À atenção
da multidão de peritos em inglês
(tomo 2):
just in case
=
apenas no caso?
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
À atenção
da multidão de peritos em inglês
(tomo 2):
just in case
=
apenas no caso?
Sou
como uma garrafa
possivelmente enjeitada e deitada ao mar
sem saber
o paradeiro do marinheiro
sem saber
onde a garrafa foi rejeitada
sem saber
se a garrafa esconde no seu interior
enigmática ou não mensagem
ou apenas mensagem alguma.
Ou sou
como o marinheiro angustiado ou não
que enjeitou a garrafa
ou apenas a entregou nos braços do mar
por enfada com a rotina
ou, talvez,
porque a garrafa apenas fugiu das mãos
devido ao excesso de álcool.
Ou sou
como o anónimo que longe ou perto
alcançou a garrafa
e, vá-se lá saber,
ficou indiferente
ou a desalfandegou da estadia no mar
para saber
se escondia um segredo
ou um tesouro.
No estirador
dois êmbolos desengonçados
esperam a combustão.
Estão a par
e confirmam-se que são pares
e não é por serem em número par.
A ignição fará o milagre da química
quando o ronronar do engenho
vier alimentado pela fricção dos êmbolos.
É como uma peça composta para piano
os dedos do pianista
a percutirem as teclas do piano
enquanto os ouvidos extasiados dos ouvintes
encenam os labirintos onde se exilam:
a música
é a vacina de que precisam
como tantos outros
contribuintes líquidos
para a atmosférica poluição
a partir da fricção dos êmbolos,
imersos na combustão que os leva
de um lugar para o outro
e deste para a angústia
diligentemente anunciada
da decadência dos lugares onde vivemos.
À atenção
da multidão de peritos em inglês:
at the end of the day
não é
no fim do dia.
Saltava os versos rudimentares:
era a patologia dos apóstatas
que a si convocam a erudição exibicionista
e catalogam os pertences
segundo uma duvidosa hierarquia de preceitos.
No final de contas
não colhiam juros dessa cacofonia
e nem a pose própria da pertença a uma elite
(que não passava disso mesmo,
uma pose)
era a boia de salvação da indiferença geral
(e da particular também).
Nem que usassem lantejoulas as suas palavras
ou viessem cobertas de um oportuno despesar,
como se houvesse caução divina,
a onerosa condição do anonimato
não estava em vias de extinção.
A culpa
– murmurava
para acalmar os ânimos interiormente exaltados –
era do espelho lá em casa
e de todos os outros
conspirativamente espalhados pela cidade:
e eles se devia
a soberba de quem desdenhava do espelho puído
mas depressa o chamava como caução
da estatura tão desejada.
Não fosse a cegueira da ambição
e a teimosia em ver o seu devido tamanho
e tanto sobreaquecimento do eu
estaria condenado a severa restrição do juízo.
À sua falta
(de juízo)
e na falta de um caritativo juízo exterior
que o chamasse ao juízo
estava cada vez mais candidato
ao risível sentenciado pelos outros
que o poderiam chamar a juízo,
na persistente dilação da falta de juízo.
Ólafur Arnalds, “Only the Winds”, in https://www.youtube.com/watch?v=9eWewdTkghM
Um pedaço de lava embaraça a boca
os lábios tremem com a digestão das palavras
sábios os seios descobertos à altura da maré.
A galáxia perdida no paradeiro do escol
entardece sobre o orvalho prematuro
os vultos amotinam-se sob a lua tardia.
Na praia a areia fosca faz de penumbra
ao longe a silhueta esconde os segredos
suados os olhos que marejam no miradouro.
As estrofes ateiam o fogo na boca do estuário
contra os velhos arqueados que esperam a morte
lambendo o passado com a angústia da perda.
São doces as uvas que descem à boca
dizem que não é estéril a combustão que medra
e os dias vindouros servem-se em sonhos.
Descendem os dias da sementeira metódica
os dedos ungidos por deuses sem nome
os corpos fundidos na chuva torrencial.
Não é o adeus que combina o verbo imperial
nem a angústia que se abraça ao mastro inocente
e da rua trago um lenço cheio de versos.
Até o oxalá se esgota no crepúsculo avoengo
em gotas pequenas que esbarram na pele madura
daqui ao mundo em frágeis teclas ciciadas.
A orelha de Van Gogh,
ou a de Niki Lauda;
não a outra
atingida de raspão
por um tiro amigo.
A dança que comanda o corpo amanhece o sal que fala pela pele.
Guardo os sonhos para páginas de um tempo futuro, a moldura onde os rostos não cabem.
As fronteiras são a aposta da imaginação.
E nós, seus mecenas, só à espera das viagens que nos levam ao mundo.
Tenho quantos minutos
para deixar que a boca
seja testa-de-ferro
de meu sentir?
Os campos magnéticos
magníficos
hipnotizam os olhares atestados
são como maestros à prova de bala,
caóticos,
empenhamos na desorganização de tudo
como se um furacão varresse as fronteiras
e sob os escombros
se aproveitassem os destroços sem medo.
Por cada maré
um copo de dia para tomar conta do cais
antes de as embarcações subirem ao mar
cheias de marinheiros contrariados
e de uma faina prometida pela oração do estuário,
ou o penhor que respira por dentro da pele.
As mulheres inteiras esperam
e não rezam
não rezam
para não chamar o azar.
Confiam no sortilégio da maré
esperam do poema
o vencimento de todas as causas.
Cheiram
desde os quartos onde se consuma a solidão
a maresia distante
como se chamassem os maridos
e sob a penumbra
silenciassem as dores da ausência.
O contramestre gasta a voz
contra o mar tempestuoso.
Não sabemos nada;
nada:
se fôssemos marinheiros
qual seria o mandamento da vida
se ao sair de casa
não soubéssemos
se a ela voltaríamos?
O insuspeito dandy
desfila a pose aristocrática
sua é a medida do palco
em constante suspiração diletante.
A displicência metódica
esconde o tratamento subalterno
dedicado aos comuns.
Ao contrário
da teoria que tinha as esporas
a igualdade é só para enganar tolos
e nem é preciso encomendar os bolos.
A realidade desmentia-o
todos os dias:
na repartição de finanças
no café da avenida
na fila para entrar no aeroporto
no número do cartão de cidadão.
Não importava:
os pergaminhos voam alados
e não são ideólogos datados
que os desmontam.
O resto
ficava por conta do bigode excêntrico
da impecável consciência,
e de um inglês com cerrado sotaque de Derby
– como se isso importasse aos demais.
A meio do tempo contado
descobriu-se:
o dandy insuspeito
vota em partidos de esquerda
(e não consta
que seja de trocar quadrantes
nem de ter dissonâncias cognitivas).
Ora, ora
hora a hora.
[Dedicado ao anónimo que, numa caixa de comentários, comentou “hora, hora”]
Os espelhos admirados contorcem o riso
na inviável separação entre dia e noite
logo quando a penumbra extradita a luz clara
e muitos se exilam num muro subterrâneo.
As estrelas querem beijar a terra
ao que parece:
o tumulto contínuo açambarca as horas pálidas
arranjam foros de medo
que se estende por cima dos horizontes.
Num sonho por amanhecer
os pés vagueiam em cima de nenúfares
combinando os violinos pontuais
com a matéria que desembaraça a noite.
Em dias assim sombrios
na boca estalam palavras frugais
antes que sejam idioma em rota de colisão
com a gramática
antes que possam vir a ser
literatura deitada no penhor/da visibilidade,
literatura em desfado lancinante.
As palavras não deviam dormir em espelhos
disse um poeta
bebendo na excentricidade
de que se diz mecenas:
deitem-se às candeias as frases soltas
posfácios de edições prometidas
ou meras declinações de estados de espírito
(se é que se pode aceitar
a existência de espíritos.)
Um pai gasto ensina o resto;
as aguarelas fogem da tela
odeiam molduras
têm-nas como cárceres enegrecidos
vertendo ferrugem sobre o pensamento.
Amanhã será manhã outra vez.
E nós
combinados com as estrofes inaugurais
ciciamos a moratória do medo
contentes por não sermos reféns de tatuagens
que escondem os poros puros
que à pele têm como matriz.
Uma coleção de monos
que tanto cheiram a naftalina
e nem assim
previnem o caruncho.
[Instruções para uma vista de pássaro sobre as instituições à sua volta]
Os cães
estão sempre de atalaia
ladram repetidamente
estilhaçando o silêncio da noite.
Dizem
que não mordem
se calhar
porque de tanto ladrarem
ficam doídos os maxilares
e anestesiados os dentes,
ou então é só para provar
que o muito ladrar não quadra
com as mandíbulas certeiras
que despedaçam carne exposta
de gente alheia
que ao perímetro dos cães vier.
Ou então
é só para confirmar
que os cães se inspiram nos homens
e as gongóricas vozes de protesto
depressa são amansadas
com a acepipe certo.
Sem remorsos por contar
os dias fazem-se feridas abertas
e o tempo mastiga o sangue à mostra
como mosto de um ódio fermentado.