Mãos que, por gastas,
esperam pelo tardio anoitecer
entregam-se à lua forte
em promessas fundas, telúricas.
16.9.16
Convalescença
Sob
o peso das nuvens de chumbo
dizem:
não
temos nada a temer.
Os
fumos densos
não
trazem rios de lividez
não
desassossegam as almas fartas.
Diante
dos trôpegos madraços
desdizemos
a má fortuna
que
cobiçam aos demais.
Talvez
desenhássemos
círculos
perfeitos na orla das nuvens
a
tempo de sermos soberanos.
Ou
então
atrás
das coisas escondidas
sob
a penumbra encavalitada
tirávamos
à sorte as ruas dardejadas
em
danças rituais à medida dos loucos.
Dos
loucos de que invejamos estatuto
à
espera da desunião entre os elementos axiais
e
das nótulas que,
prolixas,
desinquietam
os próceres da altivez.
Até
sermos todos gente meã
e
de um lugar térreo deixarmos de nós
o
sumo abundante e mélico.
15.9.16
#70
Aplausos
com as mãos cheias
nas
piscinas a abarrotar
entre
peixes transparentes
e
ingénuos acreditadores de tudo.
O mau elemento
Atirem
toda a artilharia
os
impropérios e os dardos envenenados
as
flores podres e o pão bolorento
o
opróbrio sancionatório
que
faz descer a vergonha.
Atirem
tudo de mau ao mau elemento
que,
ao
mau ser,
mereceu
todos os males cominados.
Não
se cansou das torpezas
não
largou a insídia de mão
não
ganhou para sustos ao fintar demónios
não
quis semear simpatia
no
púlpito de onde assobiava perfídia.
Desdenhou
vociferou
atraiçoou
mentiu
manipulou
distorceu
disfarçou
esbofeteou
(fracos)
fez
chover deslealdade
ganhou
foros de desagradável personagem
ufanando-se
de pergaminhos tais.
Findado
o reinado de aleivosias
à
mercê do julgamento dos outros
de
todos os outros
–
dos que aleijou
e
dos que foram testemunhas dos danos noutros
–
mantém-se impassível
cabisbaixo
estremunhado.
Compõe
o ar compungido de vítima.
Vítima
de si mesmo.
E
agora
que
sobre ele todo o mal se abate
e
sofre
com
a devolução das maldades dantes palco
monta
outro teatro doloso:
sem
entoar as palavras
substitui-as
pelo rosto condoído
que
suplica por misericórdia.
Enfim
a
misericórdia entrou
no
catálogo da sua pessoal gramática.
14.9.16
Diamante
Em
tempos
uma
lágrima inspirada
em
rosto impassível:
daria
fortunas para ser herói.
Mas
esses eram tempos
em
que não sabia nada
julgando
muito ser o meu saber.
Hoje
desautorizo
os campos férteis
de
onde medram os saberes.
Prefiro
as interrogações
colocar
pontos de interrogação
em
finais de frase
desenhar
perguntas sem a ousadia
das
respostas
beber
dos cálices de onde escorre,
em
forma de lágrima,
o
seu suor lento.
Ainda
não sei
se
é isto o saber.
13.9.16
Papel timbrado
I
Arrumados os papéis
que levantaram voo na intempérie
com a autorização de uma distração
que deixou aberta uma janela.
As lajes molhadas soltam um odor quente
e o musgo vertido nas lajes
não tem vastidão no molhado que se deitou.
Um pequeno papel
ficou preso à pedra molhada.
De tanta a chuva que enegreceu o dia
o papel depressa se dissolveu
na indiferença das coisas que perecem.
II
A máquina tosse um fumo intermitente;
o engenheiro consulta o manual de instruções
enquanto o operário ensaia hipóteses:
sugere que a tosse é da ferrugem
o selo da vetusta idade da pobre máquina.
O engenheiro contraria o operário,
sem disfarçar irritação,
à medida que entreolha as páginas do manual
e continua sem saber o que elas ensinam:
o manual estava escrito numa língua arrevesada.
III
O meteorologista advertia:
uma borrasca está para chegar.
Avisos seguintes consequentes com o alarme:
as pessoas deviam fazer como o avestruz
(que esconde a cabeça debaixo do chão)
os marinheiros que olvidassem os mares
os boémios fossem dormir mais cedo
os homens que rondam a noite de perto
abriguem-se do medonho temporal
os homens da terra cuidem das estufas
os pirómanos adiem-se para o estio vindouro.
Quando veio o dia seguinte
todos os cuidados foram em vão
– a borrasca aportara a outras latitudes
e ao homem do tempo descobriram
que era um trapaceiro na matemática.
IV
Se for preciso
se for preciso,
murmurava a mulher jovem
ao ouvido de ninguém.
Cambaleava
enquanto outras vozes suplicavam
uma revoada de nomes.
A mulher não olhava os rostos à volta
rodava sobre a sua cabeça
e atirava os braços ao céu
espetados na vertical do corpo disforme
e gritava,
com voz de ator de teatro
(que dispensa microfones para colocar a voz)
que ninguém fazia tão diligente dança da chuva.
V
O rapaz não sabia a resposta.
Não sabia que horas eram.
Se lhe perguntassem,
não sabia do paradeiro de Aveiro.
Não sabia muitas coisas, o rapaz:
a cor da bandeira da Letónia
o órgão digestivo do tubarão martelo
o nome do subsecretário de Estado das pescas
a fórmula do medicamento para as cefaleias
o aroma do sexo
a trindade que lhe seria subtraída
(quando calhasse)
a raça do cão da vizinha do quarto esquerdo
o nome do pai.
Era o rapaz mais esclarecido da escola.
VI
Palavras ditas como arestas vivas
abusos continuados sobre quem as ouvia
numa incontinência soez que não cabe
num silêncio.
E ficaria melhor fatiota, o silêncio,
de frente para tamanho néscio.
Logicamente
têm os néscios seu lugar
na ordem composta no tabuleiro.
Fosse o contrário,
quem podia determinar
a identidade de um néscio?
Quem poderia habitar nos seus antípodas?
VII
No interior do quarto o aquecedor crepita.
Deve estar um frio de tiritar os dentes.
O homem deita-se sozinho
aconchega o corpo decadente
na dose considerável de cobertores.
Já não se lembra de outra companhia.
O frio não incomoda
nem tanto a solidão.
O stock de conhaque é farto
e o resto deixou de importar.
VIII
De que era feito o gelado?
O fabricante tinha pergaminhos honestos?
Mentiria nas letras microscópicas descrevendo
os ingredientes do gelado?
Os operários lavam as mãos
antes de fabricarem gelados?
Tiveram uma noite bem dormida?
Algum deles foi de férias para as termas?
Comem gelados à sobremesa?
Deixam que a descendência coma gelados?
IX
Dias inteiros sem saber da chave do cofre.
Dias inteiros sem saber o que continha o cofre.
Dias inteiros sem saber o que era um cofre.
Dias inteiros com o tesouro num bolso.
Dias inteiros enlaçada às lágrimas.
Dias inteiros
na opereta que era a sombra da sombra da vida.
Dias inteiros de leque em riste
em pose fidalga
escondendo o lado oculto
(o de mulher fácil).
X
Montanhas sem pedra
praias sem eco
eruditos sem óculos
estroinas sem licor
sacerdotes sem pudor
ascetas sem estética
lagos sem nenúfares
teatros sem solenidade
varandas sem bainhas
arenas sem suor
velhos sem negrume
batistérios sem raízes
loucos sem estrias
cães sem travões
professores sem voz
crianças sem cheiro
sabores sem remorsos
amores sem lugar
fatiotas sem corpo
heróis sem proezas
homens sem causas
juízes sem juízo.
XI
Noves fora, nada.
Metam-se aspas nas palavras
sequem-nas por dentro
antes que se precipitem sobre os ingénuos.
Juntem-se as cinzas depostas
até se intuir sua origem estática,
antes de bolores de atalaia tomarem,
como colónia,
as paredes frias onde descansam as mãos.
Até que o pano final desça sobre o palco
e os atores nos mandem para casa.
12.9.16
#69
Dirão
os homens afogados em desgraça
que a falta de graça
provém dos beijos adiados
ou de serem eremitas sem remédio?
os homens afogados em desgraça
que a falta de graça
provém dos beijos adiados
ou de serem eremitas sem remédio?
O lobo senescente
O lobo ferido vacila.
Lambe incessantemente a ferida na pata
acoitado num ermo fundo
para não se tornar presa.
Não dorme há algumas noites.
Tem tempo para evocar caçadas de antanho
quando era,
entre os da matilha,
o mais desembaraçado
o mais diligente.
O inchaço na pata não recua
e o lobo sente fraquejar.
Caiu no sono.
Sonhou que já não estava ferido
e que tudo se recompusera
nas suas formas originais.
Mas era só um sonho.
O derradeiro.
11.9.16
Simplicidade
Cai
uma vez
por
dia.
(Não
mais.)
Deixa
vir à roupa a aspereza do chão.
Sai
uma vez
ao
calhas.
(Talvez.)
Respira
o orvalho no tirocínio da lua.
Vai
uma vez
sob
anonimato.
(Sem
medo.)
Derrota
as básculas metálicas que adejam.
Diz
uma vez
uma
vez só.
(Sem
o entardecer.)
Antes
que seque a voz.
10.9.16
Meia-noite
Sombras
diurnas fervem no chão
três
horas antes do ocaso.
Sombras
a destempo
ou
apenas o relento a tomar conta do olhar
tirando
água de dentro de um poço frondoso.
Atira-se
o corpo contra as ondas
e
de dentro do mar vêm polvos agarrados
seixos
perdidos na maré
uma
garrafa romba enredada em algas.
O
âmbar do céu conta histórias perdidas
enredos
impensáveis
ecoando
no travejamento da casa desocupada.
Por
favor
(reza
a súplica)
por
favor
desembrulha
o céu cheio de veias podres
deixa-o
medrar
nos
abjetos estorvos encaminhados
deixa
os
abjetos estorvos
fadados
ao descaminho.
Ou
podem as viúvas tristonhas sair à rua
com
gatos adormecidos a tiracolo
preces
repetidas, monocórdicas
vozes
condoídas pela desgraça imorredoira
extasiar
diademas demoníacos pressagiados.
Não
quero ser notário dos inditosos oráculos
ou
coveiro das representações da desgraça.
Só
quero um banco de jardim
o
jardim sem gente
a
noite estremunhada
vinho
doce
beijos
sem dor
árvores
como pano de fundo
ao
fundo do meu fundo sem fundo.
Que
o sangue derramado não seja o meu.
No
miradouro escondido da noite
enquanto
as candeias cantam seus reparos
tiro
as algemas do olhar
e
sinto um tremor de terra por dentro
ondas
indomáveis trepando o cais
dentes
mordazes ferrados na carne
destemidos
versos na orla do dia fervente.
Para
dar de mim
o
todo em que me decomponho
sem
vírgulas nem pesares
inteiro
corpóreo
sagaz
o
peito farto à espera do que houver
ancoradouro.
9.9.16
#67
Que a pressa toda
somada ao tridente arcaico
detido por um demónio sem dentes
se vire do avesso
e sejam terçados os cuidados a destempo.
somada ao tridente arcaico
detido por um demónio sem dentes
se vire do avesso
e sejam terçados os cuidados a destempo.
Nada
Perdia
o saber ao saber
sem
saber ao certo que saber seria.
Mas
sem saber
o
que o saber sequer seria
como
podia saber
que
perdia o saber ao saber?
Soube
então que nada saberia.
Conclusão
tão avisada
(em
pernalta altivez)
uma
negação de termos comportava:
para
essa conclusão atirar para o estirador
teria
de saber que nada saberia;
o
que já incluiria um módico de saber.
8.9.16
Injustiça
Tesouro talvez putrefacto
um achado na orla do cipreste único.
Revistada a arca em decomposição
o achado de um tesouro intacto.
O cipreste doou a sombra-escudo
e o exato grau de humidade
como se as raízes escondidas no tesouro
macerassem em formol.
Hoje
ergue-se lápide ao achamento do tesouro
(e uma nação inteira extasia-se na abastança).
Ninguém evocou as proezas do cipreste.
7.9.16
#66
Deitados nos braços da árvore maior
bebíamos a cor translúcida das palavras
e tínhamos apenas o tempo nas mãos
como penhor.
Ipso facto
Das formulações limpas em sinfonia de pureza
sem entorses ou viés
tal como se enfeitam as manhãs redondas,
proclamação.
Deixando de fora os frutos apodrecidos
as palavras enegrecidas
o couro carpido por mãos pueris
todas as estradas mal atapetadas
as artes que são desarte.
Recolhendo
no regaço das mãos hospitaleiras
os diademas cinzelados a preceito
os lugares sem conhecimento
os factos arrumados num livro de pedras
com os diamantes em ornamento final
e um beijo quente na boca sedenta.
E sabemos
fazer coro com os factos risíveis
para não sermos dados em penhor
aos sacerdotes da infâmia.
6.9.16
Cabalística
Uma adivinha com acerto.
Dois olhos pensativos juntam as baias do mundo.
Três amigos sentados em pura estarolice.
Quatro limões para a sangria dos desejos.
Cinco dedos no chão travejado por ramos fundos.
Seis lanços de escada a separarem do miradouro.
Sete semanas sem respostas.
Oito apóstolos da religião reinventada.
Nove as vezes que fora a Paris.
Dez sapatos e uma dúvida persistente.
Onze pratos e o farto repasto amesendado.
Doze estradas e um cálice a temperar a decisão.
Treze gatos negros
e nem um clarão supersticioso.
Catorze almas juntas no jardim
jogando à mesa de um jogo que passa o tempo.
Quinze noites seguidas de sono incomodado.
Dezasseis beijos sem interrupção.
Dezassete diamantes em trovas subterrâneas.
Dezoito pernas indistintas
em contorções lúbricas.
Dezanove cães à espera dos mantimentos.
Vinte quadros abertos aos olhos ávidos.
Vinte e um segredos que ninguém quer saber.
Vinte e dois sacerdotes redimem uma multidão.
Vinte e três pecadores não querem redenções.
Vinte e quatro políticos
tomados pelo ardil da corrupção.
Vinte e cinco louvores
depostos em cerimónia solene,
anos depois.
Vinte e seis baraços diligentemente apostos
no pescoço das bestas.
Vinte e sete meses antes
de serem vinte e oito os anos cumpridos
em exílio.
5.9.16
#65
Relógios entediados meteram greve:
as agendas, em desesperado espernear
e o mundo (quase) inteiro com medo
que amanhã não chegue a ser amanhã.
Nomes
Digam
os nomes com a lonjura de rosas
digam
os nomes esconjurados
em
noites desassossegadas
digam
os nomes do avesso e sem águas-furtadas
digam,
principalmente,
os
nomes proscritos
em
maus hábitos sanitários depostos
nas
mãos de tutores de tudo o resto.
Digam
os nomes.
Digam
nomes.
Digam.
Mas
não parem de os dizer
em
continuadas proclamações solenes
que
o pronunciamento dos nomes
restitui
a coutada da personalidade.
Digam
os nomes todos
sem
o temor reverencial perante uns nomes
nem
a indiferença que adeja
sobre
os nomes anónimos.
Deixem
os nomes respirar por si
depois
de os elevar a um púlpito sem lugar
e
neles ditar a consagração dos nomes
dos
nomes todos.
Pois
se não somos só
nomes
vertidos em documentos
somos,
ao menos,
a
garantia salada na distinção dos nomes.
Dos nomes que nos dão nome.
Subscrever:
Mensagens (Atom)