O alterado verbo meu
que não espera por dádivas.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Se um dia
vier um vento omisso
e do avesso a cabeça fruir num precipício
não me digam
que é uma conspiração de Morfeu
não me digam
que estou de avanço pelo fuso telúrico
e de mim se espera
apenas
a morada do silêncio.
Se um dia
as portas decadentes combinarem
com os veios da luz contrafeita
e eu
aos deuses continuar sem dizer palavra
que me sejam abraçadas as bocas extáticas
a irremediável porção da noite
desencomendada aos anjos galopantes
e num arremedo de audácia
a mim
convoquem as estrofes ajardinadas
o penhor de todos os medos
e eu
via láctea sem muros
me torne baldio não cadastrado
o amador profissional
que dá de penhor o sangue eflúvio
e uma prateleira de versos.
Um cofre arrendado ao porteiro
a parola que se avinagra nos mentirosos
essa terrível mania de falar da vida dos outros
viver – como se fosse possível – a vida dos outros
o asfalto perene que se cola ao céu da boca
e acaba com a mudez das consoantes
as diatribes de que são vítimas
na pessoa de fantasmas bem oleados
ao frequentar a disciplina
“princípios gerais da conspiração”.
Um nabo a tiracolo
(estou mesmo a falar do vegetal)
emagrecidos pela dieta exemplar
os lugares-tenentes assobiam para dentro
à passagem de uma mulher escultural
agora são proibidos os piropos
foram extintos os piropos
a bem da antítese da masculinidade tóxica.
Amanhã
quando vierem os operários da metalurgia
vais tirar o modelo das fardas;
pode ser o futuro último grito da moda
antes que a moda emudeça de vez.
Ao nono dia
tirou um curso intensivo
sobre como passar
dos atos às intenções.
O piano amortece nas teclas trocadas
e nós mentimos à idade
boémios encartados
no povoar dos lugares pródigos.
Não deixamos
que os adiamentos falem mais alto.
Passamos uma rasteira ao tempo tirano
e acabamos a rir
como se não houvesse outro verbo.
Somos o nome da cidade
a esquecer a vergonha mortífera.
Manual de instruções
do peripatético pastor das massas:*
o ridículo
nem mata nem mói.
*[No dia em que é capa do DN a primeira sondagem com o Chega à frente das intenções de voto]
Ninguém perguntou ao corço
se quer participar no carnaval.
[Laivos de antropocentrismo]
Desta janela
desenhamos a paisagem.
É a nossa feitoria
como se a história tivesse parado
e os rios habilitassem as estrofes cheias.
As mãos dão nomes aos lugares
numa alquimia que cobre de ouro
as veias animadas com o vagar do tempo.
Atravessamos o luar tingido:
é nas costas do medo
que descobrimos o segredo.
Os países
não têm biografia.
As pessoas
não têm bandeira.
As almas
não têm custódia.
Um aformoseado ramo de cheiros
coloniza o quarto
a centelha acende-se na fruição das mãos
mesmo que estejam às escuras os olhos
mesmo que pendidos amanheçam os dias
não são as convulsões averbadas pelos pesadelos
a desfazer os propósitos
e o reino não fica pária.
Amanhã
começo no dorso da manhã
e sigo por aí dentro
até ser o imperador ilibado
o poeta sem franquia
que não desiste
não desiste
e do dia
faz o seu trono imorredoiro.
Os gomos da esperança
esmagam-se
contra a boca insaciável.
O seu sumo promitente apetece
até aos deuses.
Escolhi os dados sem números
não creio que a sorte tenha paradeiro
e que se oponha ao bálsamo do azar.
Escolhi o acaso
a melhor tradução da sorte e do azar.
A pele como a pedra granítica
o suor como a chuva fria
a noite como o sono fundo
as serranias como uma voz doída.
Permitia o verbo dissidente
enquanto pendia sobre a fogueira
todavia de atalaia aos mastins desenfreados.
Sentado numa margem
(a margem da sua escolha)
olhava os altaneiros procuradores
com desdém
deles desconfiando por dever de princípio.
Os outros também desconfiavam dele:
era por intimidação
esbracejando com o medo da dissidência
e com a solidão que lhe era dedicada
como preço a pagar pela ousadia.
Esse era o incentivo diligente que precisava
para continuar a morar naquela margem.
Não brandissem bandeiras
hinos que faziam levantar plateias
os ossos dos antepassados
como fermento da pertença
ou até o idioma por que se faziam entender
(que a língua só é pátria para os literatos
que a usam como ferramenta de profissão)
não despachassem para os compêndios da História
ou para outras mnemónicas sebastiânicas:
a matéria-prima que precisava
era o livre pensamento
dispensava
todas as trelas aparelhadas
pelos diligentes engenheiros
que ensinam a obediência irrenunciável.
Até hoje
não se arrependeu.
O antídoto da ferrugem
é saber que a ferrugem
não existe.
No dia
em que a mnemónica
se perder no restolho da distração
a ferrugem
vai começar a tomar conta de tudo
com vagar mas pertinácia
até atingir o estatuto de irremediável.
Nessa altura
Nem a nostalgia
(ou sobretudo ela)
será antídoto aceitável.
Os últimos dias
foram apenas a véspera
de outros dias.
Deixo ao acaso
a matéria funda
onde as vozes se congeminam
o lugar não sonhado
das flores evisceram o medo.
Meto as metas no alfobre das perdas:
no lugar de onde venho
as armas não se terçam
diante dos rostos impassíveis
e sei das estrofes descombinadas
que aguentam tempestades.
Sei
de fonte segura
o dia seguinte
não se intimida com o pretérito
por mais pesado que seja
o composto herdado
por mais inverosímil que venha a ser
o apanhado das memórias
na colheita avulsa.
Os fantasmas
não precisam de esconjuro;
se fantasmas são
só se devem a quem os alimenta.
Sonho, todas as noites, com um país diferente.
Sonho com um país diferente todas as noites.
E são coisas diferentes.
O processo fabrica as mãos
no augúrio do desmedo
que averba o dia prodigioso.
O riso amacia as palavras.
Desmonta a privação de modos
em esgares que esconjuram a bondade
(ele há casos
em que os desmodos entre o casal
não significam
senão
o insensato despovoar de cortesia
a insignificância de um sentido sem cimento).
O sol irrompe atrás do nevoeiro matinal.
Há sempre uma cura
o fio que nos ata ao exterior de nós.
As varandas não deixam ninguém de fora.
Ah!
se soubéssemos o paradeiro
dos dicionários escondidos
não seríamos apóstatas
em nome próprio.
Perguntei ao espantalho
quantas auroras boreais tinha visto
ele disse
que passa muito tempo a dormir.
O cursor flameja
na folha branca e impaciente
à espera de uma ordem
à espera de se transfigurar
em palavras.
O córtex obsoleto
matéria-prima de necedades
concebe-se usura da inteligência
à conta da facúndia lúgubre.
Aos beócios sem remissão
as armas sem destruição massiva
(eles diriam maciça,
em rima
com a sua linhagem reconhecida)
a postiça erudição
à falta de paradeiro
profetas das suas próprias profecias
viciados na anestesia do demais.
Gota a gota
o suor bolçado
efervesce a pele
na clepsidra hiante.
Dos olhos
a paisagem sondada
desenha uma silhueta
no escafandro enferrujado.
No perímetro
lugar desviado do sagrado
adormece o adro
em seu sentido espectral.
Diz esta pérgula
que foi síndica de paixões
sem culpa formada
por ser bucólica atração.
Ao mar
as angústias evisceradas são devolvidas
nadam na profundidade
na escuridão em que medram.
Dou-me à noite
guardiã improvável da carne
na anestesia do pensamento
o lugar onde se fabricam os sonhos.
Que segredos esconde
a maré alta
a não ser a conceção do segredo
que se esconde sob o vidro fosco
do mar agitado?
Que verbos desalinha
a maré baixa
por deixar os destroços da maré prévia
de que não consta
sequer
entrada em dicionários?
Que saques
acordam na penumbra
enquanto as marés disputam o púlpito
e os números não contam
na aritmética?
Que provérbios
ficam por inventariar
pelo marégrafo intrigante
que esconde as folhas
sob o restolho do Outono?
Uma vantagem dos cínicos
é estarem sempre à espera
dos contratempos
para depois dormirem com eles.
Outra vantagem
é desconhecerem a língua de trapos
da desilusão.
O espaço que dista
até deixar de ser lucidez
é a medida escolhida
a multiplicar por
(número à escolha do leitor).
A língua prova o azulejo
como se fosse o esquadro
onde se compõe a gramática.
Não digas à lua,
segredas
para ninguém ouvir,
ou ela esconde-se
sob nuvens mal humoradas
e depois temos de adiar
o sortilégio da noite.
Ao baralho
faltam
(número à escolha do leitor) cartas;
não se suponha
que um dos gladiadores
fica em vantagem:
a adulteração da sorte e do azar
é indiferente
ao número de cartas em falta.
Corre ao miradouro
pode ser que vejas o luar
desenhado em azulejos distintos
onde se escondem
as cartas em falta.
Ensaiam
na maquinal dança sem fim
a anestesia dos sentidos
o apurado desfreio
que ilude a liberdade.
[“Sirât”, realizado por Óliver Laxe]
De todo o mundo havido
sinto que estou devedor
de muito mais mundo por haver.
Os lugares por inaugurar
a promissória
de cujo distrate o tempo cuidará
terão um dia inventário.
Não sei
quanto mais mundo haverá
mas sei
que sou,
e em parte significativa,
todo aquele mundo já havido.
Por que se diz
pela hora da morte
como se fosse
um contrato de carestia
se à morte é tão fácil chegar?
Entorta as certezas
no palco dos erros
onde vestes
a humildade dos pequenos
e, contudo,
entroniza a imutável grandeza
da linhagem sem contrabando.
Engana as costuras
que nas feridas transportas rastos
desacontecimentos sem memória
e a espingarda que rebenta
com as cicatrizes do mundo.
Faz com que a amnésia
venha comer à tua mão.
As coisas que as coisas têm
não se juntam aos adjetivos
que sobre elas se inventariam.
Se ao menos soubéssemos
se as coisas têm um avesso
não procurávamos pelas bainhas
até sabermos do seu fundo.
É como
mergulhar num poço sem fundo:
ninguém acredita na credenciação,
mas não se vê nada
a não ser o nada.
É nesta custódia
que quero albergue.
Os rios abundantes,
veigas exuberantes,
colheitas frondejantes,
um segredo
para evitar a invasão
de sobressaltos,
a noite repleta
de sonhos válidos.
Um corpo
em forma de dádiva.
E o outro,
recíproco,
numa coreografia servida
por estrofes matinais.
Se perto fosse a ofensa
e de guetos falassem
os idiomas sem diálogo
as vestes solenes
com que se disfarçam
os lugares
teriam de arder numa pira.
Se puídas fossem as bandeiras
e as bocas não falassem
por reflexo condicionado
as palavras seriam como velas acesas
pelos ventos ao acaso
e dos mares demandados
só haveria notícia de sereias feiticeiras
e marinheiros testemunhas da madrugada.
Não transigimos com os pesadelos
quando o lugar do crepúsculo
eles ocupam
e arrepiam os versos que são a prova
de que as quimeras não são apenas
a fértil encenação de sonhadores avulsos.
A flor
beija a noite
que a costurou.
O nevoeiro
sitia a cidade
num pesadelo contumaz.
A fala
conspira uma mudez
no estertor da solidão.
Uma ponte
a soldo dos rebeldes
amanhece contra os prognósticos.
A estrada
consegue ser um vazio
sempre a fugir dos outros.
A madrugada
vence a atalaia dos sentidos
no verso acanhado dos deuses sem sono.
Um idioma
sobe pelos dedos túrgidos
rouba os emudecidos lábios.
Até que extremados
os loucos vegetam na lua possuída
desfeiteando os demónios em barda.
Páginas depois
o olvido impede a nostalgia
dos circenses que desabençoam a fogueira.
Tarde
o bocejo arremata um par de minutos
até os curadores do medo deporem.
Calada
a boca sela
a angústia estilhaçada.
O vento
vem de longe
contar uma matemática sem números.
Vem contar
entre meadas de vozes sibilantes
os segredos mal guardados.
Até que
os cobradores do futuro
se fechem na escuridão que os açambarca.
Então
invisíveis aos olhos lúcidos
desapertam a escotilha e falam.
Falam
incessantemente
com as sílabas todas sem vergonha.
Como
dentes-punhais
cortando a carne podre a eito.
Para então
cúmplices
desassorearem a mudez contrafeita.
Ainda hoje
estou para saber
a que sabem as metáforas
angariadas às três pancadas.
Desconfio
que é só uma prova de vida
daquelas congruentes com a epifania
de quem se dá a conhecer
do alto do seu eruditismo.
Fora disso
a metáforas metidas a martelo
são como
víveres fora de prazo
que contribuem
para comida datada.