Disse à gema de ovo
que emudece sem a clara
– ou não fosse a clara
a ditar a transparência do ovo.
Houvesse mais gente
a aprender a lição
e dispensadas seriam
as sistemáticas operações de limpeza
que ocupam os braços da justiça.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Disse à gema de ovo
que emudece sem a clara
– ou não fosse a clara
a ditar a transparência do ovo.
Houvesse mais gente
a aprender a lição
e dispensadas seriam
as sistemáticas operações de limpeza
que ocupam os braços da justiça.
Se o que dizemos
precisa de suspensórios
queremos arneses
tutores lisonjeiros que dão aval às palavras
estetas desabridos no coração da moral
um sofá rombo para exercer a preguiça.
Se o que dizemos
se subleva contra nós
não desistimos da fala
nem do consagrado direito a asnear
ou de perfumar os dias com a liberdade
de apenas
ser.
As maldições escaninhas
as que se insinuam entre teias de areia
ficam por conta de quem as tutela.
Nós
só queremos
um gelado ao entardecer
o calor da mão amada
um jardim bucólico como exílio
os filhos a espigar
e todos os ocasos que pressentem
a aurora consecutiva.
Já que a ninguém
é dado acasalar com misérias
tirar a barriga delas
é bom conselheiro.
Sem entrarem na boca do lobo
os rebeldes
disputam a coroa de vadio:
é um disparatar à toa
como se não soubessem os nomes
e forjassem um despudor de alma
que não passa de uma farsa.
Soubessem
que ser vadio não é injúria
e não participavam
neste cortejo de agravos
não reconhecidos.
Um vago rumor nos bastidores
a melancólica nuvem a descer do passado
e um estirador à espera de intenção.
O fogo que arrefece o labirinto
o revés assimilado no alfobre dos embaixadores
a litania que corre atrás das falas excessivas
a espuma escondida atrás dos néones
os nomes exaustos que moram no cais
os rostos emudecidos na solidão imprevista
as saias a fazerem de cortinas
o palco esburacado onde só mora o escol
as baionetas descontinuadas por medo do futuro
um leve beijo que acetina a pele
a prole devida em abundantes presunções
o leito cabal à procura de cabimento
o cabaz sem nome que ensaia o exílio
a amadurecida combustão sem espera
os tiranetes depostos em ato sem impugnação
a memória resguardada dos segredos embaciados.
Do espelho
estilhaços avulsos
a mudez invernal
a súplica de um luar.
Os braços
avalistas das bandeiras
arremetem contra a sisudez
dicionários dos dias sem sombra.
As montanhas
silhueta capaz
ensinam a lucidez
a peregrinos da altivez.
Rejeitados
os demónios extravagantes
emudecem por dentro
apaga-se a chama dantes temida.
O amanhecer
verbo nunca gasto de simplicidade
amarrota os rostos estremunhados
desanunciando os tradutores do desassossego.
Esbraceja o ódio antes que seja futuro
dá-o como património de colóquios
manifestos vários em forma de arte
fantasmas sopesados com o jugo cirúrgico
de quem fabrica oráculos.
Sê tu o agente que fermenta o ódio
o desambientado embaixador de radicais
o desbocado comparador de Histórias sem igual.
E depois
quando a profecia que
(parece)
queres revelada
tiver aquiescência pela mesa de voto
não digas que te esqueceste de forjar
tão profana profecia.
Remexes a areia
com as mãos molhadas
participas no esconderijo
onde as coisas são a sua negação.
O sol espreita entre as rugas
enxuga as lágrimas amanhecidas
no leito insistente do nevoeiro.
Os olhos crepusculares
decantam a luz agitada
traduzem sílaba por sílaba
o sortilégio animado
pelas falas que despontam.
As asas de um anjo
esbracejam as rimas
e adiam a solidão:
por cada adeus soletrado
fica uma dívida por abater.
Ainda está por determinar
qual das duas é a segunda mão
para se estabelecer
que é inferior à primeira.
Desmata os rumores que fogem da conta.
O ruído é um pano de fundo escusado.
Uma espada que trespassa a lucidez.
No inverno do desespero
onde não congelam os males artesanais
e a ciclópica tentação pela usura
remexe na terra com as mãos nuas
e descobre
como quem ganha uma medalha
a recompensa sem preço:
as palavras
não são murmuradas
porque não escondem segredos.
Arrancados os rumores pela raiz
não há conspirações que se instalem.
Talvez
havendo juízo só em saldos
seja possível a lucidez sem arestas
um tempo amovível dissolvido entre as nuvens
o desembaraço que dispensa planos
o retrato inteiro de rostos escondidos uns
disfarçados outros
da vergonha empunhada em nome próprio
uma espécie de unidos estados outrora divorciados
o navegar em doca seca
e acreditar
com o cimento próprio das fés religiosas
que se foi tribuno de façanhas singulares.
E depois
com o entardecer
hastear os violinos estonteantes
mesmo os que têm cordas rombas
e partir como se fosse marinheiro
partir
com o travo doce de quem sai à aventura
sem mapa nas mãos nem corda sobre o tempo
apenas irremediavelmente náufrago
em lugares de que nem depois há existência.
Os estilhaços vitalícios
secretamente escondidos no húmus
fortificam a pele rosácea
vacinada
contra os obséquios de loucos e profetas.
Descontam os balcões puídos
a fala desarticulada
que voluteia como um pêndulo mecânico
sempre à procura de presas
fáceis.
Os ardis consequentes
descontentam as almas purificadas
os embaixadores das virtudes:
pois das virtudes
diz o cancioneiro
que se estilhaçam no vitalício fingimento
em que se orquestram
os dias seguidos.