18.11.25

Escrupulosamente

As facas coladas às palavras

arrastam a infâmia 

que não deixa ninguém

órfão. 

Parece que as pessoas nasceram

inimigas mútuas;

parece

que se movem com os cotovelos 

em cima dos olhos dos outros

uma coreografia dantesca

feita de braços e pernas e torsos

sem cabeças visíveis

num contorcionismo réptil

os dias estendidos no lodo putrefacto

e todos os nomes deitados na usura sem autor

como se todos apenas esperassem

que a véspera não fosse tão pior de hedionda

do que o dia consecutivo. 

 

As pessoas desaprenderam de ouvir

desaprenderam de falar

desaprenderam;

 

ou talvez apenas tivessem fingido

disfarçando com um véu pesado

a omissão da civilização tão peticionada. 

 

Os pulsos aguentam as pás do tempo

o ultraje dos outros que aparecem em contramão

as cruzes inválidas que se deitam nas bandeiras

as palavras agressoras que corrompem espíritos

tornados guerreiros por vocação

como se aos dentes fossem buscar as balas

que atravessam como relâmpagos 

a carne feita presa de inocentes que nunca são. 

 

Todas as máquinas conspiram

no lauto palco da agressividade. 

As ofensas foram descontadas da razão

e voam céleres de apeadeiro em apeadeiro

entram nas casas

mesmo nas que estão seladas contra os elementos 

 

– e as provações arrancadas ao medo ilegítimo

passaram a fazer parte da tabela de elementos

contra os testamentos de boa vontade

as vírgulas que desembaraçam a lisura

que mais parece

tudo por junto 

que a matemática conspira contra a madrugada 

os olhos sentados nos espiões lisérgicos

encomendam a tela de xisto

onde os dedos alagados em tintas superficiais

se vão deitar e adormecer 

contra a recomendação dos provérbios. 

 

Não confidencia, a casta

nem mesmo 

quando as cãs se apoderam da pele

e num agasto incondicional

cobrem de orgulho assassino

os berços que alojam as taças vãs. 

Injustiças documentadas (617)

As mãos largas 

calçam luvas XXL.

#4270

Estiveram tanto tempo fora 

os forasteiros sem paradeiro 

párias do seu próprio lugar.

17.11.25

Matéria dada

Corto na soberba do dia

os chapéus não encenam o sacrifício capaz

nem as flores se antecipam à manhã tirana. 

As janelas arrepiam o vento

e as falas sobrepostas compõem 

o idioma sem pátria. 

Folgam os bolsos vazios

nada há que os queira habilitar

de aforros destes não se peticionam ordens

nem as bandeiras

deixadas na sua esquálida condição

se prestam a uma serventia. 

Entretanto a noite não demora

a gramática extinta

a pesar sobre as costas pesadas

a noite que se consuma exílio

no formidável adro 

onde se escondem os marinheiros desembarcados. 

Ontem já seria tarde

a maré passou ao largo

que neste lugar amaldiçoado

não há crepúsculo que se levante

nem palavras malditas, cortantes,

a lembrar os desadmiráveis logros da História.

#4269

Murchos 

os comícios de antanho 

na epopeia do teatro.

 

[“Santa Joana dos Matadouros”, de Brecht, encenação de Bruno Martins, Teatro Carlos Alberto]

16.11.25

#4268

Simulo dizer 

aquilo que depois hei-de desmentir 

sem me acusarem de estar a mentir; 

eis a dúctil complexidade 

dos tempos modernos.

15.11.25

Injustiças documentadas (616)

Deu-lhe ouvidos 

e depois 

ficou sem ouvir.

#4267

Num passo atrás 

o primitivo que há em nós 

toma conta 

da fala e dos gestos e das intenções.

14.11.25

Caterpillar

Não vem ao caso

nem vem ao acaso

o caso fortuito

a fortaleza jurada

o juro do crédito

a crença nos vultos

a volumosa pança

as pinças por que segue o dia

a dor que se amestra

a mestra numa arte marcial

ou o marciano herdado no jardim.

#4266

Dar parte de fraco: 

poucos têm essa força.

13.11.25

Desamparo

Um gatafunho 

desaloja a solidão da página. 

Os gestos aformoseiam

palavras ditas a medo. 

 

Amanhã

os peixinhos fritos

serão servidos com arroz de feijão. 

 

Os costumes

precisam de habitar algum tempo

na sua antítese. 

Até que da confusão arada

sobre apenas uma febre audível

a tremenda confusão dos órgãos vitais

desamparados pelo paradeiro desconhecido.

Injustiças documentadas (615)

A (des)inteligência, 

(é) artificial.

#4265

Ergue-se 

uma luz bruxuleante 

como se as vozes fossem 

interstícios do tempo.

12.11.25

Como ser desinfluencer

Na basílica dos sentados

a fuligem transpira com as sílabas da cerveja

enquanto os pássaros discorrem os voos rasantes,

indiferentes aos humanos que se encostam

À decadência.

Um ilustre

porventura perdido do seu caminho

erra pelo jardim afora

cruza-se com os reumáticos sentados

diante da basílica dos sentados.

Um deles conhece-o:

 

“já te vi 

na capa de uma cor-de-rosa revista”

 

arranha a voz de bagaço

com a mesma dificuldade 

de quem já deixou para trás

pelo menos

meia-dúzia de cervejas

e uns tantos copos de bagaço.

O ilustre 

deu corda às pernas

antes que fosse importunado pelos reles.

Outro decadente levantou-se

arrumou as calças puídas que estavam a cambar

e exclamou, triunfante:

 

“cá está 

porque sempre quis

ser um desinfluencer!”

Injustiças documentadas (614)

Já o dinheiro morto

descansa num cemitério.

#4264

Ilhas 

sem o balastro do tempo

apenas um modo humilde

toda a fragilidade 

encerrada num verbo.

11.11.25

Estátua

Sopro o sangue sobre a pele do mar 

colho a maré noturna à prova de medo

deixo às mãos antigas

as rugas 

o pesar da alma nos ossos cansados.  

#4263

Os esquimós 

beijam-se coçando os narizes; 

aqui vamos esquecendo 

a gramática do beijo.

10.11.25

Injustiças documentadas (613)

De certeza 

que a fome 

não é a matéria-prima 

das farturas.

#4262

Só um tirano pode decretar 

que os sonhos são uma doença.

9.11.25

#4261

Os degraus lícitos 

três abaixo do nível do mar 

esperam pela maré dionisíaca.

8.11.25

#4260

As mãos atadas 

no bulício do mundo infrene 

são um aplauso pela coragem dita.

7.11.25

Embraiagem

Sobre o olhar 

adeja um céu plúmbeo.

Não consigo 

desfazer as nuvens pesadas 

que cospem chumbo 

para as consciências desprotegidas.

Injustiças documentadas (612)

Foi a tinta 

de tanto correr 

que o sol se fez baço.

 

[Este poema não é patrocinado pelas Tintas Barbot]

#4259

Escondemo-nos 

não por medo de fantasmas 

escondemo-nos 

por dever de restrição 

a modéstia incansável.

6.11.25

Manifesto contra as profecias

Oxalá os cavalos sentados

esperneassem contra os deuses distraídos

e da confusa coreografia

com o beneplácito de coveiros envelhecidos

sobrassem as bocas atónitas 

como se estivessem 

anestesiadas por um luar feito de quimeras. 

Já não sei 

o que fazer com as profecias

que jorram com a abundância de um nada. 

Uma amálgama de medo e claridade

invade o papel que espera pelas estrofes. 

Dizem que o dia messiânico

tomou conta dos véus que ornamentam os rostos. 

Dizem

que não falta muito

para os demónios se tornarem gladiadores

tomando conta da melancolia rebelde. 

Oxalá 

todas as profecias crepusculares

sejam desmentidas 

pelos verbos que se agarram às bocas

famintas de futuro.

#4258

O testamento 

é a prova do passado 

selada na fina louça do futuro.

5.11.25

Digo estas palavras

Digo destas palavras:

 

o silêncio tribuno

a alma que sangra

o estiolado juro que juro

as sílabas que não tartamudeiam

é nessas palavras

que terço um idioma

o jasmim que vem às mãos

o olhar de uma criança aluada

ou o cão que se faz suserano das ruas

e que mesmo assim

vem comer às mãos bondosas. 

 

É por estas palavras:

 

levanto a manhã da luz inaugural

e em estrofes que rasam os violinos

de mim me dou em legado

gramática que dissolve as algemas

da posteridade.

#4257

Abre-se uma janela sobre a manhã 

e vejo o esplendor a povoar o dia.

Injustiças documentadas (611)

De molho, 

as barbas; 

mas que molho 

se serve às barbas?

4.11.25

#4256

O fio desprende-se do precipício 

e o chão torna-se um pesadelo.

3.11.25

Desavença geral

Cultivo a anatomia da indiferença

um certo desmodo do ser atual

até parecer fora do mundo

e acabar a pensar

fora da caixa.

Cultivo

esta despertença

intencional

intransitiva:

as ruas têm um aroma ácido

as pessoas parecem todas estranhos

a claridade convoca o crepúsculo demorado

pois na ausência de luz

tudo fica oculto

até os agentes 

que repetem agressões diárias.

#4255

Limpas a fuligem 

que embacia a alma 

não há dia que fuja 

ao ritual.

2.11.25

#4254

Sou 

o fato feito à medida 

do dia por ocupar.

1.11.25

#4253

O cheiro a ódio 

envenena todos os minutos 

que viajam no sangue.

31.10.25

Injustiças documentadas (610)

Quando o sol é de muita dura

poucos aprovam a colheita.

#4252

O lobo 

faminto do sangue nosso 

medra por dentro das veias 

e nós, venais, sabemos.

30.10.25

Injustiças documentadas (609)

O elefante

não cabe

na sala.

Injustiças documentadas (608)

Três

(Salazares) 

foi a conta 

que o aprendiz fez.

Injustiças documentadas (607)

A pedra sem cal 

o mar sem sal

o tirano sem mal.

#4251

Vamos, 

vamos patear 

o homem das tabernas.

29.10.25

Suposição

Manda o sindicato da felicidade 

dizer

que é proibida a melancolia

em dias de luar de peito aberto.

Os infratores

serão punidos com três noites de insónia

para aprenderem com o luar tumultuoso

a serem necessariamente felizes

 

(e não apenas felizes).

#4250

Outro dia 

o ogre do tempo 

intransigente.

28.10.25

Ao acaso

Jogo os dados na marca da incerteza

componho os cabelos

um meneio capaz de quem demanda a sorte

de alguém que apedreja a superstição

e no turbilhão das forças e dos sortilégios

arrumo os dados sem pensar duas vezes

que nem uma só seta salvação possível. 

Jogo os dados

que o mistério da sorte

é surdo às intimações postiças.

#4249

Contar espingardas 

é como contar mortos 

antes de o serem.

27.10.25

Negação à negação

Não 

não é a neve que enovoa a noite

que destrona a noiva cidade.

Não é

o turvo decair

que transgride as traves 

que entronizam as pessoas.

Não é

a besta baça

que embainha as botas armadilhadas.

Não sei o que seja

a não ser

todo o inventário que inventei

para dizer

que não é por coisas essas

que os lugares e as pessoas

se perderam de paradeiros.

#4248

A hora muda 

mas a hora continua 

muda.

26.10.25

Mapa mundo

Costurássemos os costumes com o carvão do medo

as viúvas ao deus-dará

 

(oh, heresia, que Deus permitiu,

talvez distraído,

que uma palavra inspirará em seu nome

fosse iniciada com letra minúscula)

 

ao deus-dará as viúvas,

dizia,

portadoras desses funestos véus

que ninguém ousa postergar. 

Oxalá a algazarra dos petizes não termine;

precisamos de uma mnemónica da infância

para avivar a memória

de como era ser infante

sem consumições porque o mundo à volta

ainda não existia

e agora 

que já não nos gabávamos da adulta idade

sabíamos que o fingimento se apoderara de nós.

Fingíamos moderação

um espelho desimpedido 

para as palavras das outras bocas

e nós

enjeitando a autarcia

crescíamos como autarcas de um voto só. 

Às vezes

apetece agarrar a vida pelos colarinhos

depor a ira em forma de babugem

ou a ira arrancada a ferros das notas de rodapé

de dicionários vetustos e esquecidos 

nas arrecadações mentais. 

Apetece cuidar do dia

como se durasse meses a fio

e exilássemos as páginas desaproveitadas

as páginas que não cumpriram a folga do futuro. 

Outras vezes

deixamos que o tempo seja refém

das mãos que entrelaçamos

e das palavras murmuradas no cais do silêncio

trazemos estrofes arregaçadas ao rosto

é como 

se emprestássemos os rostos à chuva outonal

e desmatássemos todas as vírgulas gongóricas

as que enxameiam o poema diário

com as luas altivas

que ensinam as maneiras válidas

de sermos testemunhas primordiais

do belo em que o mundo se encerra

e nós

nós somos o seu mapa,

mundo. 

#4247

Joga uma tripla 

como no totobola 

e sais sempre a ganhar.

 

[Grandes remédios para males não tão elevados]

25.10.25

Injustiças documentadas (606)

Dizer 

que vai ser 

muito sincero 

é como apregoar 

que um espetáculo 

é totalmente gratuito.

#4246

Toda esta vaidade 

uma língua de trapos 

de almas 

que nem o avesso conhecem.

24.10.25

Marco

Cortamos as palavras em dois

o número tangente de que somos imagem. 

Subimos a noite desimpedida

no ecoar das luzes que falam no nosso sangue,

a atalaia aos mundos profundos

uma simples mão pousada na outra

depondo o outubro fecundo.

#4245

Contem 

os metros do dia 

cada milímetro de lágrima vertida 

os quilos de angústia por decifrar.

23.10.25

Amanhecido

Seus

os olhos amanhecidos

como se aos céus fossem

e os lençóis amortalhados

a metamorfose de uma trincheira

onde o único arsenal admitido

é dos corpos que falam com o desejo. 

#4244

Sonhou que era astronauta 

e que do espaço 

viu um revólver a sequestrar a Terra.

22.10.25

Um quilo não pesa um quilo

Desta matéria feito

viro o dia do avesso

e não encontro as costuras 

– o fundo falso tirou ao acaso

um sortilégio. 

As flores mudam o campo

que deixa de estar mudo

ecoando o seu peito farto

pela voz centrípeta das flores. 

No meio da ponte

parece que só há 

o rio sobranceiro ao precipício

a consumição das tonturas. 

Digo:

 

é nas ruas onde o medo se emaranha

que somos além do que intuímos

aproveitando cada braçada 

para amealhar mais gramas 

para a existência inquieta. 

 

Dizem-me 

para não dar atenção ao tempo

para abandonar o corpo aos espíritos que adejam

e eu

teimosamente

respiro o vento cortante 

aparo o sol com os dedos encadeados

sulco o dia vívido 

nos labirintos que me ocupam

e deixo à memória futura

o encantamento escondido

tantas vezes obliterado

o encantamento que se acanha 

nos provérbios gastos pela usura

na conspiração que teço

só para ficar longe da entronização. 

 

Desocupo as montanhas 

que me separam do mar;

afugento as sílabas cortadas

as passagens de nível tão desejadas

pelos aspirantes a subir de degrau

que o estatuto não me deixa enamorado

e não preciso

já nesta idade não jovem

de sentir o regaço 

de todos os que se candidatem ao meu amparo. 

 

Prefiro as coisas na sua lhaneza

os dias sem vestígios de sua memória

o beijo de umas mãos estrelares

os vícios sem redenção

um lugar apurado na pequenez dos lugares

só para ter a companhia 

dos exilados de todas as estirpes. 

 

Fujo das luzes maçónicas

das suas malsãs divisas

e ainda mais

de quem se aliste para o infausto

da condecoração. 

Tiro ao acaso um número:

 

já não me lembro qual foi

mas era melhor do que o que consta

no rodapé do dia.

#4243

Governas por acrónimos

vai-se a ver

és poupado e austero.

21.10.25

Dos nomes outros

Destemido

o invulgar calar

ante a intransigente erupção. 

A escolha

tem aval dos penhores

as ávidas sílabas

que atropelam as frases. 

Não evaporo

os medos estilhaçados

nos ramos quebrados 

à mercê 

do vento que foge do norte. 

Um parágrafo

um parágrafo derradeiro

a estrofe liminar levita entre o embaraço:

empresto a assinatura dos nomes outros.

#4242

Um pacto 

sem servidão;

a muralha

por desfazer.

20.10.25

Nevoeiro limítrofe

As assoalhadas que sejam

não tirem saúde à aorta

nem apetite

que desenha a gula do futuro.

 

Por mal me desenharem

ando por aqui

mortiço

ou apenas caveado

nesta mentira

de que se celebra

assim tão incorrigível

misantropo.

 

Se o nevoeiro

tirasse as medidas

pela cor do meu sangue

ficava ainda um pouco mais 

cerrado.

Injustiças documentadas (605)

Já alguém perguntou 

nessas guerras que por aí há

qual é o preço de uma bomba 

atirada ao inimigo?

#4241

Mal o mel amolece 

mil são os mastros 

que amanhecem.

19.10.25

#4240

Não menos diamante 

do que (n)os dias pretéritos

o corpo atira-se ao porvir 

com uma febre inaugural.

18.10.25

#4239

Hoje 

as pessoas são 

anti-coisas de mais. 

É um peso que se arqueia 

nas costas dos outros.

17.10.25

Manifesto contra as métricas

Alguém disse:

os lamentos deviam passar pela balança

para sabermos quanto tempo levam

a curar.

Outros propuseram:

não se esqueçam da fita métrica

que toma as medidas da angústia

para sabermos das horas por que

desandamos.

 

Pelo silêncio dos demais

dir-se-ia

que não alinham

nos modismos das convenções

e preferem

a incaracterística anomia das métricas;

recomendam esta austeridade 

como critério

para ao menos fingir

que os malefícios que entortam os dias

são encomendados a uma anestesia geral.

Injustiças documentadas (604)

Na sede própria 

não se bebe 

água alheia. 

#4238

Arranjamos metáforas frenéticas 

somos, 

talvez, 

fugitivos dos sentidos.

16.10.25

A cidade diferente

Às vezes

povoava a cidade

com as cores do meu sorriso. 

Enfeitava-a com os dedos desassisados

ela precisava de desarrumação

esconjurava as caricaturas andantes

jurava então um despojamento freático

virada do avesso 

até ser cais dos pássaros itinerantes. 

E a cidade mudava de rosto

todos os dias

como se as ruas mudassem de lugar

ou sem mudarem de lugar

mudassem só de nome

vomitando o cimento inerte

amordaçando 

os procuradores dos bons costumes

naufragados num rio sem paradeiro. 

Os que juravam orfandade

Sitiados pela metamorfose da cidade

condenados a serem nómadas 

sem saírem do lugar

arrepiados pela contrafação de si mesmos

limitavam-se a bolçar o silêncio arrependido. 

Injustiças documentadas (603)

No fim 

de um concurso de ideias 

ficas 

com um curso de ideias.

#4237

Por um fio 

a boca fugidia 

a loucura adiada.

15.10.25

Manual de instruções para corromper o medo

De dia

reinou o eclipse; 

à noite 

dominou uma versão remendada 

de um vulto qualquer,

o espantalho menor

numa litania silvestre.

Até que a noite 

fosse despojada do negrume

e todos as personagens temíveis

ao sono se deitassem.

#4236

Dobro a noite 

a escuridão 

não deixa de segredar

segredos improváveis.

14.10.25

Cerimonial

No vagar das luas demoradas

chamo pelo teu nome. 

Espero

na empreitada de generais sem arsenal

os braços nus;

 

eis a herança que deixo

para memória futura. 

 

Escolho os baldios como pátria

prefiro às cidades onde 

puídas 

habitam as pessoas que jogam ao acaso

e se perdem num labirinto de incenso

atiradas à sua decadência. 

 

Pelos ombros da tarde

vigio as janelas arrumadas

que esperam pelo ocaso. 

 

Não pedimos lume à noite

as ramagens adormeceram sob os auspícios

do vento entretanto omisso. 

 

Digo o teu nome

e o teu rosto

o teu corpo dádiva

sobem ao promontório destemido

e as estrofes vulneráveis

tornam-se o idioma que nos faz falar.

#4235

É este desembaraço 

o vento que leva o rosto livre 

o silêncio emudecido pelo avesso 

o apogeu sem fronteiras. 

13.10.25

Benefício da dúvida

Falsete no avesso de um dia arrefecido

os escombros ainda válidos

murmuram nos ouvidos não precatados.

O vinho anestesia o sangue: 

é disso que precisa

uma providência cautelar ao dia constante

como se atrás viesse uma espada apurada

e o sangue se derramasse nas provetas do medo.

O mosto ainda quente alisa o chão sinuoso

e da pele tingida sobram as pétalas matinais

estrofes avivadas nas tatuagens sem sono.

Da hibernação voluntária

amadurece o desamanhã que importa:

um forte tumulto abraçado à carne suada.

#4234

Perder devia ser banido 

pela bravura de ir a jogo.

12.10.25

#4233

Os espantalhos 

não contam estórias

tanta a atalaia em que se adornam.

11.10.25

Injustiças documentadas (602)

Não sei como explicar:

quando leio bancarrota 

vem à rima Aljubarrota.

#4232

Um sabre propedêutico 

a descer sobre a indigência atrevida 

para dela se dizer 

que está em vias de extinção.

10.10.25

Injustiças documentadas (601)

Preso político.

Preso, político.

#4231

Somos a fortuna 

dedicada a um ouro postiço, 

um fausto manto de ilusões.

9.10.25

Cúmplice

Arranco as páginas

como os dedos se emprestam ao afago. 

Revejo nos lábios 

a usura dos corpos extáticos

a água por dentro

a salivar numa corrida desenfreada. 

Insisto 

na redenção pelo silêncio

nesta habilitação de palavras intuídas

palavras adivinhadas no estuário amanhecido

e na glosa do dia entronizado.

Trago à tua mão desamparada

o destino havido na desautorização da angústia. 

Depois

se formos ao lado do sortilégio

não somos reféns do medo

e sabemos

que a madrugada se demora 

enquanto adivinharmos o corpo cúmplice

que se deita ao lado.

#4230

Já o braço esquerdo, 

o pobre braço esquerdo, 

é o patinho feio 

da anatomia humana.

8.10.25

Injustiças documentadas (600)

Um trunfo 

não é 

um triunfo.

#4229

Só aceito medalhas 

se forem devidas 

por mau comportamento.

7.10.25

Miradouro sem escala

Ser asceta

causa umas dores lancinantes

dantes é que o pio dos dias era viável

e todavia

por voluntária corrupção

desabitei os hábitos estroinas

desabituei-me de distribuir impropérios avulsos

e de amanhecer com a cabeça virada do avesso

como se o norte fosse sul

a manhã noite funda

e de dia houvesse lua a sondar os poemas

 

(amadores,

como este)

 

e no fundo

as mãos descessem para apalpar o céu. 

 

Assim passam os dias

no exílio necessário

eu

nem metade do que fui

aspiração a ser todo e outro tanto

quando a mão se deita ao elixir prometido

a menos

que as promessas sem paradeiro

sejam um logro

e eu

pacientemente

vá mesmo a caminho 

da decadência.