29.10.25

#4250

Outro dia 

o ogre do tempo 

intransigente.

28.10.25

Ao acaso

Jogo os dados na marca da incerteza

componho os cabelos

um meneio capaz de quem demanda a sorte

de alguém que apedreja a superstição

e no turbilhão das forças e dos sortilégios

arrumo os dados sem pensar duas vezes

que nem uma só seta salvação possível. 

Jogo os dados

que o mistério da sorte

é surdo às intimações postiças.

#4249

Contar espingardas 

é como contar mortos 

antes de o serem.

27.10.25

Negação à negação

Não 

não é a neve que enovoa a noite

que destrona a noiva cidade.

Não é

o turvo decair

que transgride as traves 

que entronizam as pessoas.

Não é

a besta baça

que embainha as botas armadilhadas.

Não sei o que seja

a não ser

todo o inventário que inventei

para dizer

que não é por coisas essas

que os lugares e as pessoas

se perderam de paradeiros.

#4248

A hora muda 

mas a hora continua 

muda.

26.10.25

Mapa mundo

Costurássemos os costumes com o carvão do medo

as viúvas ao deus-dará

 

(oh, heresia, que Deus permitiu,

talvez distraído,

que uma palavra inspirará em seu nome

fosse iniciada com letra minúscula)

 

ao deus-dará as viúvas,

dizia,

portadoras desses funestos véus

que ninguém ousa postergar. 

Oxalá a algazarra dos petizes não termine;

precisamos de uma mnemónica da infância

para avivar a memória

de como era ser infante

sem consumições porque o mundo à volta

ainda não existia

e agora 

que já não nos gabávamos da adulta idade

sabíamos que o fingimento se apoderara de nós.

Fingíamos moderação

um espelho desimpedido 

para as palavras das outras bocas

e nós

enjeitando a autarcia

crescíamos como autarcas de um voto só. 

Às vezes

apetece agarrar a vida pelos colarinhos

depor a ira em forma de babugem

ou a ira arrancada a ferros das notas de rodapé

de dicionários vetustos e esquecidos 

nas arrecadações mentais. 

Apetece cuidar do dia

como se durasse meses a fio

e exilássemos as páginas desaproveitadas

as páginas que não cumpriram a folga do futuro. 

Outras vezes

deixamos que o tempo seja refém

das mãos que entrelaçamos

e das palavras murmuradas no cais do silêncio

trazemos estrofes arregaçadas ao rosto

é como 

se emprestássemos os rostos à chuva outonal

e desmatássemos todas as vírgulas gongóricas

as que enxameiam o poema diário

com as luas altivas

que ensinam as maneiras válidas

de sermos testemunhas primordiais

do belo em que o mundo se encerra

e nós

nós somos o seu mapa,

mundo. 

#4247

Joga uma tripla 

como no totobola 

e sais sempre a ganhar.

 

[Grandes remédios para males não tão elevados]

25.10.25

Injustiças documentadas (606)

Dizer 

que vai ser 

muito sincero 

é como apregoar 

que um espetáculo 

é totalmente gratuito.

#4246

Toda esta vaidade 

uma língua de trapos 

de almas 

que nem o avesso conhecem.

24.10.25

Marco

Cortamos as palavras em dois

o número tangente de que somos imagem. 

Subimos a noite desimpedida

no ecoar das luzes que falam no nosso sangue,

a atalaia aos mundos profundos

uma simples mão pousada na outra

depondo o outubro fecundo.

#4245

Contem 

os metros do dia 

cada milímetro de lágrima vertida 

os quilos de angústia por decifrar.

23.10.25

Amanhecido

Seus

os olhos amanhecidos

como se aos céus fossem

e os lençóis amortalhados

a metamorfose de uma trincheira

onde o único arsenal admitido

é dos corpos que falam com o desejo. 

#4244

Sonhou que era astronauta 

e que do espaço 

viu um revólver a sequestrar a Terra.

22.10.25

Um quilo não pesa um quilo

Desta matéria feito

viro o dia do avesso

e não encontro as costuras 

– o fundo falso tirou ao acaso

um sortilégio. 

As flores mudam o campo

que deixa de estar mudo

ecoando o seu peito farto

pela voz centrípeta das flores. 

No meio da ponte

parece que só há 

o rio sobranceiro ao precipício

a consumição das tonturas. 

Digo:

 

é nas ruas onde o medo se emaranha

que somos além do que intuímos

aproveitando cada braçada 

para amealhar mais gramas 

para a existência inquieta. 

 

Dizem-me 

para não dar atenção ao tempo

para abandonar o corpo aos espíritos que adejam

e eu

teimosamente

respiro o vento cortante 

aparo o sol com os dedos encadeados

sulco o dia vívido 

nos labirintos que me ocupam

e deixo à memória futura

o encantamento escondido

tantas vezes obliterado

o encantamento que se acanha 

nos provérbios gastos pela usura

na conspiração que teço

só para ficar longe da entronização. 

 

Desocupo as montanhas 

que me separam do mar;

afugento as sílabas cortadas

as passagens de nível tão desejadas

pelos aspirantes a subir de degrau

que o estatuto não me deixa enamorado

e não preciso

já nesta idade não jovem

de sentir o regaço 

de todos os que se candidatem ao meu amparo. 

 

Prefiro as coisas na sua lhaneza

os dias sem vestígios de sua memória

o beijo de umas mãos estrelares

os vícios sem redenção

um lugar apurado na pequenez dos lugares

só para ter a companhia 

dos exilados de todas as estirpes. 

 

Fujo das luzes maçónicas

das suas malsãs divisas

e ainda mais

de quem se aliste para o infausto

da condecoração. 

Tiro ao acaso um número:

 

já não me lembro qual foi

mas era melhor do que o que consta

no rodapé do dia.

#4243

Governas por acrónimos

vai-se a ver

és poupado e austero.

21.10.25

Dos nomes outros

Destemido

o invulgar calar

ante a intransigente erupção. 

A escolha

tem aval dos penhores

as ávidas sílabas

que atropelam as frases. 

Não evaporo

os medos estilhaçados

nos ramos quebrados 

à mercê 

do vento que foge do norte. 

Um parágrafo

um parágrafo derradeiro

a estrofe liminar levita entre o embaraço:

empresto a assinatura dos nomes outros.

#4242

Um pacto 

sem servidão;

a muralha

por desfazer.

20.10.25

Nevoeiro limítrofe

As assoalhadas que sejam

não tirem saúde à aorta

nem apetite

que desenha a gula do futuro.

 

Por mal me desenharem

ando por aqui

mortiço

ou apenas caveado

nesta mentira

de que se celebra

assim tão incorrigível

misantropo.

 

Se o nevoeiro

tirasse as medidas

pela cor do meu sangue

ficava ainda um pouco mais 

cerrado.

Injustiças documentadas (605)

Já alguém perguntou 

nessas guerras que por aí há

qual é o preço de uma bomba 

atirada ao inimigo?

#4241

Mal o mel amolece 

mil são os mastros 

que amanhecem.

19.10.25

#4240

Não menos diamante 

do que (n)os dias pretéritos

o corpo atira-se ao porvir 

com uma febre inaugural.

18.10.25

#4239

Hoje 

as pessoas são 

anti-coisas de mais. 

É um peso que se arqueia 

nas costas dos outros.

17.10.25

Manifesto contra as métricas

Alguém disse:

os lamentos deviam passar pela balança

para sabermos quanto tempo levam

a curar.

Outros propuseram:

não se esqueçam da fita métrica

que toma as medidas da angústia

para sabermos das horas por que

desandamos.

 

Pelo silêncio dos demais

dir-se-ia

que não alinham

nos modismos das convenções

e preferem

a incaracterística anomia das métricas;

recomendam esta austeridade 

como critério

para ao menos fingir

que os malefícios que entortam os dias

são encomendados a uma anestesia geral.

Injustiças documentadas (604)

Na sede própria 

não se bebe 

água alheia. 

#4238

Arranjamos metáforas frenéticas 

somos, 

talvez, 

fugitivos dos sentidos.

16.10.25

A cidade diferente

Às vezes

povoava a cidade

com as cores do meu sorriso. 

Enfeitava-a com os dedos desassisados

ela precisava de desarrumação

esconjurava as caricaturas andantes

jurava então um despojamento freático

virada do avesso 

até ser cais dos pássaros itinerantes. 

E a cidade mudava de rosto

todos os dias

como se as ruas mudassem de lugar

ou sem mudarem de lugar

mudassem só de nome

vomitando o cimento inerte

amordaçando 

os procuradores dos bons costumes

naufragados num rio sem paradeiro. 

Os que juravam orfandade

Sitiados pela metamorfose da cidade

condenados a serem nómadas 

sem saírem do lugar

arrepiados pela contrafação de si mesmos

limitavam-se a bolçar o silêncio arrependido. 

Injustiças documentadas (603)

No fim 

de um concurso de ideias 

ficas 

com um curso de ideias.

#4237

Por um fio 

a boca fugidia 

a loucura adiada.

15.10.25

Manual de instruções para corromper o medo

De dia

reinou o eclipse; 

à noite 

dominou uma versão remendada 

de um vulto qualquer,

o espantalho menor

numa litania silvestre.

Até que a noite 

fosse despojada do negrume

e todos as personagens temíveis

ao sono se deitassem.

#4236

Dobro a noite 

a escuridão 

não deixa de segredar

segredos improváveis.

14.10.25

Cerimonial

No vagar das luas demoradas

chamo pelo teu nome. 

Espero

na empreitada de generais sem arsenal

os braços nus;

 

eis a herança que deixo

para memória futura. 

 

Escolho os baldios como pátria

prefiro às cidades onde 

puídas 

habitam as pessoas que jogam ao acaso

e se perdem num labirinto de incenso

atiradas à sua decadência. 

 

Pelos ombros da tarde

vigio as janelas arrumadas

que esperam pelo ocaso. 

 

Não pedimos lume à noite

as ramagens adormeceram sob os auspícios

do vento entretanto omisso. 

 

Digo o teu nome

e o teu rosto

o teu corpo dádiva

sobem ao promontório destemido

e as estrofes vulneráveis

tornam-se o idioma que nos faz falar.

#4235

É este desembaraço 

o vento que leva o rosto livre 

o silêncio emudecido pelo avesso 

o apogeu sem fronteiras. 

13.10.25

Benefício da dúvida

Falsete no avesso de um dia arrefecido

os escombros ainda válidos

murmuram nos ouvidos não precatados.

O vinho anestesia o sangue: 

é disso que precisa

uma providência cautelar ao dia constante

como se atrás viesse uma espada apurada

e o sangue se derramasse nas provetas do medo.

O mosto ainda quente alisa o chão sinuoso

e da pele tingida sobram as pétalas matinais

estrofes avivadas nas tatuagens sem sono.

Da hibernação voluntária

amadurece o desamanhã que importa:

um forte tumulto abraçado à carne suada.

#4234

Perder devia ser banido 

pela bravura de ir a jogo.

12.10.25

#4233

Os espantalhos 

não contam estórias

tanta a atalaia em que se adornam.

11.10.25

Injustiças documentadas (602)

Não sei como explicar:

quando leio bancarrota 

vem à rima Aljubarrota.

#4232

Um sabre propedêutico 

a descer sobre a indigência atrevida 

para dela se dizer 

que está em vias de extinção.

10.10.25

Injustiças documentadas (601)

Preso político.

Preso, político.

#4231

Somos a fortuna 

dedicada a um ouro postiço, 

um fausto manto de ilusões.

9.10.25

Cúmplice

Arranco as páginas

como os dedos se emprestam ao afago. 

Revejo nos lábios 

a usura dos corpos extáticos

a água por dentro

a salivar numa corrida desenfreada. 

Insisto 

na redenção pelo silêncio

nesta habilitação de palavras intuídas

palavras adivinhadas no estuário amanhecido

e na glosa do dia entronizado.

Trago à tua mão desamparada

o destino havido na desautorização da angústia. 

Depois

se formos ao lado do sortilégio

não somos reféns do medo

e sabemos

que a madrugada se demora 

enquanto adivinharmos o corpo cúmplice

que se deita ao lado.

#4230

Já o braço esquerdo, 

o pobre braço esquerdo, 

é o patinho feio 

da anatomia humana.

8.10.25

Injustiças documentadas (600)

Um trunfo 

não é 

um triunfo.

#4229

Só aceito medalhas 

se forem devidas 

por mau comportamento.

7.10.25

Miradouro sem escala

Ser asceta

causa umas dores lancinantes

dantes é que o pio dos dias era viável

e todavia

por voluntária corrupção

desabitei os hábitos estroinas

desabituei-me de distribuir impropérios avulsos

e de amanhecer com a cabeça virada do avesso

como se o norte fosse sul

a manhã noite funda

e de dia houvesse lua a sondar os poemas

 

(amadores,

como este)

 

e no fundo

as mãos descessem para apalpar o céu. 

 

Assim passam os dias

no exílio necessário

eu

nem metade do que fui

aspiração a ser todo e outro tanto

quando a mão se deita ao elixir prometido

a menos

que as promessas sem paradeiro

sejam um logro

e eu

pacientemente

vá mesmo a caminho 

da decadência.

#4228

Dispensáveis, 

os oráculos teimavam 

na indistinta arte do impossível.

6.10.25

Medalha de bronze

A gabardina enjoada 

percebe o sibilar das marmotas.

 

A corda estilhaça-se 

ao ser atropelada pelo navio.

Depois da noite, 

as juras de véspera são testadas.

Assim como as aves murmuram,

como se fossem

ancilares motores de combustão

no processo de aquecimento, 

balbuciando sílabas errantes.

 

Se ainda for a tempo

prometo mostrar o estirador

de onde as ideias fogem em pânico.

#4227

A encenação, 

quando sai dos palcos, 

consome-se em fingimento 

e tropeça na mentira.

5.10.25

Injustiças documentadas (599)

A política da força 

é a política da farsa.

 

[Tentativa de geopolítica]

#4226

Os escrúpulos 

(no plural, para avivar)

voavam como aves de migração

irradiando lugares tão díspares.

4.10.25

Arroz de graúdos

Hoje é dia de pleonasmos. 

As citações aformoseiam as frases feitas. 

Os ogres saem à rua 

disfarçados de emblemáticas figuras

cativando a admiração dos ingénuos

que também saíram à rua. 

Hoje também é dia de estultícia;

quem pode dispensar um módico

de estultícia

para afinar a bússola por que se comanda?

Afinal

hoje é dia do que quisermos que seja

na adoração da liberdade 

– mas daquela que não tem fronteiras. 

À noite

diremos que há contas por acertar. 

Mas isso fica

para um dia sucessivo

à escolha da nossa vontade.

#4225

No topo da manhã 

a maré desfaz-se 

na pele desmatada.

3.10.25

Outono à espera

A sombra que se acende na pele

transgride o sono. 

Murmuro um punhado de palavras

e elas embaciam o remorso. 

Agora somos nós 

a nadar entre a angústia que soubemos gastar. 

Agora

somos nós

apenas

no domínio dos nossos olhos. 

Até adormecermos 

e em nós transfigurarmos os sonhos

o idioma que só nós 

falamos.

Injustiças documentadas (598)

À falsa fé, 

(pois) 

há falsa fé.

#4224

O busca-pólos 

é contra a moderação.

2.10.25

Aviso sem receção

Ó delicada fonte

que salivas gota a gota

o teu soberano desdém

pelas heresias escoltadas

pelos nenúfares sublimes

dos códigos de conduta 

auto-validados. 

Ó

do teu peito geográfico

toda a cidadania perfumada

com o sabre da opinião fácil

e eu

daqui modestamente te digo

que adoro habitar nos antípodas

amassando a massa-mãe dos pecados,

ou lá o que isso é,

limpando com o guardanapo do almoço

os restos dos dias desaproveitados

por gente assim fiel às suas fidelidades. 

Ai de vós

avós do pueril escafandro 

que vos protege do mundo lá fora 

que ensina a roda a rodar ao contrário. 

Pois assim que se arrependerem

e de mim se colarem 

juro logo ser outro ainda diferente

no compasso sem regras

que habilita os que se esqueceram

de causas

por causas (absolutamente) naturais.

Injustiças documentadas (597)

Penso rápido.

Penso, 

rápido.

Despenso.

#4223

SOS 

dos que estão 

sós.

 

(Salvadas sejam

as suas almas

pelos outros

que sós estão.)

1.10.25

Penso, rápido

Os dentes de fora

rabeiam a saliva colérica

os dentes querem sangue

sangue

e vítimas –

ou não é a História 

um inventário de vítimas 

e quase sempre perfumadas 

pela inocência profanada?

 

Não há maestro

e ninguém sabe do paradeiro 

das batutas.

Ninguém se empresta

à escuridão

como uma assinatura em branco

num contrato por revelar.

 

Ninguém confia

na palavra dada

quanto mais

na palavra vendável.

 

Assim vamos

fingidos e motivados

nesta Terra

de terra e mel e sangue

e todo o mar 

para nele encontrar

refúgio.

#4222

Os jardins 

não estão suspensos, 

a bem da humanidade.

30.9.25

A água que não conta

Ninguém 

desce de nível. 

Ninguém

gosta tanto assim 

de poços sem medida à fundura

que sejam meros vultos

fantasmas inabitáveis

e das suas bocas seja entoado

um silêncio aflitivo

que se desmede nas insaciáveis palavras

aprisionadas por uma mudez 

contrafeita. 

Salivo o suor sectário

finjo que estou a fugir

ou fujo por estar a fingir

e de mim ao medo meço uma légua 

no mar enredado pelo atroz, boçal

grito que desaloja os decibéis. 

Cuspo 

atrocidades sem nome

mastigadas contra as feridas abertas

sempre devolvidas 

como encomenda por reclamar

à falta de morada

na impossibilidade de acertar 

o nome certo. 

Cuspo

toda a matéria insana

a covardia dos valentes

a finesse dos mastins

as balas engolidas 

pelos apátridas da serenidade

a indigestão dos indigentes

os maus modos dos diplomatas

os devaneios de senhoras compostas

a descompostura dos deuses avulsos

a imodéstia dos vexados

as partituras gastas de artistas variegados

as luzes estonteantes dos apedeutas

o idioma à prova de gramática

as sepulturas à espera de moradores

as tonturas dos vilões destronados

a usura dos figurões

e toda a procissão

por onde desfilam os métricos exemplos

que inçam de virtude em virtude

de lugar sem lugar

desmontando as paredes grossas, atávicas

despojando o tempo da sua espessura

contrariando o mau feitio que se pega

que antes se pegue em monstros

do que paguem os boémios periciais

ou deles se faça o amianto 

destinado ao que ao amianto se destina

a formatura desqualificada.

No meio 

de um deserto por excesso de árvores

por excesso

dos excessos contados 

no inventário dos pecados

ah!

os malditos pecados

e quem perpetuou tão indigna sindicância. 

Parece

que estou cansado

de tanta folia do avesso

de palavras ejaculadas por serem o seu oposto

como quem cura a fazenda do avesso

e avulsa matéria despragmática torna sua posse. 

Ah!

se tudo isto fosse dito na infusão

das palavras efémeras

se tudo se tingisse de memória

só para contar de trás para a frente

e os insultos ficassem tatuados no abismo

seria 

só um vulto incógnito

a desenhar rostos minimalistas

nas paredes gastas pela usura 

da cidade.

 

#4221

Uso o estuário 

para ser inteiro 

sem esperar pelo 

entardecer.

29.9.25

Jura

Jurei

sobre a pele pálida

o decálogo

contra as botas cardadas

e os empenhados cultores 

de compassos morais.

 

Jurei

sobre os crisântemos depostos

não ser 

o sangue fervente

dos gangsters a soldo 

da destemperança.

 

Jurei

avivar a História

para servir o conhecimento

sem o olvido

da não repetição do tempo.

 

Jurei

o que mais jurar preciso seja

para desobrigar o Homem

da sua forca.

#4220

O corpo, 

amurado, 

preso 

pelo cinto de segurança 

contínuo.

28.9.25

#4219

Os logros 

por falta de comparência 

não deixam de ser 

logros.

27.9.25

Fogo exposto

Adio a boca amordaçada

o vento fala nos interstícios da pele

e o crepúsculo demora-se 

no avesso da alma. 

 

As improváveis sílabas 

mastigadas no tempo tartamudeado

colhem a manhã pela raiz

sob o olhar indigente do mundo atávico. 

 

Sobem a palco os irrisórios mastins

desarmadamente nus

iludidos num império despojado

para serem sindicados pelas almas impuras. 

 

Os mecenas falam sem embaraço

deles é a proposta de indulgência

à medida da sensata negação da vingança

como exemplo para os que suplicam redenção. 

 

A impermanência dos destroços do passado 

é a mnemónica para memória futura

o logro seria o olvido célere

a confusão entre perdão e redenção.

#4218

O suor 

fala na pele cansada 

de um lugar puído. 

26.9.25

Enciclopédia

A minha mão estendida 

para ser o rosto que te diz o amanhã. 

A pele sem remorsos que te ensina a usura. 

A madrugada sem atalaia. 

Um beijo que se soma os dias sobrantes.

A carne que amanhece a meio de um sonho. 

As estrofes que dizemos à medida do luar. 

O lugar onde só somos nós. 

O dia em que não paramos para ser ontem. 

#4217

Sou 

mais do que uma voz 

a bandeira escondida 

o fingimento da mudez.

25.9.25

Vigias

O osso cruel

a faca que fica por dentro

a fogueira onde decaem as flores

o entardecer arrastado

a lava diuturna, a abrandar

o abecedário confusamente colonizado

a matriz celta num teatro crepuscular

a matéria funda que se funda num estertor

a demência dividia por dois e meio

o embaixador itinerante que perdeu a fala

o muito polido sequestro do silêncio

o deve e o haver e o zero como saldo

a enseada brusca

a escrita impessoal e vagamente solar

um bouquet de beijos sortidos para descomprimir

a espada estiolada a desenhar fantasmas 

as ferramentas perdidas indulgência da ferrugem

a véspera adivinhada com um olhar capataz

as armas desengonçadas

e os Rambos de taverna

a matéria-tia arrefecida a gelo avulso

o equinócio sem paradeiro

a estrela masculina

o charlatão aperaltado

o fugitivo sem cais à espera

a sobremesa sem haver mesa

a conta desenfreada

o xerife condenado à orfandade

o pequenote que não é um rapazote

a tinta da tina

e a China suína

a estatura tingida de tatuagens

a estátua tomada por tiranos ambulantes

e uma volta ao mundo

uma dúzia de desejos desembainhados

a congelação não vaga da existência.