Exonerou o til do bolor
e das lombadas dos livros
varreu a poeira arcaica.
De vez em quando
reinterpretava o seu papel
como se fosse
ator por dentro de um ator.
Daí extraía o maior enigma
pois se nem ator era.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Exonerou o til do bolor
e das lombadas dos livros
varreu a poeira arcaica.
De vez em quando
reinterpretava o seu papel
como se fosse
ator por dentro de um ator.
Daí extraía o maior enigma
pois se nem ator era.
[Crónicas do vírus, DCCCLVII]
Legados da peste (173):
Fomos
e somos
náufragos
o salva-vidas
como seguro em dia.
Senti os poros do mar
na semântica do entardecer.
Não era reparador
e as candeias que esperavam pelo rastilho
faziam de conta
– faziam de conta que eram másculas
ou feitorias
por onde espreitavam espiões desarmados
ou amorfos periscópios que espiavam
a penumbra.
Do entardecer válido
reuni as mãos por adestrar
no convencimento das noites sem paradeiro
entre o sal sangrado carne adentro
e o povoado chão
que ardia na silhueta desmaiada da escopeta.
Dantes
os muros não fugiam do olhar angustiado.
Dantes
o mar era o exílio.
[Crónicas do vírus, DCCCLVI]
Legados da peste (172):
A jura da derrogação
como mnemónica da paciência.
[Crónicas do vírus, DCCCLV]
Legados da peste (171):
Do tempo
medrou um gládio
que amanheceu antídoto.
[Crónicas do vírus, DCCCLIV]
Legados da peste (170):
Num lugar público
cercado por rostos açaimados
adivinho a desabituação futura
aos rostos desembarcados e inteiros.
Sou
vento do Norte
onda refeita no verso da tempestade
boca à espera de loucura
varanda que amansa a paisagem
voz que se levanta na pátria da mudez
corpo comprometido com a tela da avidez
jura infundamentada
fonte de ideias enredadas na desarrumação
posfácio de um epitáfio proibido
montanha adiada sem medo do tempo
verso singular no emaranhado de vozes
caudal em frémito esperando pelo estuário
página iracunda domada no bálsamo da noite
madrugada sem atalaia
a rua rochosa
sem medo das espadas desembainhadas
sede por dentro das veias
instinto consuetudinário inaugurado no leme vão.
Sou
a desarmante face
de que o porvir é trunfo
sombra no avesso do luar maior
a mão caiada em página nunca gasta.
[Crónicas do vírus, DCCCLIII]
Legados da peste (169):
Despontou uma alvorada radiosa
quando (enfim)
anunciaram
o fim esperado do pesadelo.
A tempestade
acorda o sangue hibernado.
As palavras
elevam-se ao sopé da cordilheira.
A pele
derrama suor nos acordes da ira.
Os navios
esperam por vez
desenhando o estuário com suas silhuetas.
A manhã
demora no emaranhado do inverno.
O mar
envaidece com a pose tumultuosa.
A fala
inventaria as palavras destemidas
agora que o sal invadiu a pele
e os ossos rejeitam a melancolia.
[Crónicas do vírus, DCCCLII]
Legados da peste (168):
Num campo branco
sem flores
a partida da paisagem desertora.
O degelo cresce na sombra da noite.
Em comandita,
os cães vadios varejam as ruas
– pode ser
que se façam delas
imperadores.
O sono fundo das pessoas
traz uma impressão de hibernação
e as ruas são não lugares
momentâneos.
Ninguém sabe o que povoa
os sonhos que inventariam os fundos sonos.
Possivelmente
corpos errantes num adro sombrio
eclipsados pela sua tremenda fragilidade
transidos pelo latido da matilha
que se faz passar por uivos de lobos
famintos.
Neste espessar dos verbos
o suor fala em vez das palavras.
Os sonhos não esperam pela manhã.
Sabem que o seu império chega a uma foz
mal a noite é destronada pela manhã
ínvia.
O sangue
sem dar conta
terça esta batalha
entre um sono que amedronta
e a vontade não escrutinada
de se libertar da tirania dos sonhos.
Se ao menos
a insónia se fundisse com a noite
saberia
do paradeiro da matilha.
[Crónicas do vírus, DCCCLI]
Legados da peste (167):
Às vezes
parece apenas
a interrupção de um pesadelo.
As sílabas contam as bocas.
Esperam pela fala gorda
no desprotesto que se cala
na vigésima-terceira hora do dia.
As bocas cantam as sílabas
e a fala em catarse foge da mudez
no tirocínio do tempo.
As bocas:
escondidas na pose circense
arrumam-se em gestos pueris
e, todavia,
diplomáticos.
A muda fala que se muda
e se esforça em estrofes fadadas
mutila o silêncio,
impraticável.
[Crónicas do vírus, DCCCL]
Legados da peste (166):
Ganhamos sentinelas
numa atalaia
de que somos perdedores.
[Crónicas do vírus, DCCCXLIX]
Legados da peste (165):
Tal como ases autorreverenciais
refugiados em torres de marfim,
postiços apenas.
Deste estilo que se esconde
a impossibilidade do vento
açambarca as palavras vãs.
Diz-se:
o pensamento é masculino
(porque a gramática assim ordena)
e um pé-de-vento corre o terreiro.
O estilo que pressagia o porvir
não compensa:
esse é um tempo
que está por vir
e ninguém
confirma a sua chegada.
[Crónicas do vírus, DCCCXLVIII]
Legados da peste (164):
Os dias ainda baços
que servem para assear
a metamorfose duradoura.
[Crónicas do vírus, DCCCXLVII]
Legados da peste (163):
Desengorda o ego obeso
nos estilhaços
da sua disfarçada fragilidade.
A boca troveja
a espuma alcançada
no mar lívido.
Devolve
em dobro
a vertigem
amanhecida
numa aurora boreal.
No poema majestático
ficam desarrumados
os lençóis:
nesta arena
só têm admissão reservada
as armas que os corpos manejam
na gramática do desejo.
[Crónicas do vírus, DCCCXLVI]
Legados da peste (162):
Pagamos
em medo, obediência e conspirações
o legado da peste.
Jogados os dados
os dedos são a sua trama.
Dantes encolerizado
o magma eflúvio transita as veias
e adormece à boca de cena.
Há um ardor que sobra da combustão
as paredes interiores abraseadas
que quase irromperam em desmazelo.
Os dados cingiram a temperança
e os dedos,
enfim aplacados,
sorriem por dentro dos ossos
a favor do sortilégio.
[Crónicas do vírus, DCCCXLV]
Legados da peste (161):
O tempo
que se arrasta
fermenta o mosto
da fadiga.
A muda do corpo
esta deságua que lava o sangue
lava muda que desagua nas mãos
encorpando as paredes que amparam o dia.
[Crónicas do vírus, DCCCXLIV]
Legados da peste (160):
Uma guerra de teimosos
tende a tornar-se
em beligerância imorredoira.
Uma fração do medo
como
o número ímpar que se adia
e depois
arruma os braços
contra o pedestal do fingimento.
Mas o medo não se divide
e no luar singular
conspiramos por junto
sem remorso
sem capitular
a menos que os anátemas sejam derrotados.
Não é o medo
fragilidade que se entoe;
os interstícios das palavras
desembaraçam o medo
que a meio se reduz
a museologia para memória futura.
Todas as fotografias
resumos inacabados, estéreis,
a safra adiada dos tempos com mofo.
Todos os pesares
diademas ancilares, inúteis,
a lua cheia escondida num castelo de nuvens.
Todas as euforias
juras inverosímeis, farsantes,
modo motriz das vias vindouras.
Todos os olhares
colonizadores impacientes, ávidos,
tutores dos mapas à procura de revelação.
Todos os sabores,
bocas e corpos combustíveis, transidos,
no paradeiro que não se invalida.
[Crónicas do vírus, DCCCXLIII]
Legados da peste (159):
As mangas arregaçadas
para obras
sem prazo de validade.
[Crónicas do vírus, DCCCXLII]
Legados da peste (158):
A pele
ainda não está pronta
para o novo mapa
que é a sua casa.
O Inverno marca a herança
dos sábios.
A penumbra constante
é o mosto que ascende desde a manhã
e cobre o dia inteiro
como se à sua totalidade fosse reservado
uma plácida imagem.
No Inverno
as cores levitam
desmaiadas.
Arranjam-se as veias
que precisam de seu sazonal repouso
antes que a embriaguez de cores
e a pulsão dos corpos habitados pela Primavera
ocupem o lugar destemido.
No Inverno
busca-se hibernação
a alternativa para custear a existência
no inconfessado deleite
de a averbar no convés da alteridade.
[Crónicas do vírus, DCCCXL]
Legados da peste (156):
Corremos
pelo corredor afora
e não sabemos
do precipício que fica depois.
Um hino que espera
por uma mole humana
pois os hinos não são autoridade
se não forem navegantes
de lealdades.
Um hino
tão emotivamente entoado
mesmo que as estrofes sejam de cor
e delas não saibam ser hermeneutas
quem das suas gargantas o melhor oferece.
Um hino é um jogo de sombras.
Exige vultos
a preceito
e desafinadas vozes
que açambarcam um coração apeado.
Maior é a desonra
de corresponder
o lavar a cara à gato
a pouco asseio
se à demais fauna
(sem excluir a humana espécie)
os gatos
dão lições de asseio.
[Crónicas do vírus, DCCCXXXIX]
Legados da peste (155):
um sonho
pela rama
num idioma
que se chama farsa.
É nesta miríade de noites
que amanhecem os sonhos.
Não são promessas
ou
um presságio tangível.
Talvez
apenas
uma morada diferente
como se a um palco imaterial
o corpo aportasse.
À matéria-prima daninha
não se acrescenta o verbo diurno.
Os palcos assim terçados
continuam vazios.
Os sonhos
esperam ainda
pelo seu paradeiro.
[Crónicas do vírus, DCCCXXXVIII]
Legados da peste (154):
do estoicismo gratuito:
cair de pé
e nunca mais fermentar.
[Crónicas do vírus, DCCCXXXVII]
Legados da peste (153):
de que lado da cortina
fomos deixados
a adiar?
Jogo o jogo dos seixos que sobram
da maré.
O tempo, hipnotizado,
não é um embaraço.
Se soubesse desenhar
tirava partido da areia molhada
deixada pela arqueologia de uma maré cheia
para emoldurar as baias do mundo.
Não fosse o cadáver de um caranguejo
que não pedia epitáfio
ou a vozearia das crianças outras
que jogavam às escondidas
com a timidez absoluta.
[Crónicas do vírus, DCCCXXXVI]
Legados da peste (152):
os estilhaços
preenchem a paisagem
como campos minados.
[Crónicas do vírus, DCCCXXXV]
Legados da peste (151):
nem sempre
a vindima de cachos apodrecidos
é colheita tardia.
[Crónicas do vírus, DCCCXXXIV]
Legados da peste (150):
a tradução da fala,
ou o véu que se abate
sobre a boca.
As horas são cortinas que ascendem
na matricial pose do corpo. Pegam-se
nos mastros que dominam o estuário
e os olhos convocados exoneram a culpa
dos órfãos do medo. Se ao menos
a contagem obedecesse aos caprichos
de cada alma não seríamos subúrbios
da vontade. Todas as verdades
se extinguem na sua formulação.
Sobram as palavras não sopesadas,
as palavras desenfreadas que saltam
por cima das fronteiras, ficando à espera
dos internos sobressaltos arrancados
ao magma combustível. As horas deviam
ser silêncios estendidos na geografia
onde os corpos habitam. Deviam olhar
para dentro da carne, isentando o seu
labirinto dos modos que se hasteiam
na mais pura fala totalitária. Ficam
nas mãos os desenhos furtivos que isolam
as horas dos minutos que as alimentam.
Quem sabe se não é esse o segredo.
[Crónicas do vírus, DCCCXXXIII]
Legados da peste (149):
as bandeiras
retêm o bolor
dos ventos a desfavor.
Sai-te a fava
mas encomenda-os
à mesma
antes
que a fava se torne fada
e a fama se converta
em fado.
[Crónicas do vírus, DCCCXXXII]
Legados da peste (148):
empossados como guerreiros
na perene fragilidade
do prélio contra os sicários
que tomam de assalto
o nosso domínio.
[Crónicas do vírus, DCCCXXXI]
Legados da peste (147):
a peste
banaliza-se
e deixa de ser
peste.
(Manifesto da esperança)
Podia dizê-lo
um trilião de vezes
até as palavras
se esgotarem no seu sentido
e, presas à vacuidade,
serem letradas menores
do idioma exaurido.
Podia dizê-lo
modestamente
na austeridade de palavras
que é sua predileta homenagem
antes que,
açambarcadas,
sejam reféns da vulgaridade.
E não,
não digam que
as palavras são imunes
ao gasto.
[Crónicas do vírus, DCCCXXX]
Legados da peste (146):
a memória
é um paradoxo
que convoca o futuro.
A roda dos ventos
vestira-se com o mais fino traje
aquele que se servia
de nobre fazenda
– o traje cerimonioso
que vê a luz do dia
um punhado de vezes.
Apessoada e vaidosa
a rosa dos ventos esperava pelo vento
que se jurava iracundo.
As previsões dos peritos saíram furadas.
E ali ficou a rosa dos ventos
prostrada
refém da melancolia
ao saber que o vento
primara pela inércia.
[Crónicas do vírus, DCCCXXIX]
Legados da peste (145):
os braços atirados
em riste
contra as promessas
de passado.
A metáfora cantada
na consequência do dia
atualiza a pele antecipada.
Das rugas não há inventário:
o espelho está partido
e a linhagem do tempo
é o esquecimento.
[Crónicas do vírus, DCCCXXVIII]
Legados da peste (144):
a lava torrencial
enfim cristalizada
ou o disfarce de um disfarce
em forma de logro (disfarçado)?
[Crónicas do vírus, DCCCXXVII]
Legados da peste (143):
pandemia ou endemia:
jura de alívio
ou apenas o jogo da semântica?