O que vemos
pelo olho cego
do poeta?
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Sem saber o que saber
atirei os dados ao seu sortilégio.
não sei se sairia um amanhã
ou a repetição de passados
intermináveis;
se seria amnistiado por um fado elevado
ou por uma estrada inclinada e sinuosa;
se haveria de vir à fala
ou ficaria aprisionado ao silêncio;
se seria eu a varrer as cinzas de antanho
ou a admirar o poente ao entardecer;
ainda hoje
já não sei quantas luas depois
ainda estou à espera
de saber pelo saber
o que o saber tem
para eu aprender.
Mando-me às mangas arregaçadas
destapo o mapa sísmico
onde a força se admite
ganho o corpo de ametista
e deixo em legado um léxico frutado
no promontório por onde entram as marés.
Cuido dos sentidos
na procuração da luz clara
contando os dias na aritmética nua.
Às vezes tusso para fingir o medo
ou para fugir dos fretes avezados na rotina
para depois escolher o exílio
e de mim esconder o espectro assanhado.
Outras vezes
só me apetece não saber dos dias
beber do vinho fecundo que atrasa o tempo
e deixar por conta das folhas caducas
o remoço que ascende da corrente funda
que pertence ao caudal intransigente.
Mil os sóis que se põem
outros tantos são os alvores
prometidos.
Os olhos embebidos no sono
a jura da madrugada
e de trespasso
os sonhos atiram-se
para dentro de outras vidas
verticalmente assíduas.
Mil os sóis que se põem
sem nunca serem ocaso total:
lugares de outras latitudes
acendem o sol
enquanto noutro a noite triunfa.
Os sóis têm de ser mil
eles que nunca têm o sono por atalaia.
Corre à meta sem pressa
a miríade de lugares
espera o olhar demorado
uma estrofe amadora
um par de fotografias
a emoldurar o tempo dedicado.
Estende a mão indulgente
ele são tantos os errantes
e podem aprender
com os transvios que frequentaste.
Adormece no lado errado da lua
não tropeces no engodo da perfeição
que exaustivas são
as juras aos palcos livres de rasuras.
Aproveita
a demora do tempo
não te hipoteques a resoluções
nem te intimides pelas que falhaste
para isso o tempo
é uma medida curta.
Um cânone a mais,
que pretendem como esteio
que não há excesso
quando se fala de cânones.
O maçarico irrompe
subversivo:
anuncia sem ardis
ao que vem:
cânones há
que têm de ser sabotados
e a excessiva existência deles
fará com que ao ato beligerante
seja ao acaso.
No final
quando o desembaraço da pendência
for constituído
se dirá
o que sobra da civilização.
Anoitece o ramo frágil que amadurece no dia.
A valsa sem diuturnidades cobra um estipêndio
não é de lama que se eviscera um nome
no provérbio de causas alinhadas com as árvores.
Diziam:
não te deixes retalhar pelos arneses cómodos
não sejas aquele que diz a última palavra
não aninhes a cabeça no pomar onde cantam
suseranos impecavelmente cativos de ninharias.
O que não diziam
era como atingir com os dedos
o sumptuoso tesouro apalavrado nas intenções
onde procurar a escotilha desembaciada
o que fazer com toda esta fortuna
que não cabe dentro de números
a solene didascália que perfuma dias militantes
entre camadas de nevoeiro outonal
e as bocas que bolçam liberdade.
O entardecer
transigindo na sardónica solidão
emudecia o sol;
a noite
é sempre uma pátria sem certezas
o lugar desabitado que suplica os sonhos
a tabela de marés perfumada por jasmim
a voz cavernosa do comandante
quando põe os homens em sentido
e os malditos desumorados
que fogem do destino
como eu fujo
de canja.
Está é a minha sindicância
o plateau debruado a purpurinas de nada
a voz miada pelo canto dos olhos
o dissabor escondido em pepel de alumínio
ou uma task-force cheia de testas-de-ferro
gente de impecáveis pergaminhos
e de prosa laudatória e gongórica
num mútuo onanismo que requenta o nanismo.
Os dardos apontados a eles,
companheiros atirados para o lugar dos párias,
apontados sem piedade,
que como eles
detestaríamos ser.
O sismo fende as veias
no grito sancionado
que arruma o medo
em plásticas cores mudas.
Tolhe os músculos
convocando o magma fundo
sem deixar sem freio
a boca destemida.
Se admite vozes malsãs
em vez de concórdia banal
procura os sons dissidentes
como mnemónica da noite selada.
Entregue à sonoplastia cirúrgica
em marés iconoclastas
grutas sem claridade entreaberta
e escadas à prova de corrimão.
Os violinos não desdenham
paradas de multidões em silêncio
são eles os feitores dos sons
sobrepostos aos emudecidos corpos.
Nem de todos é ambição
travar conhecimento
com dias melhores,
se conhecimento tal for travado.
Se forem de ouro os dentes que mentem
as mentiras são mais valiosas?
Se for omisso de dentes
o mitómano deixa de o ser?
Se os dentes estremecerem durante a função
a mentira aparece desfocada?
Se a mentira for dita com a boca cheia
os perdigotos são os seus vestígios?
Se a boca for alvo de um soco
a mentira é devolvida à procedência?
Se a boca ficar fechada
a mentira engolida já não é mentira?
As mãos a ferro
tiram do fogo a fala telúrica
como se nelas habitasse
a lava exuberante.
Sem o medo do tempo
as fragas em convulsão estremecem
a pele açambarcada à noite densa
e todas as preces que se estimam
escondem do dia as mentiras puídas.
Falamos como as árvores
a sua pele que nasce com rugas
estaciona nos apeadeiros vagos
e contemplamos os vasos que latejam
nas estrofes que sobem a rua
as estrofes cúmplices da lua.
Somos estes corpos sem amarras
o sono crepuscular que recusa adamastores
tribunal supremo que ilude os usos
e do mar retiramos a gramática
nos despojos de uma maré esfíngica.
Pedem-nos para sermos tutores
de ventos sem paradeiro
e emprestamos os dedos
como astrolábios que os conduzem.
Os dias sem chapéu
são como os dedos com ferida
lambidos por limões exasperados.
Defumados os seus ossos
não fica à mostra sequer a silhueta:
os dias
foram consumidos até ao magna
seu será um futuro arquiva
no hemisfério sem arestas
que paira sobre fantasmas hediondos.
Não são altivas
as noites que se despedem dos déspotas
a bem do sono ensaiam o esconjuro
das palavras amaldiçoadas;
não fujo
nem finjo
as folhas quase caducas
não tarda
atapetam o chão
como se os pés cansados de tanto chão
precisassem de levitar numa cama-sepultura.
Os demónios ficam à porta
a minha polícia avessa aos costumes
deixou-os de fora
num diligente perímetro à prova de intrusos.
A mealha que desadultera a manhã
filigrana de ouro puro
a quadrar com a minha incorrigível impureza.
Se não fossem os paradoxos
este lugar
já era insuportável há muito mais tempo.
Suam
os alarmes
talvez as pessoas se assoem
na cadeira última vaga
como soam
as cicatrizes na pele baça
e depois se sentem
no lenço puído
antes de assentarem
a argamassa residual.