O rastilho rabeia
sob os olhos conspícuos
que se confundem
com apatia.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Corre a voz comum
estes
são tempos da morte do teatro;
de cada vez que uma voz soluça
outras são caladas
em nome do um “bem maior”
sem haver quem informe
sobre os limites do “bem maior”.
Costuram-se enredos
adulteram-se os termos
em que se compõem os dias
jogam-se distopias contra utopias
num novelo de farsas
por onde desfila um exército de mitómanos
todos enferrujados
uns com a ferrugem do passado
outros com a ferrugem que há-de ser vindoura.
E o teatro desfalece
o palco consumido por térmitas diligentes
que torcem o braço ao tempo
e cospem nas circunstâncias.
O futuro
tem o nome do medo.
O nome
da obnóxia condição dos audazes
os que se deixam pensar pela cabeça dos outros
e são atirados para a boca das feras
orgulhosos
por ostentarem os galões de testas-de-ferro
quando, coitados, são os frágeis ossos
os óbvios candidatos a serem carcaças
quando no palco público
forem reduzidos a escombros.
As guerras
(o monopólio dos beócios
a tela onde bolçam os funestos
os que desaprenderam o que custa uma vida)
sempre foram este retrato
a síntese apurada da mais pura indignidade
do Homem.
A gala dissolve-se num instante
nós
é que somos da cerimónia os mestres
em redondas odes aos prazeres.
Disse à gema de ovo
que emudece sem a clara
– ou não fosse a clara
a ditar a transparência do ovo.
Houvesse mais gente
a aprender a lição
e dispensadas seriam
as sistemáticas operações de limpeza
que ocupam os braços da justiça.
Se o que dizemos
precisa de suspensórios
queremos arneses
tutores lisonjeiros que dão aval às palavras
estetas desabridos no coração da moral
um sofá rombo para exercer a preguiça.
Se o que dizemos
se subleva contra nós
não desistimos da fala
nem do consagrado direito a asnear
ou de perfumar os dias com a liberdade
de apenas
ser.
As maldições escaninhas
as que se insinuam entre teias de areia
ficam por conta de quem as tutela.
Nós
só queremos
um gelado ao entardecer
o calor da mão amada
um jardim bucólico como exílio
os filhos a espigar
e todos os ocasos que pressentem
a aurora consecutiva.
Já que a ninguém
é dado acasalar com misérias
tirar a barriga delas
é bom conselheiro.
Sem entrarem na boca do lobo
os rebeldes
disputam a coroa de vadio:
é um disparatar à toa
como se não soubessem os nomes
e forjassem um despudor de alma
que não passa de uma farsa.
Soubessem
que ser vadio não é injúria
e não participavam
neste cortejo de agravos
não reconhecidos.
Um vago rumor nos bastidores
a melancólica nuvem a descer do passado
e um estirador à espera de intenção.
O fogo que arrefece o labirinto
o revés assimilado no alfobre dos embaixadores
a litania que corre atrás das falas excessivas
a espuma escondida atrás dos néones
os nomes exaustos que moram no cais
os rostos emudecidos na solidão imprevista
as saias a fazerem de cortinas
o palco esburacado onde só mora o escol
as baionetas descontinuadas por medo do futuro
um leve beijo que acetina a pele
a prole devida em abundantes presunções
o leito cabal à procura de cabimento
o cabaz sem nome que ensaia o exílio
a amadurecida combustão sem espera
os tiranetes depostos em ato sem impugnação
a memória resguardada dos segredos embaciados.
Do espelho
estilhaços avulsos
a mudez invernal
a súplica de um luar.
Os braços
avalistas das bandeiras
arremetem contra a sisudez
dicionários dos dias sem sombra.
As montanhas
silhueta capaz
ensinam a lucidez
a peregrinos da altivez.
Rejeitados
os demónios extravagantes
emudecem por dentro
apaga-se a chama dantes temida.
O amanhecer
verbo nunca gasto de simplicidade
amarrota os rostos estremunhados
desanunciando os tradutores do desassossego.
Esbraceja o ódio antes que seja futuro
dá-o como património de colóquios
manifestos vários em forma de arte
fantasmas sopesados com o jugo cirúrgico
de quem fabrica oráculos.
Sê tu o agente que fermenta o ódio
o desambientado embaixador de radicais
o desbocado comparador de Histórias sem igual.
E depois
quando a profecia que
(parece)
queres revelada
tiver aquiescência pela mesa de voto
não digas que te esqueceste de forjar
tão profana profecia.
Remexes a areia
com as mãos molhadas
participas no esconderijo
onde as coisas são a sua negação.
O sol espreita entre as rugas
enxuga as lágrimas amanhecidas
no leito insistente do nevoeiro.
Os olhos crepusculares
decantam a luz agitada
traduzem sílaba por sílaba
o sortilégio animado
pelas falas que despontam.
As asas de um anjo
esbracejam as rimas
e adiam a solidão:
por cada adeus soletrado
fica uma dívida por abater.
Ainda está por determinar
qual das duas é a segunda mão
para se estabelecer
que é inferior à primeira.
Desmata os rumores que fogem da conta.
O ruído é um pano de fundo escusado.
Uma espada que trespassa a lucidez.
No inverno do desespero
onde não congelam os males artesanais
e a ciclópica tentação pela usura
remexe na terra com as mãos nuas
e descobre
como quem ganha uma medalha
a recompensa sem preço:
as palavras
não são murmuradas
porque não escondem segredos.
Arrancados os rumores pela raiz
não há conspirações que se instalem.
Talvez
havendo juízo só em saldos
seja possível a lucidez sem arestas
um tempo amovível dissolvido entre as nuvens
o desembaraço que dispensa planos
o retrato inteiro de rostos escondidos uns
disfarçados outros
da vergonha empunhada em nome próprio
uma espécie de unidos estados outrora divorciados
o navegar em doca seca
e acreditar
com o cimento próprio das fés religiosas
que se foi tribuno de façanhas singulares.
E depois
com o entardecer
hastear os violinos estonteantes
mesmo os que têm cordas rombas
e partir como se fosse marinheiro
partir
com o travo doce de quem sai à aventura
sem mapa nas mãos nem corda sobre o tempo
apenas irremediavelmente náufrago
em lugares de que nem depois há existência.
Os estilhaços vitalícios
secretamente escondidos no húmus
fortificam a pele rosácea
vacinada
contra os obséquios de loucos e profetas.
Descontam os balcões puídos
a fala desarticulada
que voluteia como um pêndulo mecânico
sempre à procura de presas
fáceis.
Os ardis consequentes
descontentam as almas purificadas
os embaixadores das virtudes:
pois das virtudes
diz o cancioneiro
que se estilhaçam no vitalício fingimento
em que se orquestram
os dias seguidos.
O corsário devolve a espada
no estuário onde naufragou o dia.
Vence o sono
contra as previsões
do pesadelo que tomou conta da noite
e respira no cachaço do dia
empresta-lhe o ânimo
a desmentir a previsão de funeral.
O corsário
deposto do seu posto
vestiu farda civil
e agora não se distingue
dos piratas disfarçados.
Abriga-te na lotaria sem paradeiro
não é a sorte que demandas
apenas uma varanda
onde possas respirar a gramática do avesso.
E ainda que as probabilidades
Estejam contra ti
não o tomes por conspiração
o mundo tem outras pendências urgentes.
Na lotaria dos párias
onde julgas habitar
és enjeitado
por excesso de virtudes.
Quem te manda ser
ó castiço
um castiçal de probidade
um autêntico desexemplo cultivado
na litania dos paradigmas prístinos?
Detidos os farsantes em serviço
ficou uma sensação de maré-baixa
aquele odor a latrina
impróprio para consumo
mas próprio dos lugares soezes.
Valha-nos
o vinho licoroso
as páginas cheias de mácula
e o pecado sistemático e impudico.
Estamos entregues à bicharada
e isso valeu-nos uma queixa no tribunal
por antropocentrismo.
Bebe
desse copo
da diplomacia.
Respira
as palavras que anestesiam
as juras de vingança.
Relê
(ou lê,
se não for aquele o caso)
os cartapácios de História.
Depois
subleva-te
denuncia os adamastores
que ultrajam vidas
sob a forma de arsenais
ou de um punhal assestado
à jugular coletiva
instaura processos disciplinares
confeciona cartas de intenção
protestos contra impostos
ou outras modalidades
que cerquem os infaustos mandantes
no cárcere de si mesmos.
Pela volta do correio
se teimarem em aleivosias useiras
sugere
educadamente,
mas com persuasão em dose certa,
que se encomendem ao exílio perene
e a uma distância de segurança.
A porta aberta.
A boca fria.
O porte suado.
O luar ornamentado.
O xaile puído.
A concha destroçada.
A bota em nome da paz.
O bordado ancião.
Os ossos se sombra.
O pecado alijado.
O hino envelhecido.
O estertor aproximado.
A culpa sem culpado.
O remorso escrupuloso.
A palavra poupada.
A voz sem ser quebrada.
Os gatos presentes.
A noite furtiva.
O navio encalhado.
A chuva invisível.
A escotilha escondida.
A centelha de atalaia.
Ainda não repararam
que falar de cifrões
é um anacronismo
(mas ainda vão a tempo
de reparar o lapso).
Asfalta as juras com cores banidas
alimenta os demónios com uma casta singular
extrai o magma abraseado dos ramos puídos
e fala
fala com o desejo da liberdade
antes que o anoitecer absolva as trevas.
Foragido ou forasteiro
a neblina que embaciava o entendimento
tornou-se embaraço a estorvar a lucidez.
Aos que apostavam no forasteiro
ficou sem explicação
o modo furtivo de quem desconfiava
até
do mais leve suspiro limítrofe.
Os que deitaram dinheiro no foragido
não souberam perceber
os modos ligeiros que eram pressentimento
misturado entre os demais
sem medo sequer do medo
e muito menos
da coerciva presença da autoridade.
Outros houve
que protestaram cautelas
em nenhuma das hipóteses:
forasteiro ou foragido
tocava-lhe decidir o estatuto
e aos demais o julgamento era vedado.
Na pior das hipóteses
haveria quem
absorto das condições contratuais do mundo
misturava as duas condições
na infame propensão
para enviesar o dicionário.
Lobriguei alcançar
a fábrica dos desacontecimentos
o lugar exuberante
povoado por uma miríade de nadas
repleto de bandeiras a favor da indiferença
sem causas nem apóstolos
(useiramente “personalidades”,
que as massas,
contra os prognósticos dos ideólogos,
gostam
– dir-se-ia, para caucionar o rigor,
precisam –
de ser apascentadas)
nem vagas de fundo,
que essas estão vagas
em sinal de maioridade das massas.
Empanturrei-me
sofregamente
como se fosse o pária dos párias
na ágora dos desacontecimentos
trespassado por um irredentismo não banal.
Deitei-me
uma sensação de total preenchimento interior
era o que sentia na pele em flor
como se a mente pesasse
a tonelagem de um elefante.
Durante os sonhos
entoei uma prece
aos párias dos desacontecimentos
sob o protesto dos gurus limítrofes.
Deixei-me posar ao lado de uma interjeição.
O quadro parecia bucólico
os dentes cariados bem escondidos
pelos lábios em forma de perfeição
lábios daqueles
que ateiam pensamentos carnais
enquanto a voz de comando
ordenava ao luar que mantivesse
a compostura.
Um poema não dá de comer a ninguém,
advertia o ministro com a pasta toda
e o séquito,
os conselheiros mais os rapazes do partido
e aqueles patuscos
que se emprestam como pano de fundo
quando sua excelência perora para as tevês
– a seita de aspirantes
acenava obedientemente
concordando
– pois então.
Uma serpente espreitava
entre os pedregulhos sobranceiros
ao lago no jardim grande
salivando o veneno
que só os déspotas entendem.
Não bati em retirada;
aliás
não bati em nada
sou um pacifista emérito
e nunca
– juro que nunca,
sem correr o risco de ser apanhado
na curva sinuosa da mentira –
tirei de esforço com vivalma
viva ou morta.
Nestes preparos
vou ali às escondidas fumar um cigarro
eu,
que não sou fumador,
só para contrariar o edil de Milão
que se lembrou de proibir o tabaco ao ar livre
aprisionando-o
na extensão do fascismo higiénico
que coloniza e coloniza e coloniza.
A exuberância da época
ou a embriaguez dos convidados
para o festim do consumo:
todos aos saldos
todos aos saltos.
Em meu nome
as bandeiras derruídas
os archotes contra o solipsismo
a matéria etérea nas costuras do dia
os dados que nos são dados
enquanto os dedos adivinham a manhã.
Em meu nome
constelações por inventariar
a pele junto ao peito
o forasteiro dividido
entre a pertença e a ausência
um proeminente cabo que investe contra o mar
a maresia agitada contra as bocas druidas
uma armadura à prova de mundo
o cais generoso.
Em meu nome
o paradeiro dos escrivães dos tempos omissos
a letargia fundente
o degelo armistício
o esquecimento pródigo.
Muito se fala
da última instância
sem se saber do paradeiro
da instância primeira.
Ainda esperneiam
as borras do ano ido
e uma promessa de ano
debate-se
no frágil espaçamento do tempo.