À falsa fé,
(pois)
há falsa fé.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Ó delicada fonte
que salivas gota a gota
o teu soberano desdém
pelas heresias escoltadas
pelos nenúfares sublimes
dos códigos de conduta
auto-validados.
Ó
do teu peito geográfico
toda a cidadania perfumada
com o sabre da opinião fácil
e eu
daqui modestamente te digo
que adoro habitar nos antípodas
amassando a massa-mãe dos pecados,
ou lá o que isso é,
limpando com o guardanapo do almoço
os restos dos dias desaproveitados
por gente assim fiel às suas fidelidades.
Ai de vós
avós do pueril escafandro
que vos protege do mundo lá fora
que ensina a roda a rodar ao contrário.
Pois assim que se arrependerem
e de mim se colarem
juro logo ser outro ainda diferente
no compasso sem regras
que habilita os que se esqueceram
de causas
por causas (absolutamente) naturais.
Os dentes de fora
rabeiam a saliva colérica
os dentes querem sangue
sangue
e vítimas –
ou não é a História
um inventário de vítimas
e quase sempre perfumadas
pela inocência profanada?
Não há maestro
e ninguém sabe do paradeiro
das batutas.
Ninguém se empresta
à escuridão
como uma assinatura em branco
num contrato por revelar.
Ninguém confia
na palavra dada
quanto mais
na palavra vendável.
Assim vamos
fingidos e motivados
nesta Terra
de terra e mel e sangue
e todo o mar
para nele encontrar
refúgio.
Ninguém
desce de nível.
Ninguém
gosta tanto assim
de poços sem medida à fundura
que sejam meros vultos
fantasmas inabitáveis
e das suas bocas seja entoado
um silêncio aflitivo
que se desmede nas insaciáveis palavras
aprisionadas por uma mudez
contrafeita.
Salivo o suor sectário
finjo que estou a fugir
ou fujo por estar a fingir
e de mim ao medo meço uma légua
no mar enredado pelo atroz, boçal
grito que desaloja os decibéis.
Cuspo
atrocidades sem nome
mastigadas contra as feridas abertas
sempre devolvidas
como encomenda por reclamar
à falta de morada
na impossibilidade de acertar
o nome certo.
Cuspo
toda a matéria insana
a covardia dos valentes
a finesse dos mastins
as balas engolidas
pelos apátridas da serenidade
a indigestão dos indigentes
os maus modos dos diplomatas
os devaneios de senhoras compostas
a descompostura dos deuses avulsos
a imodéstia dos vexados
as partituras gastas de artistas variegados
as luzes estonteantes dos apedeutas
o idioma à prova de gramática
as sepulturas à espera de moradores
as tonturas dos vilões destronados
a usura dos figurões
e toda a procissão
por onde desfilam os métricos exemplos
que inçam de virtude em virtude
de lugar sem lugar
desmontando as paredes grossas, atávicas
despojando o tempo da sua espessura
contrariando o mau feitio que se pega
que antes se pegue em monstros
do que paguem os boémios periciais
ou deles se faça o amianto
destinado ao que ao amianto se destina
a formatura desqualificada.
No meio
de um deserto por excesso de árvores
por excesso
dos excessos contados
no inventário dos pecados
ah!
os malditos pecados
e quem perpetuou tão indigna sindicância.
Parece
que estou cansado
de tanta folia do avesso
de palavras ejaculadas por serem o seu oposto
como quem cura a fazenda do avesso
e avulsa matéria despragmática torna sua posse.
Ah!
se tudo isto fosse dito na infusão
das palavras efémeras
se tudo se tingisse de memória
só para contar de trás para a frente
e os insultos ficassem tatuados no abismo
seria
só um vulto incógnito
a desenhar rostos minimalistas
nas paredes gastas pela usura
da cidade.
Jurei
sobre a pele pálida
o decálogo
contra as botas cardadas
e os empenhados cultores
de compassos morais.
Jurei
sobre os crisântemos depostos
não ser
o sangue fervente
dos gangsters a soldo
da destemperança.
Jurei
avivar a História
para servir o conhecimento
sem o olvido
da não repetição do tempo.
Jurei
o que mais jurar preciso seja
para desobrigar o Homem
da sua forca.
Adio a boca amordaçada
o vento fala nos interstícios da pele
e o crepúsculo demora-se
no avesso da alma.
As improváveis sílabas
mastigadas no tempo tartamudeado
colhem a manhã pela raiz
sob o olhar indigente do mundo atávico.
Sobem a palco os irrisórios mastins
desarmadamente nus
iludidos num império despojado
para serem sindicados pelas almas impuras.
Os mecenas falam sem embaraço
deles é a proposta de indulgência
à medida da sensata negação da vingança
como exemplo para os que suplicam redenção.
A impermanência dos destroços do passado
é a mnemónica para memória futura
o logro seria o olvido célere
a confusão entre perdão e redenção.
A minha mão estendida
para ser o rosto que te diz o amanhã.
A pele sem remorsos que te ensina a usura.
A madrugada sem atalaia.
Um beijo que se soma os dias sobrantes.
A carne que amanhece a meio de um sonho.
As estrofes que dizemos à medida do luar.
O lugar onde só somos nós.
O dia em que não paramos para ser ontem.
O osso cruel
a faca que fica por dentro
a fogueira onde decaem as flores
o entardecer arrastado
a lava diuturna, a abrandar
o abecedário confusamente colonizado
a matriz celta num teatro crepuscular
a matéria funda que se funda num estertor
a demência dividia por dois e meio
o embaixador itinerante que perdeu a fala
o muito polido sequestro do silêncio
o deve e o haver e o zero como saldo
a enseada brusca
a escrita impessoal e vagamente solar
um bouquet de beijos sortidos para descomprimir
a espada estiolada a desenhar fantasmas
as ferramentas perdidas indulgência da ferrugem
a véspera adivinhada com um olhar capataz
as armas desengonçadas
e os Rambos de taverna
a matéria-tia arrefecida a gelo avulso
o equinócio sem paradeiro
a estrela masculina
o charlatão aperaltado
o fugitivo sem cais à espera
a sobremesa sem haver mesa
a conta desenfreada
o xerife condenado à orfandade
o pequenote que não é um rapazote
a tinta da tina
e a China suína
a estatura tingida de tatuagens
a estátua tomada por tiranos ambulantes
e uma volta ao mundo
uma dúzia de desejos desembainhados
a congelação não vaga da existência.
Os outros
são o pesadelo que profana a carne.
As mãos sobrepostas cobrem o corpo,
ocultam-no dos outros
sem que o possam sondar.
O silêncio cuida da absolvição.
Transforma os pesadelos num sonho só.
A recusa dos outros
não é uma sentença.
O século
atirou sal de mais
para o sangue
num telúrico bocejo
contra a inadmissibilidade da espécie.
O século a seguir,
desconfiado,
abriu concurso:
deu folga
ao excruciante pesar
das almas passadas
como se por elas suplicasse
uma estirpe de confiança.
O mérito não esconjurou
o sangue ainda puído
e a espécie insiste
no suicídio como tal,
o exemplar desexemplo
do logrado pelo século paciente.
Dele
não se diga
ser anátema dos tempos,
ou que seja diligente
no acerto de contas
com a espécie deslustrada:
os votos falam pelas pessoas
e o século assiste
nos bastidores
às urdiduras da loucura em movimento.
São os votos a elegia fatal
a que vão sendo somados
episódios do desorgulho,
da espécie que não merece
as outorgas da biologia
nem a usura dos pontos de exclamação.
Sabemos
o que é uma maré-viva.
E uma maré-morta,
é quando o tempo emudece?
Ali estava
à espera
de uma vaca de fundo
sem dar conta
que não estava na Índia.