Ave,
te saúdo,
sem que me digas
que o ave vale um avo.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Somos feitos de metáforas
a argamassa fina que cola os ossos
a cidade fecunda de onde tutelamos o mar
somos
os gomos gordos que escorregam dos dedos
a alvenaria todavia puída
um refúgio escondido na planície
uma gramática a desjeito
o desajeitado forcado
que levanta o dia pelos cueiros
a mortalha suada sobre a boca servil
uma imenso mapa
à espera de lugar.
A rendição
tem de ser escrita
apalavrada
com a jura solene de uma assinatura
ou pode ser apenas dita
sem entoar a jura
apalavrada?
A rendição
é a tatuagem da derrota
ou pode embutir na madeira
um empate cavalheiro?
A rendição
pode ser fingida
ou sendo apalavrada
não admite farsa?
É possível
falsificar a rendição?
E o que interessa a rendição
se não há sequer
beligerância?
Não sirvo o inadiável
não sirvo para candeia
não sou o servil fantoche
disfarçado na vontade de outros
estremunhado na sua incendiada vontade.
Não suponho farsas
não me sento no lancil do desespero
não corro atrás das vanguardas
(que contradição de termos)
penhorado por rostos impassíveis
devolvido aos meus impossíveis.
Arqueio o braço pendido
os copos fulgurantes descendo dos céus
a mecha sem mouche
ou o espantalho servido de espátula
cortando a direito no Direito
tal como
o povo escarcéu que pudesse
ó vontade ser feita
esquartejava o alegado que julgaram
antes do tempo
silenciando o alegado
que eles já sabem tudo
o que está em falta saber.
Cheia vai a barriga
de genuflexões e elogios
todos bastardos.
Dizem:
o que importa?
Mesmo sabendo que são uma farsa
justamente por deles se saber
serem uma farsa.
Dizem:
para hipocrisia
hipocrisia e meia.
Quero dar-te uma palavra;
não espero que gratifiques
tão longânime desprendimento.
Pede o silêncio
que não se faça pouco
da tímida luz.
Não é encenação
e mesmo que fosse
ao teatro perdoa-se sempre
o palco de fingimento.
Fica a mordaça
entregue às palavras
que não chegam a ser ouvidas.
O silêncio esconde-se
nas ameias guardadas
por espartanos fiéis
os que juraram arremeter
contra os gongóricos.
A palavra breve
monástica
tem mais a dizer
do que a prolixa tempestade
que as atira, intermináveis,
para o lugar onde irrespirável
o ar se amaldiçoa.
Agarro o dia pelos colarinhos
desafio-o
a ser o lado visível da coragem
a sair do lodo em que se consome.
As flores não se escondem nos canteiros
nem quando a tempestade vira tudo do avesso:
o dia
não pode ficar por menos
só precisa de ser agitado
fortemente convulsionado
pelos colarinhos
para se libertar do torpor suicida.
Ai do dia
se sobrar impávido
e os colarinhos vierem puídos:
ainda confiamos no dia
não precisamos que ele seja embaixador
da apatia que nos condena
a vegetar sem ânimo de coisa diferente.
O que há a dizer dos amigos do alheio
são duas coisas:
primeiro,
são de uma generosidade desarmante
(são mais amigos do que não é seu);
segundo,
medram na antítese do narcisismo.
O que deixarmos sem tréguas
será a caução gasta dos impérios a destempo
o gume acertado no roseiral
enquanto se fabricam dádivas
e as palavras entontecem na magreza da maré.
Os deslimites juntam-se aos patriarcas do medo
que falam idiomas incontinentes
e exibem as joias intensivas
que pesam sobre o peito válido.
Não aceitamos conspirações
nem damos troco a déspotas
no reino nosso sem hino nem nome
destinamos ao enfado
os que aparam a língua puída
e desfeiteiam as páginas límpidas
as que haviam sido resgatadas
ao céu luminoso que dava nome
ao horizonte.
You get these words wrong:
finjo
fujo
dou-me
às palavras fungíveis.
You get these words wrong:
amortalhado, não
nem murado
pois antes
mestiçado
corrijo as palavras
em proveito próprio.
E portanto:
leave me alone,
sentinela
subindo à lapela
sulcando o precipício
o sinédrio da sabedoria
em cestas ensinada
sideral
no centrípeto salão
das palavras em forma
de senha.
Está talhado
para ser salvífico
mas desconfia-se
que não tarda a talhar.
A colheita dos vis
avizinha-se no espelho riscado
rosnam os desavisados sem pudor
apequenados no vulcão despenhado
dispensando o grotesco rumor da turba.
Não seja pela vileza desanónima
o fausto crepuscular que esbarra na clepsidra
um estilhaço misturado com a carne
a matéria corrompida no altar dos farsantes
e tudo o resto
destroços abraçados a comendas
o justo rugir que substitui os idiomas.
As luzes escondem-se no labirinto do corpo. Não mentem: averbam as juras desprezadas nos despojos de um tempo sem sinal. Somos sentinelas dos sonhos sem paradeiro, como se déssemos nome ao estuário que abriga os navios. Emprestamos luz ao mar. E ouvimos dizer que o mar está de vigia por nós.
Corres atrás da fonte das palavras
os dedos juram estrofes sem medo
como se apostassem na redenção.
Desdissesse as juras amontoadas
os vultos então emparedados
condenados ao silêncio
e a noite enfim soberana na escolha
dos sonhos desembaciados.
Os apeadeiros não tinham nome
como as pessoas não tinham nome
e eu sabia
no provisório desdém da verdade
que as profecias nunca têm validade.
Chamava pelo ciciar da fala perto
um miradouro às escondidas
os corpos insinuados nas sombras revezadas
até que as portas desembaraçadas
se abraçavam às sentinelas sem freio
levantando as credenciais
e o medo cristalizava em leves socalcos
só à espera
de o luar confirmar
a voz penhorada da noite.
Antes que o satélite do asnear
entre em órbita
guarda
para memória futura
o artefacto da lucidez.
A pauta espoliada
à guarda dos centuriões
desmata os segredos de outrora
válidas arcadas sobranceiras ao espetáculo
da vida.
O gelo finge as fissuras
imita a estultícia sem rodeios
as pagas por haver no débito sem inventário
como as bocas pasmadas
que esperneiam com o toque de Midas
– o operário nas horas vagas da humanidade –
combinando as sílabas destronadas
com os episódios de humildade
que conferem,
enfim,
a maravilha da espécie.
A sentença da manhã
derramada sobre os rostos inaugurais
conta os versos que saciam a letargia.
Mantemos as cortinas hasteadas
interditamos os olhares forasteiros
como manda
a reserva do direito de admissão.
Não fujo do tempo enquanto habito a luz decantada pelo teu olhar.
Subo pelo corpo que me salva sem precisar de arnês.
Descubro o miradouro onde o vento esconjura os pesadelos.
É à noite, depois da solidão derrotada, o desembaraço das almas deixa-nos a contar histórias.
Essa é a enciclopédia que escondemos do futuro.
As sílabas apenas sussurradas.
Levitando o poema que escrevemos a quatro mãos.
Não é dorso que dança
no improvisado verbo que se avessa.
O denso dardejar dos dedos
ensaia estrofes no estuário ensinado
o vago ondear que vagueia nas onomatopeias.
Fujo afivelando os fusos como alfinetes párias
o troar que olha de longe os tribunais
no adro ladrilhado pelo silêncio ladino.
As horas fogem da horda
o militante dever misturado com a cidadania
versos avisados no volante da vontade
ou apenas as penas à revelia do revés.
Faço campanha sem a taça por companhia
eu
acidental comparsa de vultos sem pressa
aviltando o ocidental compadre das farsas
no povoado onde se aviva o coloquial.
A mão estendida bebe na pele suada o bordado das palavras sem adiamento. Tempera um vulcão promitente, suplica o insaciável. As bocas ateiam a combustão. Entregam os juros por inteiro em sílabas desmedidas. A manhã não passa de uma luz desmaiada. E nós, fugimos da manhã para dar ao gelo o fogo de que somos mecenas.
Martelo
és pneumático no percutir
e abandonas os choros ao troar insistente.
Martelo
por quem és
esvoaçando mistérios
alinhavados no movimento basculatório.
E se, martelo,
te vierem desmembrar
na solidão da madrugada altiva
seccionado a bigorna metálica
da haste em madeira puída,
de ti dirão que foste aliviado de serventia
agora perdido na inútil disfunção de ti mesmo.
Não tivesses sido algoz
agora à mercê da justiça com a assinatura
das vítimas que arrolaste.
As vozes fogem dos ossos
amedrontam-se
com os opúsculos que desacertam as certezas
enquanto os demónios
que conspiram nos telhados estroncados
não se sossegam.
A trovoada ingénua
empresta uns modestos clarões à noite
vocifera o gemido castrado
dos deuses desautorizados
– os pobres deuses que
se pudessem
só tinham as saudades como alimento.
Estes são os visíveis rostos
da parte de fora dos corpos
lençóis estendidos escondendo a pele
como se fosse vergonha
o gentil canto que chama os pássaros.
Corria o vento
mais depressa do que a memória
esbracejando com o esquecimento
como idioma franco.
Esse é o medo maior
do tempo que se transforma em idade
o esvaziar por dentro
a falta que faz aquele eu que era memória
e agora está esquartejado
num labirinto invisível.
O nu motivo acendeu o verbo
agora
preso ao animal povoar
a pele que não escama às súplicas menores
logo nós
na habilitação do sangue
a desaprender a corrosão
a nossa cidade é a maresia tectónica
o abraço que funde as camadas de magma
até sermos um oráculo incerto.
Guardo o sangue passado
no rio que se torna mar
num futuro que não tarda.
Escolho as sílabas cantantes
entre o medo de ser
e a ambição de vultos torrenciais.
A fita métrica
sobe a andares altos
onde solenes discursam
os embaixadores da pertença.
Guardo o sangue
passado de desperdício a passaporte.
Se ainda for a tempo
digam que fui discreto
na convocatória de ovações
pois, assim como assim,
elas eram sempre em causa alheia.
Nunca soube
de mim ser
embaixador.
Tivemos
uma desinteligência artificial,
comentaram
a propósito de uma desavença.
Não se diga
de um beijo arrancado
que é como o arrancar de uma página.
Há beijos
que não se dão
a menos que sejam arrancados;
e há páginas
que merecem ser arrancadas
para ganharem adesão.
Levas com o arroz
se fores insincero
(que gostamos de eufemismos
e insincero é menos denotativo
põe uma máscara
na mentira sistemática).
O joelho fraco vacila
afocinha na valeta marota
dele se riem os bastardos
que não fogem de manjares
mas não se importam
não andam à caça de mentores
nem se intimidam com a noite baça
que sobe ao céu desalojando o luar.
Inaugurado o silêncio
falta descobrir o primeiro a violá-lo;
não será crime airoso
nem aqui se convocam
carnalidades ao desbarato:
às vezes
antes a voz moderada
e deixar por conta do silêncio
a voz significativa.
(Ou será pior
o silêncio como uma lâmina
que decepa a confiança
pior a ser
do que as palavras
que mais feridas instruam.)
As espadas
estão despojadas pelo chão
e os tutores da lógica
destronados
resistem dentro das camisas que os aprisionam.
Não gostam de ser contrariados
não nasceram para esse desfeitear.
Corre a voz comum
estes
são tempos da morte do teatro;
de cada vez que uma voz soluça
outras são caladas
em nome do um “bem maior”
sem haver quem informe
sobre os limites do “bem maior”.
Costuram-se enredos
adulteram-se os termos
em que se compõem os dias
jogam-se distopias contra utopias
num novelo de farsas
por onde desfila um exército de mitómanos
todos enferrujados
uns com a ferrugem do passado
outros com a ferrugem que há-de ser vindoura.
E o teatro desfalece
o palco consumido por térmitas diligentes
que torcem o braço ao tempo
e cospem nas circunstâncias.
O futuro
tem o nome do medo.
O nome
da obnóxia condição dos audazes
os que se deixam pensar pela cabeça dos outros
e são atirados para a boca das feras
orgulhosos
por ostentarem os galões de testas-de-ferro
quando, coitados, são os frágeis ossos
os óbvios candidatos a serem carcaças
quando no palco público
forem reduzidos a escombros.
As guerras
(o monopólio dos beócios
a tela onde bolçam os funestos
os que desaprenderam o que custa uma vida)
sempre foram este retrato
a síntese apurada da mais pura indignidade
do Homem.
A gala dissolve-se num instante
nós
é que somos da cerimónia os mestres
em redondas odes aos prazeres.
Disse à gema de ovo
que emudece sem a clara
– ou não fosse a clara
a ditar a transparência do ovo.
Houvesse mais gente
a aprender a lição
e dispensadas seriam
as sistemáticas operações de limpeza
que ocupam os braços da justiça.
Se o que dizemos
precisa de suspensórios
queremos arneses
tutores lisonjeiros que dão aval às palavras
estetas desabridos no coração da moral
um sofá rombo para exercer a preguiça.
Se o que dizemos
se subleva contra nós
não desistimos da fala
nem do consagrado direito a asnear
ou de perfumar os dias com a liberdade
de apenas
ser.
As maldições escaninhas
as que se insinuam entre teias de areia
ficam por conta de quem as tutela.
Nós
só queremos
um gelado ao entardecer
o calor da mão amada
um jardim bucólico como exílio
os filhos a espigar
e todos os ocasos que pressentem
a aurora consecutiva.
Já que a ninguém
é dado acasalar com misérias
tirar a barriga delas
é bom conselheiro.
Sem entrarem na boca do lobo
os rebeldes
disputam a coroa de vadio:
é um disparatar à toa
como se não soubessem os nomes
e forjassem um despudor de alma
que não passa de uma farsa.
Soubessem
que ser vadio não é injúria
e não participavam
neste cortejo de agravos
não reconhecidos.
Um vago rumor nos bastidores
a melancólica nuvem a descer do passado
e um estirador à espera de intenção.
O fogo que arrefece o labirinto
o revés assimilado no alfobre dos embaixadores
a litania que corre atrás das falas excessivas
a espuma escondida atrás dos néones
os nomes exaustos que moram no cais
os rostos emudecidos na solidão imprevista
as saias a fazerem de cortinas
o palco esburacado onde só mora o escol
as baionetas descontinuadas por medo do futuro
um leve beijo que acetina a pele
a prole devida em abundantes presunções
o leito cabal à procura de cabimento
o cabaz sem nome que ensaia o exílio
a amadurecida combustão sem espera
os tiranetes depostos em ato sem impugnação
a memória resguardada dos segredos embaciados.
Do espelho
estilhaços avulsos
a mudez invernal
a súplica de um luar.
Os braços
avalistas das bandeiras
arremetem contra a sisudez
dicionários dos dias sem sombra.
As montanhas
silhueta capaz
ensinam a lucidez
a peregrinos da altivez.
Rejeitados
os demónios extravagantes
emudecem por dentro
apaga-se a chama dantes temida.
O amanhecer
verbo nunca gasto de simplicidade
amarrota os rostos estremunhados
desanunciando os tradutores do desassossego.
Esbraceja o ódio antes que seja futuro
dá-o como património de colóquios
manifestos vários em forma de arte
fantasmas sopesados com o jugo cirúrgico
de quem fabrica oráculos.
Sê tu o agente que fermenta o ódio
o desambientado embaixador de radicais
o desbocado comparador de Histórias sem igual.
E depois
quando a profecia que
(parece)
queres revelada
tiver aquiescência pela mesa de voto
não digas que te esqueceste de forjar
tão profana profecia.
Remexes a areia
com as mãos molhadas
participas no esconderijo
onde as coisas são a sua negação.
O sol espreita entre as rugas
enxuga as lágrimas amanhecidas
no leito insistente do nevoeiro.
Os olhos crepusculares
decantam a luz agitada
traduzem sílaba por sílaba
o sortilégio animado
pelas falas que despontam.
As asas de um anjo
esbracejam as rimas
e adiam a solidão:
por cada adeus soletrado
fica uma dívida por abater.