desdenhava do espelho puído

mas depressa o chamava como caução

da estatura tão desejada. 

Não fosse a cegueira da ambição

e a teimosia em ver o seu devido tamanho

e tanto sobreaquecimento do eu

estaria condenado a severa restrição do juízo. 

À sua falta

 

(de juízo)

 

e na falta de um caritativo juízo exterior

que o chamasse ao juízo

estava cada vez mais candidato

ao risível sentenciado pelos outros

que o poderiam chamar a juízo,

na persistente dilação da falta de juízo.

#3222

Meia hora 

chega 

para a maior parte 

das antologias 

das vidas.

21.7.24

#3221

Verdadeamos

em público e em privado 

– pelo menos, esforçamo-nos.

20.7.24

#3220

Não sei que faça

com este ciclone

que abraseia as veias.

19.7.24

Olha, sem mãos no guiador

Ólafur Arnalds, “Only the Winds”, in https://www.youtube.com/watch?v=9eWewdTkghM


Um pedaço de lava embaraça a boca

os lábios tremem com a digestão das palavras

sábios os seios descobertos à altura da maré.

 

A galáxia perdida no paradeiro do escol

entardece sobre o orvalho prematuro

os vultos amotinam-se sob a lua tardia.

 

Na praia a areia fosca faz de penumbra

ao longe a silhueta esconde os segredos 

suados os olhos que marejam no miradouro.

 

As estrofes ateiam o fogo na boca do estuário

contra os velhos arqueados que esperam a morte

lambendo o passado com a angústia da perda.

 

São doces as uvas que descem à boca

dizem que não é estéril a combustão que medra

e os dias vindouros servem-se em sonhos.

 

Descendem os dias da sementeira metódica

os dedos ungidos por deuses sem nome

os corpos fundidos na chuva torrencial.

 

Não é o adeus que combina o verbo imperial

nem a angústia que se abraça ao mastro inocente

e da rua trago um lenço cheio de versos.

 

Até o oxalá se esgota no crepúsculo avoengo

em gotas pequenas que esbarram na pele madura

daqui ao mundo em frágeis teclas ciciadas. 

Injustiças indocumentadas (399)

Serenata,

há chuva.

Injustiças indocumentadas (398)

A orelha de Van Gogh,

ou a de Niki Lauda;

não a outra

atingida de raspão

por um tiro amigo.

#3219

Se somos contra os mitos 

somos omissos 

nas lendas que nos limitam.

18.7.24

A viagem que não precisa de passaporte

A dança que comanda o corpo amanhece o sal que fala pela pele. 

Guardo os sonhos para páginas de um tempo futuro, a moldura onde os rostos não cabem.

As fronteiras são a aposta da imaginação.

E nós, seus mecenas, só à espera das viagens que nos levam ao mundo.

Tenho quantos minutos?

Tenho quantos minutos

para deixar que a boca

seja testa-de-ferro 

de meu sentir?

 

Os campos magnéticos 

magníficos

hipnotizam os olhares atestados

são como maestros à prova de bala,

caóticos,

empenhamos na desorganização de tudo

como se um furacão varresse as fronteiras

e sob os escombros 

se aproveitassem os destroços sem medo. 

 

Por cada maré

um copo de dia para tomar conta do cais

antes de as embarcações subirem ao mar

cheias de marinheiros contrariados

e de uma faina prometida pela oração do estuário,

ou o penhor que respira por dentro da pele.

 

As mulheres inteiras esperam

e não rezam

não rezam

para não chamar o azar. 

Confiam no sortilégio da maré

esperam do poema

o vencimento de todas as causas. 

 

Cheiram 

desde os quartos onde se consuma a solidão

a maresia distante

como se chamassem os maridos

e sob a penumbra 

silenciassem as dores da ausência. 

 

O contramestre gasta a voz

contra o mar tempestuoso. 

Não sabemos nada;

nada:

se fôssemos marinheiros

qual seria o mandamento da vida

se ao sair de casa

não soubéssemos

se a ela voltaríamos?

Injustiças indocumentadas (397)

Ninguém perguntou 

se o cavalinho 

gosta de estar 

à chuva. 

#3218

Um colar de matéria gris

um calendário ornado a giz

um entardecer grato ao que diz.

17.7.24

O aristocrata insuspeito

O insuspeito dandy

desfila a pose aristocrática

sua é a medida do palco

em constante suspiração diletante.

A displicência metódica

esconde o tratamento subalterno

dedicado aos comuns.

Ao contrário

da teoria que tinha as esporas

a igualdade é só para enganar tolos

e nem é preciso encomendar os bolos.

A realidade desmentia-o

todos os dias:

na repartição de finanças

no café da avenida

na fila para entrar no aeroporto

no número do cartão de cidadão.

Não importava:

os pergaminhos voam alados

e não são ideólogos datados

que os desmontam.

O resto

ficava por conta do bigode excêntrico

da impecável consciência,

e de um inglês com cerrado sotaque de Derby 

– como se isso importasse aos demais.

A meio do tempo contado

descobriu-se:

o dandy insuspeito

vota em partidos de esquerda

 

(e não consta 

que seja de trocar quadrantes

nem de ter dissonâncias cognitivas).

Injustiças indocumentadas (396)

E as feias artes, 

já não são artes 

só pela feiura?         

#3217

Os bolsos opulentos

adiam a redenção,

os deuses 

são contra fortunas sem paradeiro.

Injustiças indocumentadas (395)

Ora, ora

hora a hora.

 

[Dedicado ao anónimo que, numa caixa de comentários, comentou “hora, hora”]

16.7.24

Papel de parede

Os espelhos admirados contorcem o riso

na inviável separação entre dia e noite

logo quando a penumbra extradita a luz clara

e muitos se exilam num muro subterrâneo.

As estrelas querem beijar a terra

ao que parece:

o tumulto contínuo açambarca as horas pálidas

arranjam foros de medo

que se estende por cima dos horizontes.

Num sonho por amanhecer

os pés vagueiam em cima de nenúfares

combinando os violinos pontuais

com a matéria que desembaraça a noite.

Em dias assim sombrios

na boca estalam palavras frugais

antes que sejam idioma em rota de colisão

com a gramática

antes que possam vir a ser

literatura deitada no penhor/da visibilidade,

literatura em desfado lancinante.

As palavras não deviam dormir em espelhos

disse um poeta

bebendo na excentricidade 

de que se diz mecenas:

deitem-se às candeias as frases soltas

posfácios de edições prometidas

ou meras declinações de estados de espírito


(se é que se pode aceitar 

a existência de espíritos.)


Um pai gasto ensina o resto;

as aguarelas fogem da tela

odeiam molduras

têm-nas como cárceres enegrecidos

vertendo ferrugem sobre o pensamento.

Amanhã será manhã outra vez.

E nós

combinados com as estrofes inaugurais

ciciamos a moratória do medo

contentes por não sermos reféns de tatuagens

que escondem os poros puros 

que à pele têm como matriz.  

Injustiças indocumentadas (394)

Opíparas 

devem ser as botas 

para haver quem as lamba aos pares.

Injustiças indocumentadas (393)

Uma coleção de monos

que tanto cheiram a naftalina

e nem assim

previnem o caruncho.

 

[Instruções para uma vista de pássaro sobre as instituições à sua volta]

#3216

A imprecisa silhueta 

deforma o horizonte, 

refém do entardecer.

15.7.24

Cão que não morde é cão que ladra (e homens adjacentes)

Os cães

estão sempre de atalaia

ladram repetidamente

estilhaçando o silêncio da noite.

 

Dizem 

que não mordem

se calhar

porque de tanto ladrarem

ficam doídos os maxilares

e anestesiados os dentes,

 

ou então é só para provar

que o muito ladrar não quadra

com as mandíbulas certeiras

que despedaçam carne exposta

de gente alheia

que ao perímetro dos cães vier.

 

Ou então

é só para confirmar 

que os cães se inspiram nos homens

e as gongóricas vozes de protesto

depressa são amansadas

com a acepipe certo.

#3215

Sem remorsos por contar

os dias fazem-se feridas abertas

e o tempo mastiga o sangue à mostra

como mosto de um ódio fermentado.

14.7.24

Injustiças indocumentadas (392)

É maestro

aquele

que orquestra campanhas.