No abotoar das ideias
contam as palavras
escolhidas a dedo.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
De todo o mundo havido
sinto que estou devedor
de muito mais mundo por haver.
Os lugares por inaugurar
a promissória
de cujo distrate o tempo cuidará
terão um dia inventário.
Não sei
quanto mais mundo haverá
mas sei
que sou,
e em parte significativa,
todo aquele mundo já havido.
Por que se diz
pela hora da morte
como se fosse
um contrato de carestia
se à morte é tão fácil chegar?
Entorta as certezas
no palco dos erros
onde vestes
a humildade dos pequenos
e, contudo,
entroniza a imutável grandeza
da linhagem sem contrabando.
Engana as costuras
que nas feridas transportas rastos
desacontecimentos sem memória
e a espingarda que rebenta
com as cicatrizes do mundo.
Faz com que a amnésia
venha comer à tua mão.
As coisas que as coisas têm
não se juntam aos adjetivos
que sobre elas se inventariam.
Se ao menos soubéssemos
se as coisas têm um avesso
não procurávamos pelas bainhas
até sabermos do seu fundo.
É como
mergulhar num poço sem fundo:
ninguém acredita na credenciação,
mas não se vê nada
a não ser o nada.
É nesta custódia
que quero albergue.
Os rios abundantes,
veigas exuberantes,
colheitas frondejantes,
um segredo
para evitar a invasão
de sobressaltos,
a noite repleta
de sonhos válidos.
Um corpo
em forma de dádiva.
E o outro,
recíproco,
numa coreografia servida
por estrofes matinais.
Se perto fosse a ofensa
e de guetos falassem
os idiomas sem diálogo
as vestes solenes
com que se disfarçam
os lugares
teriam de arder numa pira.
Se puídas fossem as bandeiras
e as bocas não falassem
por reflexo condicionado
as palavras seriam como velas acesas
pelos ventos ao acaso
e dos mares demandados
só haveria notícia de sereias feiticeiras
e marinheiros testemunhas da madrugada.
Não transigimos com os pesadelos
quando o lugar do crepúsculo
eles ocupam
e arrepiam os versos que são a prova
de que as quimeras não são apenas
a fértil encenação de sonhadores avulsos.
A flor
beija a noite
que a costurou.
O nevoeiro
sitia a cidade
num pesadelo contumaz.
A fala
conspira uma mudez
no estertor da solidão.
Uma ponte
a soldo dos rebeldes
amanhece contra os prognósticos.
A estrada
consegue ser um vazio
sempre a fugir dos outros.
A madrugada
vence a atalaia dos sentidos
no verso acanhado dos deuses sem sono.
Um idioma
sobe pelos dedos túrgidos
rouba os emudecidos lábios.
Até que extremados
os loucos vegetam na lua possuída
desfeiteando os demónios em barda.
Páginas depois
o olvido impede a nostalgia
dos circenses que desabençoam a fogueira.
Tarde
o bocejo arremata um par de minutos
até os curadores do medo deporem.
Calada
a boca sela
a angústia estilhaçada.
O vento
vem de longe
contar uma matemática sem números.
Vem contar
entre meadas de vozes sibilantes
os segredos mal guardados.
Até que
os cobradores do futuro
se fechem na escuridão que os açambarca.
Então
invisíveis aos olhos lúcidos
desapertam a escotilha e falam.
Falam
incessantemente
com as sílabas todas sem vergonha.
Como
dentes-punhais
cortando a carne podre a eito.
Para então
cúmplices
desassorearem a mudez contrafeita.
Ainda hoje
estou para saber
a que sabem as metáforas
angariadas às três pancadas.
Desconfio
que é só uma prova de vida
daquelas congruentes com a epifania
de quem se dá a conhecer
do alto do seu eruditismo.
Fora disso
a metáforas metidas a martelo
são como
víveres fora de prazo
que contribuem
para comida datada.
O recíproco
as tenras daninhas
que absorvem os medos do mundo
a hipótese materializada
no cenário coloquial
e os braços vertidos do chão
déspotas da capitulação a destempo
o fortuito porta-voz
histriónico
a vender juros e barrigas de freira
antes que sejam conspirados
pela polícia dos costumes.
A boca segreda
o poema matinal.
A pele interior,
magma impaciente,
acende a lua diuturna.
Hibernamos no cais
onde as flores
têm os nossos nomes.
O comité da baunilha
declarou a interdição dos verbos
que se inspiram na lua.
Dizem:
têm inveja
que o luar têm um aroma
invejado pela baunilha.
Ao que um anónimo grita
perdido no meio da sala:
objeto essa abjeção
em lado nenhum
o aroma da lua
rivaliza com a baunilha.
As cartas transparentes
como quem procura as soluções
antes de começar as palavras cruzadas:
a regra é a desregra
penhor da exceção
a metamorfose das regras.
Não custa sabê-las
só é custosa a obediência.
E ainda maltratam
desde manuais de instruções
a códigos dos generais da moralidade
como anátema
a anarquia.
Dão as asas ao cavalo errado:
as lágrimas vertidas no espelho
são de um puro sangue
e os puros sangue
dispensam asas.
Não se engasta o ouro
nos anéis escondidos:
as ameias confirmam inimigos
ou apenas uma imagem deles
pois os que não desconfiam
sentenciam através de janelas
franqueadas.
Os deuses estão com dúvidas:
os rios
não param nas vírgulas do tempo
e há vozes que não se viram do avesso
com medo da pele vetusta.
Os rios
sobem pelo entardecer
como se fossem a caução dos famintos.
Disse-me a maresia
a lua quer ser gémea do teu olhar
tremer nos lábios prementes
que desfazem a fala nos beijos telúricos
verter o sal vulcânico nas cicatrizes fechadas
e dizer
com os pulmões a sangrar o ouro haurido
que teus são os olhos que cobram a noite
nas fachadas incandescentes
que demoram na quietude do luar
escondidas nas nuvens furtivas
que fingem o ar dos dias
no ouro das tuas mãos regaço.
O foro próprio
em assentidas tardes de deliberação
desconspira as tábuas malditas
que procuram úbere.
Sobre as coisas do mundo
verto um olhar espartano
melhor é quando a esperança
é vetada à partida.
O algoritmo dos costumes
desembaraça-se do biombo.
O número das bestas corre no estuário
chovem os botões de rosa
arrancados aos pés
e a bengala puída
cambaleia com a ajuda do vento.
Ninguém fugiu da noite radiosa
a lua ajudava a compor os olhos vadios;
se não fosse pelas ruas penhoradas
a pele tinha a cor do luar
e isso era uma coisa boa.
As promessas quase sempre
não passam de promessas.
Mas as pessoas não desistem
antecipam as ilusões que marejam
no miradouro onde os sonhos
se dissolvem.
Dizem
sentados num proverbial lugar-comum:
sonhar não paga
imposto.
Se rareia a lucidez
é porque andamos entretidos
em mundos paralelos,
a fugir do anátema do existente.
Não soam os verbos puídos
com o advento do crepúsculo:
não querem sair do esconderijo
dispensáveis
ao saberem da gravidade da maré reinante.
Mas
às vezes
(mais)
é preciso dar lugar às palavras-parafuso
aos estrénuos, lancinantes versos
que cozinham as coisas em cru
deixando as madrugadas órfãs
por ausência justificada
numa maceração atónita.
E as ondas embutidas na pele sacrílega
fumigam os lugares-comuns
como se as pessoas pudessem
com a franqueza que não é atributo
despossuir-se das amarras de outrora.
Carimbam as palavras
que não deixam créditos à indiferença
impassíveis
à reprovação dos estandartes do regime
as pessoas suas cultoras
elas sim
indiferentes à censura
que morde em vez da amnistia.
Os anéis apertam a jugular
jogam as partidas dinamitadas
sobre o chão insalubre onde se encontram
as raízes de quase tudo.
Amanhecemos nas bocas plenas
e não esperamos pelo tempo
habilitamos nós mesmos
as falas que condoem
os espíritos avulsos que não desistem
de serem órfãos
mas se confundem com vítimas.
Ninguém diga
ser perito
em fugir das emboscadas
averbadas em páginas puídas
como se só houvesse contingência
da nuca para trás.
Do incubar que levita conspirações
não retenho doenças que subam às bandeiras
não convoco os demónios;
deixo-os à míngua
eviscerados na sua própria
amputação
e assim soberano
dito os termos dos erros voluntários
evaporo os arrependimentos larvares
mal esboçam um movimento na sua aurora.
Este é o alvará dos frágeis
a imensa penumbra que embacia as palavras
os temerários discípulos das coisas nadas
que açambarcam a luz tépida das manhãs
que prolongam o estio.
Eis a poderosa saída para um segredo hipotecado
as águas doces sem serem sobremesa
os patifes que ninguém respeita
oráculos de um medo dissolvido
os párias
os autênticos párias
que não respondem a hinos e bandeiras
e são o paradeiro
da sua própria história.
De bruços
afocinhando na pútrida fealdade do mundo
antes que seja a vez do Verão
coser os corpos em banho-inferno.
Arregaçada
a pele conjuntural
atira-se ao fogo
com uma vontade aquosa
de quem tem muitos rios a dormir
no leito.
Os rostos queriam ser perenes
arqueados sobre as pernas infatigáveis;
sobra um lago por fazer
as fronteiras imarcescíveis
bordando as costuras dos seres,
à prova de guerras civis.
Na véspera da noite inaugural
as falas sublevam-se
contra a validade dos corpos.
O sangue do vulcão
esperneia
às costas do medo.
As feridas
são o penso da loucura
sobre elas pesam
as fundações do passado.
No viés da maré
contam-se as palavras turvas
o imenso lamento por esgotar.
E o vulcão em sangue
desce
antes que o tempo tenha paridade
sua é a sede do mar furtivo.
A pele suada foge da noite
na peugada dos sonhos de autor.
Não se espere muito dos dados
à conta de sortilégios
a boca emudece
no provérbio venal.
Falam
as pessoas que saíram à rua
falam como se houvesse
quem as quisesse mudas:
não se sabe o que dizem
mas também não importa.
O sangue do vulcão
cicatriza sob os auspícios
do mar
agora sobram as tatuagens
para memória futura.
As forças vivas da cidade
eram aquelas
que não tinham o cemitério
como residência.
É quando apetece
recuar à meninice
só para sentir
por fingido que fosse
que o mundo
lá fora
se cinge
às imediações
de mim mesmo.
Por cada lampejo de vaidade
a inflação dos seres acompanhava
os estouvados.
As mãos escorregavam no abismo
e as sílabas voavam mais depressa
que a fala.
Antes que fosse noite
folheava as páginas da véspera
à procura de perguntas.
Por muito que suspeitasse
a reparação da pele
antecipava-se à mentira.
Este era um lugar hospitaleiro
um feixe de portas abertas
à prova de espantalhos.
Se as almas tivessem asas
eram de toda a parte
ao acaso.
Está tudo pela hora da morte.
E qual é a hora
a que a morte se faz anunciar?
As rugas
desenham a assimetria do tempo.
São como cicatrizes dos sismos havidos
fraturas dantes expostas
traduzidas para tatuagens salientes.
As rugas
não falam pelo tempo pretérito
só falam no presente cheio de melancolia;
ou então
no terrível desamparo do tempo urgente:
nem sequer há tempo
para o olhar se deter no espelho
e cortejar as rugas que não escondem
a antiguidade.
As rugas
emprestam um consolo subvencionado
admitem no portal do tempo
a sua usura com os corpos.
Não é por conta de milagres
que são adiadas na nomenclatura
da idade.
São como catedrais:
credoras de estatuto
no cansaço do corpo compensado
pela lucidez montada na sela da quietude.
Alvíssaras
das boas
daquelas com o baixo patrocínio
de uma alta patente
ilegível
com o beneplácito dos que usam cabeção
– nunca se desprezem as cabeças à solta
e o erário privado
e as desengonçadas danças
de imprevidentes aprendentes.
Que sejam roídas as unhas
mas sem ser de inveja:
antes
um opúsculo impecavelmente encadernado
do que um vinho do Porto de olhos em bico
(se me é consentida
a expressão talvez levemente racista,
mas em todo o caso
protetora da DOP respetiva
– costelas durienses noblesse oblige).
Antes
a chave perdida
ou a fechadura por abrir
um druida ancião
na posse de segredos de Estado
do outro putativo,
sósia do seu tutor em fala e raciocínio,
aspirante a nivelar por baixo
ou um mediador de seguros
desamado até por filisteus correligionários.
Os que estiverem virados para esta moda
montem-se em tamancos:
muita será a água metida
sem submarinos por perto
um bibe para aparar a baba
ou uma cautela para amparar desditas.
Antes o simulacro
de uma Torre Eiffel
“tipo”.
Um t comprido
estiolado no entardecer
com as sílabas encostadas
e o vinho fresco a calar a boca.
Estou empenhado
e isso é bom:
sou engenheiro e operário
ao mesmo tempo.
Estou empenhado
e isso é mau:
já só sobram os dedos.
Que iguaria
serão as botas
para haver quem se dedique
a lambê-las com deleite.
Não havia tempo
para todas as personalidades interiores
se as batinas adejavam
com o seu ar inquisitivo
como se lhes devemos a pira da vida.
A tempo do tempo maldito
acostumavam-se as diferentes personalidades
em socalcos com lugar marcado
à espera do entardecer
agarrados ao vinho possível.
Diziam:
os mártires são como mercados fantasmas
com uma correspondência gramatical
a aliviar a consciência condenada a provações.
Com o aval das feiticeiras sem rosto
apanhei o céu com as mãos inteiras
e guardei-o junto ao peito.
Não haveria de precisar do céu
outra vez
para ler os estados animados
e rejeitar as farsas animosas.