Inteiro
– nem que o custo
seja insular.
Refúgio nas palavras. A melodia perdida. Libertação. Paulo Vila Maior
Não acredito em nada
nem nessas faustosas teorias
que celebram o nada em teoria.
Não acredito
em balas e em bolos
na posse da erudição e na contrição
na bondade e na originalidade
Na escorreita afirmação da sabedoria
e da malévola intenção que tem curadoria:
nos estultos
e nos proeminentes vultos
nos disfarces de farsa
e nas medidas avantajadas da graça
nos polícias dos costumes
e nos zeladores de estrumes
nos saudosistas do futuro
e nos apóstolos do kuduro
nas massas intestinas
e nos arrotos das meninas
na pujança da bruta força
e na corda de que a teimosia troça
nos jornais cabedais
e nas conspirações demais
no vinho adamado
e no reclame que não se faz rogado
nas rosas viçosas
e nas ruas vistosas
nas bocas exuberantes
e nos colóquios comunicantes
nas verbas rasantes
e nos olhos escaldantes
nas árvores matriciais
e nas agulhas geniais
no perfeito acabado
e no imperfeito castrado
nas intenções marejadas
e nas deusas ultrajadas
nos olhos extáticos
e nos poemas fantásticos
nos nomes angariados
e nas flores nas mãos dos irados.
Com aquele desplante jurássico
o geronte à prova de sindicância
dá a provar a ilusão da igualdade.
Chamavas as árvores pelos nomes
e juravas aos deuses
nos intervalos dos sonhos
que estarias de atalaia
contra os avanços das marés.
Pedias lume à noite imediata
como se à boca subissem os verbos famintos
e na pele fossem tatuadas moradas,
espelhos vigilantes das sombras desenfreadas
no acolhedor cais
onde as rodas viradas do avesso
cantavam poemas malditos.
Tiravas à sorte o lugar
e esperavas,
esperavas que o luar aquecesse o rosto
e de todas as matérias fosse o sangue feito
para desses feitos improváveis
só ler as palavras sentidas.
Este agora
será como todos os agoras.
Na sua assimétrica descompostura
os agoras avançam contra a mudez dos passados
ultrapassam até aqueles amanhãs apessoados
que reivindicam pergaminhos.
Ontem
soube de um agora
que se agitou na sensação vaga
de um gume sem paradeiro.
E depois percebi:
cada agora
é uma efervescência de efemeridade
que perde validade
mais depressa do que qualquer fruto.
Arrumo o peso morto
que se mistura com o dia cansado,
a rua não tem prisões
mostra-se na penumbra amaciada.
Trocamos
dois dedos de conversa
não sabemos
se ficamos com os dedos trocados
ou com a conversa coalhada.
Pé curto
a língua de trapos
ensaboa a ardósia
e deixa, em letra de médico,
o verso de barro.
Os cavalos comem alfafa
(é da ordem dos costumes literários)
e os tratadores
trocam dois dedos de conversa.
Amanhã é a feira
esperam-se as casadoiras em sua demanda
e os rapazes não aguentam a espera.
Os cavalos podem,
eles sim,
com a espera que for precisa.
No meio da aldeia
a ardósia ultrajada pela letra de trapos
cumpre a sua função:
as pessoas passam
e ficam
olimpicamente
indiferentes.
Ao abrigo
da liberdade de circulação de capitais
a Europeia União aceitou o resgate
de Lisboa por Viena.
Uma luz vermelha
quando remexes nas provectas memórias
magoa o peito
que deseja o esquecimento.
Apanhas as ostras com os dentes
tu que sabes falar uma dúzia de idiomas
e calças sempre sapatos puídos
sem nunca teres feito votos monásticos.
Olhas pelos cantos dos olhos
para poupar a vista
e em verdade se diga
que chegaste à proveta idade que carregas
sem nunca teres visto através de lentes.
Há quem diga
és o único a disfarçar a miopia
o que ajuda a perceber
todos os vieses que recolhes com entusiasmo.
De amanhã em diante
juras olhar as coisas só com um olho.
Não concorres para Camões
que não se recomendariam os versos
se algum dia deles parisses autoria.
Essa tua simplicidade
ainda te há de granjear
um par de dissabores.
A tença sem cabimento
deixa o serviçal todo ledo;
o estrago vertebral
fica tatuado no rosto coletivo.
Ou a corda toda
desatada no pináculo do cinismo
que a obediência pertence aos fortes
e eu acanho-me na singela fraqueza
que me abraça.
Deste berço loquaz
escondo o sangue gourmet
aquele que vampiros e companhia dispensam
e por minha bússola tomo
com as mãos humildemente trémulas
o cálice que testemunha o néctar singular;
de um homem fraco
esperam-se vícios, não virtudes,
e até dizem
que a bússola estava avariada
e ninguém me disse nada.
Acordo
a corda toda
no promontório da incivilização,
como se ainda não tivesse arpoado
o meu vinte e cinco de abril,
os pesadelos desenfreados
escaldaram o dia
e agora,
irascível e refém do avesso de mim,
teço-me
nas juras que não haverei de fazer.
A posteridade
a secreção sem nódoas
o grito apiedado dos algozes
a roda sequencial das estrofes
dedilhadas as sílabas na vertigem
de um caçador,
a posteridade
ó tão gasta e ainda antes do tempo.
A posteridade
a vítima favorita dos deuses
na condenação das vontades
ao mero remorso que vagueia
entre os destroços avinagrados
pelas lágrimas furtivas.
Tanto queria o tempo inteiro
tanto era o que perdia
no úbere indiviso da noite.
Tanto era o aperto da angústia
tanto queria o exílio por perto
na boca extinta por fantasmas sem nome.
Tanto queria ser a lava do vulcão
tanto era aquele nome sem paradeiro
deitado na estola que protegia da ofensa.
Tanto era o vigilante sem sono
tanto queria da noite a pedra inaugural
no provérbio arrastado pelo caudal vertiginoso.
Em vez
das folhas venais
da manhã anónima
das soluçadas mentiras
dos altares desta vez aos frágeis
das efemérides apátridas
dos motivos ao acaso
dos colarinhos desengomados
e das finas mesuras
de quem já não deita cotovelos na mesa
um tira-teimas
que as teimas estão pela hora da morte
e ninguém sabe que preço é esse
nem se a inflação se soma à idade
a que temos direito
este nosso luar ausente
dos rostos engaiolados no respeito atávico
nas modas tirânicas que ensurdecem
e povoam o sono com insónias contumazes.
Em vez
das vezes em que vagamos a voz
vantagem minha
como no ténis
e o fio da aurora preso ao cabelo enxuto
descai no parapeito que ateia as luzes válidas:
não digam a ninguém
que recusei uma comenda
porque não sei ser
vez em vez de mim mesmo.
Os olhos desamestrados
voam pelas paredes gastas
dão-se às mãos ateadas
sem o pesar das almas agastadas
sem o vinco sobre o sangue.
Um esgar sem notação
açambarca a luz tímida que espreita
sobre os ombros do dia.
Espevita os melhores verbos
tomando os melhores anos na varanda solar
e lá fora
é o frio que dita a lei
o ar composto de finas faúlhas de gelo
que purificam o pensamento.
As candeias estão apagadas
prefiro tatear no mapa dos sentidos
fugir de todos os fogos medonhos
fugir, até,
dos semelhantes
que acabaram de se sentar
nos mesmos bancos do comboio
e de mim deixar em legado
a claridade exilada
a que sempre se escondeu por delito próprio
o parágrafo sempre envidado
quando os outros
são presença notada.
As famílias não se constituem
como os países fazem nascer
Constituições.
Às vezes
antes a História
fosse um desperdício.
[Entre a vã glória, o estado de negação e o revisionismo do 25 de novembro de 1975]
As máscaras sucessivas
entranham-se na pele consumada
o palco onde se antecipam
é a vitrine ocupada pelo mundo sem lei.
O véu desfeito na água sibilina
desprende-se diz versus havidos
agora é apenas um mapa vazio
à espera de outros versos seus.
A voz ecoa a rima vespertina
completo o dia com as estrofes preenchidas
como se todo o sangue estivesse com fastio
os guerreiros foram desmentidos pelo adeus.
Na pele a tatuagem sibilina
disfarça as achas perdidas
o corpo agiganta-se na eira do cio
o fado destroçado que vem aos olhos meus.
Esconjurada a angústia assassina
as luzes desmaiam nas sílabas amanhecidas
e até os pássaros suspendem o pio
como se afinal a madrugada pertencesse a um deus.
O embaraço emascula o dia
a impaciência embacia o sol
e todas as vozes são como espinhas
encravadas na garganta.
A angústia diluviana
segue dentro de momentos.
Dará conta da minha ausência.
As facas coladas às palavras
arrastam a infâmia
que não deixa ninguém
órfão.
Parece que as pessoas nasceram
inimigas mútuas;
parece
que se movem com os cotovelos
em cima dos olhos dos outros
uma coreografia dantesca
feita de braços e pernas e torsos
sem cabeças visíveis
num contorcionismo réptil
os dias estendidos no lodo putrefacto
e todos os nomes deitados na usura sem autor
como se todos apenas esperassem
que a véspera não fosse tão pior de hedionda
do que o dia consecutivo.
As pessoas desaprenderam de ouvir
desaprenderam de falar
desaprenderam;
ou talvez apenas tivessem fingido
disfarçando com um véu pesado
a omissão da civilização tão peticionada.
Os pulsos aguentam as pás do tempo
o ultraje dos outros que aparecem em contramão
as cruzes inválidas que se deitam nas bandeiras
as palavras agressoras que corrompem espíritos
tornados guerreiros por vocação
como se aos dentes fossem buscar as balas
que atravessam como relâmpagos
a carne feita presa de inocentes que nunca são.
Todas as máquinas conspiram
no lauto palco da agressividade.
As ofensas foram descontadas da razão
e voam céleres de apeadeiro em apeadeiro
entram nas casas
mesmo nas que estão seladas contra os elementos
– e as provações arrancadas ao medo ilegítimo
passaram a fazer parte da tabela de elementos
contra os testamentos de boa vontade
as vírgulas que desembaraçam a lisura
que mais parece
tudo por junto
que a matemática conspira contra a madrugada
os olhos sentados nos espiões lisérgicos
encomendam a tela de xisto
onde os dedos alagados em tintas superficiais
se vão deitar e adormecer
contra a recomendação dos provérbios.
Não confidencia, a casta
nem mesmo
quando as cãs se apoderam da pele
e num agasto incondicional
cobrem de orgulho assassino
os berços que alojam as taças vãs.
Corto na soberba do dia
os chapéus não encenam o sacrifício capaz
nem as flores se antecipam à manhã tirana.
As janelas arrepiam o vento
e as falas sobrepostas compõem
o idioma sem pátria.
Folgam os bolsos vazios
nada há que os queira habilitar
de aforros destes não se peticionam ordens
nem as bandeiras
deixadas na sua esquálida condição
se prestam a uma serventia.
Entretanto a noite não demora
a gramática extinta
a pesar sobre as costas pesadas
a noite que se consuma exílio
no formidável adro
onde se escondem os marinheiros desembarcados.
Ontem já seria tarde
a maré passou ao largo
que neste lugar amaldiçoado
não há crepúsculo que se levante
nem palavras malditas, cortantes,
a lembrar os desadmiráveis logros da História.
Murchos
os comícios de antanho
na epopeia do teatro.
[“Santa Joana dos Matadouros”, de Brecht, encenação de Bruno Martins, Teatro Carlos Alberto]
Simulo dizer
aquilo que depois hei-de desmentir
sem me acusarem de estar a mentir;
eis a dúctil complexidade
dos tempos modernos.
Não vem ao caso
nem vem ao acaso
o caso fortuito
a fortaleza jurada
o juro do crédito
a crença nos vultos
a volumosa pança
as pinças por que segue o dia
a dor que se amestra
a mestra numa arte marcial
ou o marciano herdado no jardim.
Um gatafunho
desaloja a solidão da página.
Os gestos aformoseiam
palavras ditas a medo.
Amanhã
os peixinhos fritos
serão servidos com arroz de feijão.
Os costumes
precisam de habitar algum tempo
na sua antítese.
Até que da confusão arada
sobre apenas uma febre audível
a tremenda confusão dos órgãos vitais
desamparados pelo paradeiro desconhecido.
Na basílica dos sentados
a fuligem transpira com as sílabas da cerveja
enquanto os pássaros discorrem os voos rasantes,
indiferentes aos humanos que se encostam
À decadência.
Um ilustre
porventura perdido do seu caminho
erra pelo jardim afora
cruza-se com os reumáticos sentados
diante da basílica dos sentados.
Um deles conhece-o:
“já te vi
na capa de uma cor-de-rosa revista”
arranha a voz de bagaço
com a mesma dificuldade
de quem já deixou para trás
pelo menos
meia-dúzia de cervejas
e uns tantos copos de bagaço.
O ilustre
deu corda às pernas
antes que fosse importunado pelos reles.
Outro decadente levantou-se
arrumou as calças puídas que estavam a cambar
e exclamou, triunfante:
“cá está
porque sempre quis
ser um desinfluencer!”
Sobre o olhar
adeja um céu plúmbeo.
Não consigo
desfazer as nuvens pesadas
que cospem chumbo
para as consciências desprotegidas.
Foi a tinta
de tanto correr
que o sol se fez baço.
[Este poema não é patrocinado pelas Tintas Barbot]
Escondemo-nos
não por medo de fantasmas
escondemo-nos
por dever de restrição
a modéstia incansável.
Oxalá os cavalos sentados
esperneassem contra os deuses distraídos
e da confusa coreografia
com o beneplácito de coveiros envelhecidos
sobrassem as bocas atónitas
como se estivessem
anestesiadas por um luar feito de quimeras.
Já não sei
o que fazer com as profecias
que jorram com a abundância de um nada.
Uma amálgama de medo e claridade
invade o papel que espera pelas estrofes.
Dizem que o dia messiânico
tomou conta dos véus que ornamentam os rostos.
Dizem
que não falta muito
para os demónios se tornarem gladiadores
tomando conta da melancolia rebelde.
Oxalá
todas as profecias crepusculares
sejam desmentidas
pelos verbos que se agarram às bocas
famintas de futuro.
Digo destas palavras:
o silêncio tribuno
a alma que sangra
o estiolado juro que juro
as sílabas que não tartamudeiam
é nessas palavras
que terço um idioma
o jasmim que vem às mãos
o olhar de uma criança aluada
ou o cão que se faz suserano das ruas
e que mesmo assim
vem comer às mãos bondosas.
É por estas palavras:
levanto a manhã da luz inaugural
e em estrofes que rasam os violinos
de mim me dou em legado
gramática que dissolve as algemas
da posteridade.
Cultivo a anatomia da indiferença
um certo desmodo do ser atual
até parecer fora do mundo
e acabar a pensar
fora da caixa.
Cultivo
esta despertença
intencional
intransitiva:
as ruas têm um aroma ácido
as pessoas parecem todas estranhos
a claridade convoca o crepúsculo demorado
pois na ausência de luz
tudo fica oculto
até os agentes
que repetem agressões diárias.
Manda o sindicato da felicidade
dizer
que é proibida a melancolia
em dias de luar de peito aberto.
Os infratores
serão punidos com três noites de insónia
para aprenderem com o luar tumultuoso
a serem necessariamente felizes
(e não apenas felizes).