5.3.21

Contas trocadas

Eram as cores baças

que tingiam as açucenas

ecoando na avenida melancólica,

como se a véspera de primavera

fosse o presságio do outono.

Já se sabe

“anda tudo trocado”

e a voz popular engana-se

com estrondoso sucesso.

Se ao menos 

as cores se avivassem

ninguém mentia 

ao outono tardio.

#1932

[Crónicas do vírus, DIV]

 

O embargo do futuro

na exasperação do presente.

4.3.21

Fogo cruzado

Disponho os garfos fundentes

na mnemónica das mãos quentes

e faço da reserva mental,

com o aparato da discrição,

a água que emerge da maré.

 

Não sei quantas balas preciso

para o tear da paz;

desconfio que sejam muitas,

incontáveis balas,

murmura o engenheiro da sabedoria

enquanto à minha volta

não vejo rostos nem sinto nomes.

 

Revejo expressões idiomáticas;

são tão irrisórias

que mais deviam ser

expressões imbecilocráticas.

 

Lá vêm as balas

cobertas com o bolor dos arcanos

rangendo metáforas demenciais

convencidas que falam mais alto

do que as palavras.

As balas caem no vazio.

Espera-se que a sua quentura

seja o lugar-comum que sepulta

os estultos.

 

Deste fogo cruzado

não quero participação.

As vítimas inocentes,

uma contradição de termos,

são incineradas no vagão ferrugento

que desaprova a lucidez.

São a prova do bestiário 

que é o palco do mundo.

#1931

[Crónicas do vírus, DIII]

 

Do espírito de contradição:

misantropo incorrigível,

agora

a rua era o melhor habitat.

3.3.21

Feira da ladra

Nunca o lixo

esteve tão perto

do luxo.

E o luxo

lambendo as feridas do lixo

perdeu a marca registada.

A franquia do luxo-lixo

tornou-se lugar-comum.

Mas ao lixo

nunca se chamava

um luxo.

#1930

[Crónicas do vírus, DII]

 

Uma estrela

com sua luz nascente

dissolve aos poucos

o céu pesado.

2.3.21

Pressuposto

Este burocrático bocejo

partilha do mesmo bacelo

a matéria nua no póstumo adiar.

O medo desarmadilhado

concebe-se na ousadia dos imberbes.

Deitam-se os números ao acaso

e o rosto cobre-se de um verbo venal:

não há nada que possa ser mudo

na consoante que desimagina um dia

o fardamento puído no mar prometido

enquanto a boca fala e fala

às catedrais fingidas no meio dos espectros.

#1929

[Crónicas do vírus, DI]

 

O murmúrio 

de uma voz sem nome

levanta o véu

de um sol impaciente.

1.3.21

Improvavelmente

Não quiseram cancelar deus

dentro do prazo

e ficaram com deus imorredoiro,

um deus sentado a adejar sobre eles,

sem saberem que serventia lhe dar.

Aos chamamentos contínuos

o silêncio estrutural.

Podiam não ter cancelado deus

a tempo

mas deus já os tinha desterrado

para a pátria dos mudos

(o que ia dar ao mesmo).

Não cancelaram deus

dentro do prazo:

deus antecipou-se.

E eles,

insubmissos mortais,

guardaram para si

o diamante da ousadia:

deus não está no meio de nós,

disseram em desdém,

que a eles,

mudos por divino decreto,

deus não ouvia.

#1928

[Crónicas do vírus, D]

 

Como a água barrenta do Douro

alvejada quando o mar a abraça,

esperamos pelo dia depois da peste.

28.2.21

Manual da resignação ao socialismo

O corso 

penhora o viés 

dos feiticeiros.

Em vez 

de pautas autênticas

os trovadores falam

de luas esquecidas

e embaciam os olhos

em luras fingidas.

O cidadão,

disbúlico,

fermenta o paternalismo

enquanto protesta

contra a presença perene

dos mandantes.

#1927

[Crónicas do vírus, CDXCIX]

 

Logo nós 

– arrumavam o fastio,

antes que fosse cedo de mais.

27.2.21

#1926

[Crónicas do vírus, CDXCVIII]

 

A peste

é um parêntesis no tempo

ou a confirmação de que somos

uma grande mentira.

26.2.21

Semântica em coreografia reescrita

A caligrafia

no pranto sem meada,

visível embaraço.

Segredam:

é a apoteose

e as vírgulas parecem

estar de acordo

tal como os sábios

esquecidos da sua erudição.

Doravante,

só há planícies

– planícies e súplicas.

O riso calcificado

desamanhece,

estorva a prosápia dos aspirantes.

Se ao menos se soubesse

do paradeiro da gramática

e não houvesse terroristas do idioma

o apogeu teria lugar

para além do dicionário.

#1925

[Crónicas do vírus, CDXCVII]

 

Não é tanto

o estado de sítio

mas o sítio do des-Estado.

25.2.21

Caudal

Onde o rio torce o braço

e o poente se esconde

nas costas dos socalcos

o feixe de luz habita a janela

ciciando o ocaso.

Onde o rio torce o braço;

antes que os poetas acordem

e tragam para a moldura

o bojo dos almirantes da palavra

e esta,

desenhadora,

amanheça em camadas de sentido

destronando as comendas dos avoengos.

#1924

[Crónicas do vírus, CDXCVI]

 

À medida que o passo avança

um deserto

que parece não ter fim

e devora a paciência.

24.2.21

Exílio

Esconjurado o fogo ávido

os corpos deitados pelo chão

sobre tapetes puídos

exalam o sacrifício do medo

enquanto pela portada

um clarão se projeta na parede.

 

Até parece

que a parede 

não está encardida.

 

Os projetos de passado

imersos no bolso do avesso

como se houvesse oráculos

e dos oráculos pudéssemos pedir

o futuro emprestado.

Não se confia na resistência de materiais

depois de tantas labaredas

e de quase tudo consumido no planalto

onde os espectros ficam longe.

 

Imaginamos a maré que rasteja até ao areal:

os pequenos despojos de água

fundidos na areia

como acontece

com a memória que atravessa o tempo

e se encerra em pontes herméticas,

o lugarejo ermo onde avança o rosto

contra as espadas que dinamitam o sono

em estilhaços que tornam o dia impuro.

 

Amanhã faz-se o resto.

 

A vassoura está perdida

e os vestígios ainda fumegantes 

bolçam uma maldição,

uma maldição qualquer,

anónima,

ergástula,

o condoído lamento

que saciado na anemia.

 

Atravessam-se as portas 

que se julgava fechadas.

 

Os amotinados não estão no lugar 

– eles nunca estão em lugar algum.

Leiam-se os éditos

nos idiomas que houver por inventariar

e diga-se,

com a voz ornamentada a tinta da china,

que a enxada remexe a terra

à procura dos diamantes prometidos.

 

Os medos não vêm à porta

e no juramento sem cerimónia

enfeitam-se as deusas com a nudez

entre os dedos que as desenham

e as bocas vadias

que nelas encontram sede.

#1923

[Crónicas do vírus, CDXCV]

 

Ao naufrágio de todos

somam-se os regentes.

23.2.21

Fala

Parto sem as chaves da porta

não sei das marés amanhecidas

nas palavras suadas

e aos parapeitos nus devolvo

a fala. 

 

Oxalá seja uma empreitada impura

um daqueles objetos disformes

entoando o salitre atirado longe

e contra os tiranetes categóricos arrimar

a fala. 

 

Concebo-me fecundo aríete

nos despojos de um dia esquecido

arriscando a métrica invalida

e às Desdémonas participo o império

da fala. 

 

No juramento sem lacre

o coração arremete contra o remoinho

onde máscaras sem sentido

patrocinam um medo que não meço

pela fala. 

 

Chego ao estuário que extasia a boca

sem saber dos caminhos demandados

e todavia rasurei as arestas sem previsão

num anoitecer sem angústia à mercê 

da fala. 

 

Na fala que me concebe

arrumo as palavras mortas

contra as armaduras tomadas por vultos

antes que seja a espera a minha consumição

na fala em que me concebo.

#1922

[Crónicas do vírus, CDXCIV]

 

Nos despojos da invasão

arrematamos um olhar aprendiz.

22.2.21

Os meses são desiguais e ainda ninguém protestou

Os calendários são armadilhas:

a transfusão de dias

deixam-nos desiguais.

Todavia

não consta

que fevereiro se queixe de nanismo

nem que maio ou outubro

protestem contra a engorda forjada

ou que junho e novembro

desaprovem a dieta à força

ou que dezembro e janeiro

e julho e agosto

se amotinem por serem desiguais 

na alternância de meses desiguais.

Está é uma desigualdade

sem paladinos 

a quererem ditar a sua correção.

#1921

[Crónicas do vírus, CDXCIII]

 

Damos abraços

ao pesadelo duradouro

sob o vento ancião

que protesta 

um arrepio de apocalipse. 

21.2.21

#1920

[Crónicas do vírus, CDXCII]

 

A peste em bruto:

as juras que ficaram

desautorizadas.

20.2.21

#1919

[Crónicas do vírus, CDXCI]

 

A cólera,

um outro preço

da peste.

19.2.21

Moscatel

As curvas do rio

acordam da penumbra.

Ordenam as palavras dispersas

enquanto os patamares esperam:

esta noite

não é vitral do luar;

é o santuário do pecado.

Às escuras

as curvas do rio

apenas o pressentem.

#1918

[Crónicas do vírus, CDXC]

 

Amanhã

quando for o lugar desse amanhã

seremos anagrama

do que já fomos.

#1917

[Crónicas do vírus, CDLXXXIX]

 

Procuramos outra proteína

nas entrelinhas do labirinto.

18.2.21

Diagrama

Não se esconjuram

os pesadelos

que desornamentam a noite

nas ogivas decadentes da catedral.

Os estrénuos artífices 

conjugam as sílabas 

fazem-nas rimar com a saliva dos lobos

e colhem na mão nua

o fio denso da manhã.

Não anoitecem,

as estrofes adiadas:

esperam pela fortaleza furtiva

e aquartelam os pesares,

até às notícias tardias

selarem as bocas já de si

emudecidas.

#1916

[Crónicas do vírus, CDLXXXVIII]

 

Este tempo de parábolas,

as mãos a empurrá-lo

para trás.