31.1.25

A metáfora do ovo e da transparência

Disse à gema de ovo

que emudece sem a clara 

– ou não fosse a clara 

a ditar a transparência do ovo.

 

Houvesse mais gente

a aprender a lição

e dispensadas seriam

as sistemáticas operações de limpeza

que ocupam os braços da justiça.

Injustiças documentadas (502)

Conto o 

conto de facas. 

De facas.

#4000

Arrumo a ferrugem a um canto 

a decadência pode esperar 

o seu canto de cisne.

30.1.25

Acento tónico

Se o que dizemos 

precisa de suspensórios 

queremos arneses 

tutores lisonjeiros que dão aval às palavras

estetas desabridos no coração da moral

um sofá rombo para exercer a preguiça.

 

Se o que dizemos 

se subleva contra nós 

não desistimos da fala

nem do consagrado direito a asnear

ou de perfumar os dias com a liberdade

de apenas 

ser.

 

As maldições escaninhas 

as que se insinuam entre teias de areia

ficam por conta de quem as tutela.

 

Nós 

só queremos 

um gelado ao entardecer

o calor da mão amada

um jardim bucólico como exílio

os filhos a espigar

e todos os ocasos que pressentem

a aurora consecutiva.

Injustiças documentadas (501)

Já que a ninguém 

é dado acasalar com misérias 

tirar a barriga delas 

é bom conselheiro.

Injustiças documentadas (500)

De fio a Pavia 

passando por 

Salamanca e Pádua.

Injustiças documentadas (499)

Que erres 

com todos os erres 

em que o erro erra.

#3399

A ironia 

é fingirem ser

o que não conseguem.

29.1.25

Sob a condição de ser vadio

Sem entrarem na boca do lobo

os rebeldes

disputam a coroa de vadio:

 

é um disparatar à toa

como se não soubessem os nomes

e forjassem um despudor de alma

que não passa de uma farsa.

 

Soubessem 

que ser vadio não é injúria

e não participavam 

neste cortejo de agravos 

não reconhecidos.

#3398

Um vago rumor nos bastidores 

a melancólica nuvem a descer do passado 

e um estirador à espera de intenção.

28.1.25

Teima

O fogo que arrefece o labirinto 

o revés assimilado no alfobre dos embaixadores

a litania que corre atrás das falas excessivas

a espuma escondida atrás dos néones

os nomes exaustos que moram no cais 

os rostos emudecidos na solidão imprevista

as saias a fazerem de cortinas

o palco esburacado onde só mora o escol

as baionetas descontinuadas por medo do futuro

um leve beijo que acetina a pele

a prole devida em abundantes presunções

o leito cabal à procura de cabimento

o cabaz sem nome que ensaia o exílio

a amadurecida combustão sem espera 

os tiranetes depostos em ato sem impugnação

a memória resguardada dos segredos embaciados.

#3397

Corre o vento 

loucamente

não espera que haja amanhã.

27.1.25

De rajada

Do espelho

estilhaços avulsos

a mudez invernal

a súplica de um luar. 

 

Os braços 

avalistas das bandeiras

arremetem contra a sisudez

dicionários dos dias sem sombra. 

 

As montanhas

silhueta capaz

ensinam a lucidez

a peregrinos da altivez. 

 

Rejeitados

os demónios extravagantes

emudecem por dentro

apaga-se a chama dantes temida. 

 

O amanhecer

verbo nunca gasto de simplicidade

amarrota os rostos estremunhados

desanunciando os tradutores do desassossego. 

Injustiças documentadas (498)

Avia o mal.

Havia um mal 

– devidamente aviado.

#3396

Um luar estreito amuralha o olhar 

adiando o sono 

até a insónia cair de solidão.

26.1.25

#3395

Santos costumes 

tantas vezes pregados 

e muitas mais desertos.

25.1.25

#3394

Deixa 

à rosa-dos-ventos 

o sabor 

do vento que canta.

24.1.25

Avant la lettre

Esbraceja o ódio antes que seja futuro

dá-o como património de colóquios

manifestos vários em forma de arte

fantasmas sopesados com o jugo cirúrgico

de quem fabrica oráculos.

Sê tu o agente que fermenta o ódio

o desambientado embaixador de radicais

o desbocado comparador de Histórias sem igual.

E depois

quando a profecia que

(parece)

queres revelada

tiver aquiescência pela mesa de voto

não digas que te esqueceste de forjar 

tão profana profecia.

Injustiças documentadas (497)

Mausoléu.

Maus ao léu.

#3393

Remexes a areia 

com as mãos molhadas 

participas no esconderijo 

onde as coisas são a sua negação.

23.1.25

Arrumação

O sol espreita entre as rugas 

enxuga as lágrimas amanhecidas

no leito insistente do nevoeiro.

Os olhos crepusculares 

decantam a luz agitada

traduzem sílaba por sílaba

o sortilégio animado 

pelas falas que despontam.

 

As asas de um anjo 

esbracejam as rimas 

e adiam a solidão:

por cada adeus soletrado

fica uma dívida por abater.

Injustiças documentadas (496)

Ainda está por determinar 

qual das duas é a segunda mão 

para se estabelecer 

que é inferior à primeira.

#3392

No vagar langoroso

pesando cada respiração 

esvaziamos o tempo do seu punhal.

22.1.25

Antídoto contra os rumores

Desmata os rumores que fogem da conta.

O ruído é um pano de fundo escusado.

Uma espada que trespassa a lucidez.

No inverno do desespero

onde não congelam os males artesanais

e a ciclópica tentação pela usura

remexe na terra com as mãos nuas

e descobre

como quem ganha uma medalha

a recompensa sem preço:

 

as palavras

não são murmuradas

porque não escondem segredos.

 

Arrancados os rumores pela raiz

não há conspirações que se instalem.

#3391

Num porto cavo 

a boca calada 

e a alma furtiva.

21.1.25

Sibilino

Talvez

havendo juízo só em saldos

seja possível a lucidez sem arestas

um tempo amovível dissolvido entre as nuvens

o desembaraço que dispensa planos

o retrato inteiro de rostos escondidos uns

disfarçados outros

da vergonha empunhada em nome próprio

uma espécie de unidos estados outrora divorciados

o navegar em doca seca

e acreditar

com o cimento próprio das fés religiosas

que se foi tribuno de façanhas singulares. 

E depois

com o entardecer

hastear os violinos estonteantes

mesmo os que têm cordas rombas

e partir como se fosse marinheiro

partir

com o travo doce de quem sai à aventura

sem mapa nas mãos nem corda sobre o tempo

apenas irremediavelmente náufrago

em lugares de que nem depois há existência.

#3390

O arrumo do tempo 

amuralhado

no sangue sem medo.

20.1.25

Pêndulo

Os estilhaços vitalícios

secretamente escondidos no húmus

fortificam a pele rosácea

vacinada 

contra os obséquios de loucos e profetas. 

 

Descontam os balcões puídos

a fala desarticulada

que voluteia como um pêndulo mecânico

sempre à procura de presas 

fáceis. 

 

Os ardis consequentes

descontentam as almas purificadas

os embaixadores das virtudes:

 

pois das virtudes 

diz o cancioneiro

que se estilhaçam no vitalício fingimento

em que se orquestram 

os dias seguidos.

#3389

Um torcicolo das ideias 

é o pão-nosso-de-cada-dia.

19.1.25

Injustiças documentadas (495)

Fugir à verdade

não é um exílio.