Cortamos as palavras em dois
o número tangente de que somos imagem.
Subimos a noite desimpedida
no ecoar das luzes que falam no nosso sangue,
a atalaia aos mundos profundos
uma simples mão pousada na outra
depondo o outubro fecundo.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Cortamos as palavras em dois
o número tangente de que somos imagem.
Subimos a noite desimpedida
no ecoar das luzes que falam no nosso sangue,
a atalaia aos mundos profundos
uma simples mão pousada na outra
depondo o outubro fecundo.
Seus
os olhos amanhecidos
como se aos céus fossem
e os lençóis amortalhados
a metamorfose de uma trincheira
onde o único arsenal admitido
é dos corpos que falam com o desejo.
Desta matéria feito
viro o dia do avesso
e não encontro as costuras
– o fundo falso tirou ao acaso
um sortilégio.
As flores mudam o campo
que deixa de estar mudo
ecoando o seu peito farto
pela voz centrípeta das flores.
No meio da ponte
parece que só há
o rio sobranceiro ao precipício
a consumição das tonturas.
Digo:
é nas ruas onde o medo se emaranha
que somos além do que intuímos
aproveitando cada braçada
para amealhar mais gramas
para a existência inquieta.
Dizem-me
para não dar atenção ao tempo
para abandonar o corpo aos espíritos que adejam
e eu
teimosamente
respiro o vento cortante
aparo o sol com os dedos encadeados
sulco o dia vívido
nos labirintos que me ocupam
e deixo à memória futura
o encantamento escondido
tantas vezes obliterado
o encantamento que se acanha
nos provérbios gastos pela usura
na conspiração que teço
só para ficar longe da entronização.
Desocupo as montanhas
que me separam do mar;
afugento as sílabas cortadas
as passagens de nível tão desejadas
pelos aspirantes a subir de degrau
que o estatuto não me deixa enamorado
e não preciso
já nesta idade não jovem
de sentir o regaço
de todos os que se candidatem ao meu amparo.
Prefiro as coisas na sua lhaneza
os dias sem vestígios de sua memória
o beijo de umas mãos estrelares
os vícios sem redenção
um lugar apurado na pequenez dos lugares
só para ter a companhia
dos exilados de todas as estirpes.
Fujo das luzes maçónicas
das suas malsãs divisas
e ainda mais
de quem se aliste para o infausto
da condecoração.
Tiro ao acaso um número:
já não me lembro qual foi
mas era melhor do que o que consta
no rodapé do dia.
Destemido
o invulgar calar
ante a intransigente erupção.
A escolha
tem aval dos penhores
as ávidas sílabas
que atropelam as frases.
Não evaporo
os medos estilhaçados
nos ramos quebrados
à mercê
do vento que foge do norte.
Um parágrafo
um parágrafo derradeiro
a estrofe liminar levita entre o embaraço:
empresto a assinatura dos nomes outros.
As assoalhadas que sejam
não tirem saúde à aorta
nem apetite
que desenha a gula do futuro.
Por mal me desenharem
ando por aqui
mortiço
ou apenas caveado
nesta mentira
de que se celebra
assim tão incorrigível
misantropo.
Se o nevoeiro
tirasse as medidas
pela cor do meu sangue
ficava ainda um pouco mais
cerrado.
Já alguém perguntou
nessas guerras que por aí há
qual é o preço de uma bomba
atirada ao inimigo?
Não menos diamante
do que (n)os dias pretéritos
o corpo atira-se ao porvir
com uma febre inaugural.
Alguém disse:
os lamentos deviam passar pela balança
para sabermos quanto tempo levam
a curar.
Outros propuseram:
não se esqueçam da fita métrica
que toma as medidas da angústia
para sabermos das horas por que
desandamos.
Pelo silêncio dos demais
dir-se-ia
que não alinham
nos modismos das convenções
e preferem
a incaracterística anomia das métricas;
recomendam esta austeridade
como critério
para ao menos fingir
que os malefícios que entortam os dias
são encomendados a uma anestesia geral.
Às vezes
povoava a cidade
com as cores do meu sorriso.
Enfeitava-a com os dedos desassisados
ela precisava de desarrumação
esconjurava as caricaturas andantes
jurava então um despojamento freático
virada do avesso
até ser cais dos pássaros itinerantes.
E a cidade mudava de rosto
todos os dias
como se as ruas mudassem de lugar
ou sem mudarem de lugar
mudassem só de nome
vomitando o cimento inerte
amordaçando
os procuradores dos bons costumes
naufragados num rio sem paradeiro.
Os que juravam orfandade
Sitiados pela metamorfose da cidade
condenados a serem nómadas
sem saírem do lugar
arrepiados pela contrafação de si mesmos
limitavam-se a bolçar o silêncio arrependido.
De dia
reinou o eclipse;
à noite
dominou uma versão remendada
de um vulto qualquer,
o espantalho menor
numa litania silvestre.
Até que a noite
fosse despojada do negrume
e todos as personagens temíveis
ao sono se deitassem.
No vagar das luas demoradas
chamo pelo teu nome.
Espero
na empreitada de generais sem arsenal
os braços nus;
eis a herança que deixo
para memória futura.
Escolho os baldios como pátria
prefiro às cidades onde
puídas
habitam as pessoas que jogam ao acaso
e se perdem num labirinto de incenso
atiradas à sua decadência.
Pelos ombros da tarde
vigio as janelas arrumadas
que esperam pelo ocaso.
Não pedimos lume à noite
as ramagens adormeceram sob os auspícios
do vento entretanto omisso.
Digo o teu nome
e o teu rosto
o teu corpo dádiva
sobem ao promontório destemido
e as estrofes vulneráveis
tornam-se o idioma que nos faz falar.
É este desembaraço
o vento que leva o rosto livre
o silêncio emudecido pelo avesso
o apogeu sem fronteiras.
Falsete no avesso de um dia arrefecido
os escombros ainda válidos
murmuram nos ouvidos não precatados.
O vinho anestesia o sangue:
é disso que precisa
uma providência cautelar ao dia constante
como se atrás viesse uma espada apurada
e o sangue se derramasse nas provetas do medo.
O mosto ainda quente alisa o chão sinuoso
e da pele tingida sobram as pétalas matinais
estrofes avivadas nas tatuagens sem sono.
Da hibernação voluntária
amadurece o desamanhã que importa:
um forte tumulto abraçado à carne suada.
Um sabre propedêutico
a descer sobre a indigência atrevida
para dela se dizer
que está em vias de extinção.