Anoitece
o olhar embaciado
cobra a esperança
do dia adiado.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Uma luz vermelha
quando remexes nas provectas memórias
magoa o peito
que deseja o esquecimento.
Apanhas as ostras com os dentes
tu que sabes falar uma dúzia de idiomas
e calças sempre sapatos puídos
sem nunca teres feito votos monásticos.
Olhas pelos cantos dos olhos
para poupar a vista
e em verdade se diga
que chegaste à proveta idade que carregas
sem nunca teres visto através de lentes.
Há quem diga
és o único a disfarçar a miopia
o que ajuda a perceber
todos os vieses que recolhes com entusiasmo.
De amanhã em diante
juras olhar as coisas só com um olho.
Não concorres para Camões
que não se recomendariam os versos
se algum dia deles parisses autoria.
Essa tua simplicidade
ainda te há de granjear
um par de dissabores.
A tença sem cabimento
deixa o serviçal todo ledo;
o estrago vertebral
fica tatuado no rosto coletivo.
Ou a corda toda
desatada no pináculo do cinismo
que a obediência pertence aos fortes
e eu acanho-me na singela fraqueza
que me abraça.
Deste berço loquaz
escondo o sangue gourmet
aquele que vampiros e companhia dispensam
e por minha bússola tomo
com as mãos humildemente trémulas
o cálice que testemunha o néctar singular;
de um homem fraco
esperam-se vícios, não virtudes,
e até dizem
que a bússola estava avariada
e ninguém me disse nada.
Acordo
a corda toda
no promontório da incivilização,
como se ainda não tivesse arpoado
o meu vinte e cinco de abril,
os pesadelos desenfreados
escaldaram o dia
e agora,
irascível e refém do avesso de mim,
teço-me
nas juras que não haverei de fazer.
A posteridade
a secreção sem nódoas
o grito apiedado dos algozes
a roda sequencial das estrofes
dedilhadas as sílabas na vertigem
de um caçador,
a posteridade
ó tão gasta e ainda antes do tempo.
A posteridade
a vítima favorita dos deuses
na condenação das vontades
ao mero remorso que vagueia
entre os destroços avinagrados
pelas lágrimas furtivas.
Tanto queria o tempo inteiro
tanto era o que perdia
no úbere indiviso da noite.
Tanto era o aperto da angústia
tanto queria o exílio por perto
na boca extinta por fantasmas sem nome.
Tanto queria ser a lava do vulcão
tanto era aquele nome sem paradeiro
deitado na estola que protegia da ofensa.
Tanto era o vigilante sem sono
tanto queria da noite a pedra inaugural
no provérbio arrastado pelo caudal vertiginoso.
Em vez
das folhas venais
da manhã anónima
das soluçadas mentiras
dos altares desta vez aos frágeis
das efemérides apátridas
dos motivos ao acaso
dos colarinhos desengomados
e das finas mesuras
de quem já não deita cotovelos na mesa
um tira-teimas
que as teimas estão pela hora da morte
e ninguém sabe que preço é esse
nem se a inflação se soma à idade
a que temos direito
este nosso luar ausente
dos rostos engaiolados no respeito atávico
nas modas tirânicas que ensurdecem
e povoam o sono com insónias contumazes.
Em vez
das vezes em que vagamos a voz
vantagem minha
como no ténis
e o fio da aurora preso ao cabelo enxuto
descai no parapeito que ateia as luzes válidas:
não digam a ninguém
que recusei uma comenda
porque não sei ser
vez em vez de mim mesmo.
Os olhos desamestrados
voam pelas paredes gastas
dão-se às mãos ateadas
sem o pesar das almas agastadas
sem o vinco sobre o sangue.
Um esgar sem notação
açambarca a luz tímida que espreita
sobre os ombros do dia.
Espevita os melhores verbos
tomando os melhores anos na varanda solar
e lá fora
é o frio que dita a lei
o ar composto de finas faúlhas de gelo
que purificam o pensamento.
As candeias estão apagadas
prefiro tatear no mapa dos sentidos
fugir de todos os fogos medonhos
fugir, até,
dos semelhantes
que acabaram de se sentar
nos mesmos bancos do comboio
e de mim deixar em legado
a claridade exilada
a que sempre se escondeu por delito próprio
o parágrafo sempre envidado
quando os outros
são presença notada.
As famílias não se constituem
como os países fazem nascer
Constituições.
Às vezes
antes a História
fosse um desperdício.
[Entre a vã glória, o estado de negação e o revisionismo do 25 de novembro de 1975]
As máscaras sucessivas
entranham-se na pele consumada
o palco onde se antecipam
é a vitrine ocupada pelo mundo sem lei.
O véu desfeito na água sibilina
desprende-se diz versus havidos
agora é apenas um mapa vazio
à espera de outros versos seus.
A voz ecoa a rima vespertina
completo o dia com as estrofes preenchidas
como se todo o sangue estivesse com fastio
os guerreiros foram desmentidos pelo adeus.
Na pele a tatuagem sibilina
disfarça as achas perdidas
o corpo agiganta-se na eira do cio
o fado destroçado que vem aos olhos meus.
Esconjurada a angústia assassina
as luzes desmaiam nas sílabas amanhecidas
e até os pássaros suspendem o pio
como se afinal a madrugada pertencesse a um deus.
O embaraço emascula o dia
a impaciência embacia o sol
e todas as vozes são como espinhas
encravadas na garganta.
A angústia diluviana
segue dentro de momentos.
Dará conta da minha ausência.
As facas coladas às palavras
arrastam a infâmia
que não deixa ninguém
órfão.
Parece que as pessoas nasceram
inimigas mútuas;
parece
que se movem com os cotovelos
em cima dos olhos dos outros
uma coreografia dantesca
feita de braços e pernas e torsos
sem cabeças visíveis
num contorcionismo réptil
os dias estendidos no lodo putrefacto
e todos os nomes deitados na usura sem autor
como se todos apenas esperassem
que a véspera não fosse tão pior de hedionda
do que o dia consecutivo.
As pessoas desaprenderam de ouvir
desaprenderam de falar
desaprenderam;
ou talvez apenas tivessem fingido
disfarçando com um véu pesado
a omissão da civilização tão peticionada.
Os pulsos aguentam as pás do tempo
o ultraje dos outros que aparecem em contramão
as cruzes inválidas que se deitam nas bandeiras
as palavras agressoras que corrompem espíritos
tornados guerreiros por vocação
como se aos dentes fossem buscar as balas
que atravessam como relâmpagos
a carne feita presa de inocentes que nunca são.
Todas as máquinas conspiram
no lauto palco da agressividade.
As ofensas foram descontadas da razão
e voam céleres de apeadeiro em apeadeiro
entram nas casas
mesmo nas que estão seladas contra os elementos
– e as provações arrancadas ao medo ilegítimo
passaram a fazer parte da tabela de elementos
contra os testamentos de boa vontade
as vírgulas que desembaraçam a lisura
que mais parece
tudo por junto
que a matemática conspira contra a madrugada
os olhos sentados nos espiões lisérgicos
encomendam a tela de xisto
onde os dedos alagados em tintas superficiais
se vão deitar e adormecer
contra a recomendação dos provérbios.
Não confidencia, a casta
nem mesmo
quando as cãs se apoderam da pele
e num agasto incondicional
cobrem de orgulho assassino
os berços que alojam as taças vãs.
Corto na soberba do dia
os chapéus não encenam o sacrifício capaz
nem as flores se antecipam à manhã tirana.
As janelas arrepiam o vento
e as falas sobrepostas compõem
o idioma sem pátria.
Folgam os bolsos vazios
nada há que os queira habilitar
de aforros destes não se peticionam ordens
nem as bandeiras
deixadas na sua esquálida condição
se prestam a uma serventia.
Entretanto a noite não demora
a gramática extinta
a pesar sobre as costas pesadas
a noite que se consuma exílio
no formidável adro
onde se escondem os marinheiros desembarcados.
Ontem já seria tarde
a maré passou ao largo
que neste lugar amaldiçoado
não há crepúsculo que se levante
nem palavras malditas, cortantes,
a lembrar os desadmiráveis logros da História.
Murchos
os comícios de antanho
na epopeia do teatro.
[“Santa Joana dos Matadouros”, de Brecht, encenação de Bruno Martins, Teatro Carlos Alberto]
Simulo dizer
aquilo que depois hei-de desmentir
sem me acusarem de estar a mentir;
eis a dúctil complexidade
dos tempos modernos.
Não vem ao caso
nem vem ao acaso
o caso fortuito
a fortaleza jurada
o juro do crédito
a crença nos vultos
a volumosa pança
as pinças por que segue o dia
a dor que se amestra
a mestra numa arte marcial
ou o marciano herdado no jardim.
Um gatafunho
desaloja a solidão da página.
Os gestos aformoseiam
palavras ditas a medo.
Amanhã
os peixinhos fritos
serão servidos com arroz de feijão.
Os costumes
precisam de habitar algum tempo
na sua antítese.
Até que da confusão arada
sobre apenas uma febre audível
a tremenda confusão dos órgãos vitais
desamparados pelo paradeiro desconhecido.
Na basílica dos sentados
a fuligem transpira com as sílabas da cerveja
enquanto os pássaros discorrem os voos rasantes,
indiferentes aos humanos que se encostam
À decadência.
Um ilustre
porventura perdido do seu caminho
erra pelo jardim afora
cruza-se com os reumáticos sentados
diante da basílica dos sentados.
Um deles conhece-o:
“já te vi
na capa de uma cor-de-rosa revista”
arranha a voz de bagaço
com a mesma dificuldade
de quem já deixou para trás
pelo menos
meia-dúzia de cervejas
e uns tantos copos de bagaço.
O ilustre
deu corda às pernas
antes que fosse importunado pelos reles.
Outro decadente levantou-se
arrumou as calças puídas que estavam a cambar
e exclamou, triunfante:
“cá está
porque sempre quis
ser um desinfluencer!”
Sobre o olhar
adeja um céu plúmbeo.
Não consigo
desfazer as nuvens pesadas
que cospem chumbo
para as consciências desprotegidas.
Foi a tinta
de tanto correr
que o sol se fez baço.
[Este poema não é patrocinado pelas Tintas Barbot]
Escondemo-nos
não por medo de fantasmas
escondemo-nos
por dever de restrição
a modéstia incansável.
Oxalá os cavalos sentados
esperneassem contra os deuses distraídos
e da confusa coreografia
com o beneplácito de coveiros envelhecidos
sobrassem as bocas atónitas
como se estivessem
anestesiadas por um luar feito de quimeras.
Já não sei
o que fazer com as profecias
que jorram com a abundância de um nada.
Uma amálgama de medo e claridade
invade o papel que espera pelas estrofes.
Dizem que o dia messiânico
tomou conta dos véus que ornamentam os rostos.
Dizem
que não falta muito
para os demónios se tornarem gladiadores
tomando conta da melancolia rebelde.
Oxalá
todas as profecias crepusculares
sejam desmentidas
pelos verbos que se agarram às bocas
famintas de futuro.
Digo destas palavras:
o silêncio tribuno
a alma que sangra
o estiolado juro que juro
as sílabas que não tartamudeiam
é nessas palavras
que terço um idioma
o jasmim que vem às mãos
o olhar de uma criança aluada
ou o cão que se faz suserano das ruas
e que mesmo assim
vem comer às mãos bondosas.
É por estas palavras:
levanto a manhã da luz inaugural
e em estrofes que rasam os violinos
de mim me dou em legado
gramática que dissolve as algemas
da posteridade.
Cultivo a anatomia da indiferença
um certo desmodo do ser atual
até parecer fora do mundo
e acabar a pensar
fora da caixa.
Cultivo
esta despertença
intencional
intransitiva:
as ruas têm um aroma ácido
as pessoas parecem todas estranhos
a claridade convoca o crepúsculo demorado
pois na ausência de luz
tudo fica oculto
até os agentes
que repetem agressões diárias.
Manda o sindicato da felicidade
dizer
que é proibida a melancolia
em dias de luar de peito aberto.
Os infratores
serão punidos com três noites de insónia
para aprenderem com o luar tumultuoso
a serem necessariamente felizes
(e não apenas felizes).
Jogo os dados na marca da incerteza
componho os cabelos
um meneio capaz de quem demanda a sorte
de alguém que apedreja a superstição
e no turbilhão das forças e dos sortilégios
arrumo os dados sem pensar duas vezes
que nem uma só seta salvação possível.
Jogo os dados
que o mistério da sorte
é surdo às intimações postiças.
Não
não é a neve que enovoa a noite
que destrona a noiva cidade.
Não é
o turvo decair
que transgride as traves
que entronizam as pessoas.
Não é
a besta baça
que embainha as botas armadilhadas.
Não sei o que seja
a não ser
todo o inventário que inventei
para dizer
que não é por coisas essas
que os lugares e as pessoas
se perderam de paradeiros.
Costurássemos os costumes com o carvão do medo
as viúvas ao deus-dará
(oh, heresia, que Deus permitiu,
talvez distraído,
que uma palavra inspirará em seu nome
fosse iniciada com letra minúscula)
ao deus-dará as viúvas,
dizia,
portadoras desses funestos véus
que ninguém ousa postergar.
Oxalá a algazarra dos petizes não termine;
precisamos de uma mnemónica da infância
para avivar a memória
de como era ser infante
sem consumições porque o mundo à volta
ainda não existia
e agora
que já não nos gabávamos da adulta idade
sabíamos que o fingimento se apoderara de nós.
Fingíamos moderação
um espelho desimpedido
para as palavras das outras bocas
e nós
enjeitando a autarcia
crescíamos como autarcas de um voto só.
Às vezes
apetece agarrar a vida pelos colarinhos
depor a ira em forma de babugem
ou a ira arrancada a ferros das notas de rodapé
de dicionários vetustos e esquecidos
nas arrecadações mentais.
Apetece cuidar do dia
como se durasse meses a fio
e exilássemos as páginas desaproveitadas
as páginas que não cumpriram a folga do futuro.
Outras vezes
deixamos que o tempo seja refém
das mãos que entrelaçamos
e das palavras murmuradas no cais do silêncio
trazemos estrofes arregaçadas ao rosto
é como
se emprestássemos os rostos à chuva outonal
e desmatássemos todas as vírgulas gongóricas
as que enxameiam o poema diário
com as luas altivas
que ensinam as maneiras válidas
de sermos testemunhas primordiais
do belo em que o mundo se encerra
e nós
nós somos o seu mapa,
mundo.
Joga uma tripla
como no totobola
e sais sempre a ganhar.
[Grandes remédios para males não tão elevados]
Dizer
que vai ser
muito sincero
é como apregoar
que um espetáculo
é totalmente gratuito.
Cortamos as palavras em dois
o número tangente de que somos imagem.
Subimos a noite desimpedida
no ecoar das luzes que falam no nosso sangue,
a atalaia aos mundos profundos
uma simples mão pousada na outra
depondo o outubro fecundo.
Seus
os olhos amanhecidos
como se aos céus fossem
e os lençóis amortalhados
a metamorfose de uma trincheira
onde o único arsenal admitido
é dos corpos que falam com o desejo.
Desta matéria feito
viro o dia do avesso
e não encontro as costuras
– o fundo falso tirou ao acaso
um sortilégio.
As flores mudam o campo
que deixa de estar mudo
ecoando o seu peito farto
pela voz centrípeta das flores.
No meio da ponte
parece que só há
o rio sobranceiro ao precipício
a consumição das tonturas.
Digo:
é nas ruas onde o medo se emaranha
que somos além do que intuímos
aproveitando cada braçada
para amealhar mais gramas
para a existência inquieta.
Dizem-me
para não dar atenção ao tempo
para abandonar o corpo aos espíritos que adejam
e eu
teimosamente
respiro o vento cortante
aparo o sol com os dedos encadeados
sulco o dia vívido
nos labirintos que me ocupam
e deixo à memória futura
o encantamento escondido
tantas vezes obliterado
o encantamento que se acanha
nos provérbios gastos pela usura
na conspiração que teço
só para ficar longe da entronização.
Desocupo as montanhas
que me separam do mar;
afugento as sílabas cortadas
as passagens de nível tão desejadas
pelos aspirantes a subir de degrau
que o estatuto não me deixa enamorado
e não preciso
já nesta idade não jovem
de sentir o regaço
de todos os que se candidatem ao meu amparo.
Prefiro as coisas na sua lhaneza
os dias sem vestígios de sua memória
o beijo de umas mãos estrelares
os vícios sem redenção
um lugar apurado na pequenez dos lugares
só para ter a companhia
dos exilados de todas as estirpes.
Fujo das luzes maçónicas
das suas malsãs divisas
e ainda mais
de quem se aliste para o infausto
da condecoração.
Tiro ao acaso um número:
já não me lembro qual foi
mas era melhor do que o que consta
no rodapé do dia.