30.4.25

Fita-cola

O furacão devorou o dia manso

o ganso dançou no paredão

 

o eremita orou no jardim

o arlequim chorou com a comandita

 

o charlatão levava a mentira no calço

o sonso vertia ranho de latão

 

a senhorita namoriscava com o jasmim

o querubim adormecia no colo da safadita

 

o fanfarrão escarnecia do tanso

o manipanso discordava do beberrão.

#4077

O dote que é dádiva 

ou, em imersão da alma, 

uma maldição.

29.4.25

Idioma

É preciso 

patrulhar o esquecimento

tirar o sal das bocas semânticas

olhar pelo avesso dos espelhos adiados

convencer os agiotas que têm a cabeça a prémio

ordenar aos ajaezados eruditos

que traduzam as falas gongóricas

amanhecer de sangue cheio

lembrar as nuvens onde repousa o futuro

misturar idiomas à volta de vírgulas rebeldes

contemplar a lua que bebe do céu

tirar as medidas que antecipam o estuário

e dizer aos que ouvem

exatamente aquilo 

que não querem 

ouvir. 

Injustiças documentadas (531)

Tecnologia, 

de ponta 

e mola.

#4076

Não fugimos do medo 

nem fingimos 

que dele não somos reféns.

28.4.25

#4075

Neste idioma que não dorme 

a vacina contra a mudez 

a moratória da solidão.

27.4.25

#4074

Adiamos, enfim, o adiamento 

hoje é o dia em que se cumpre 

o presente.

26.4.25

#4073

Do sumo da tangerina 

a viagem não deletéria 

que aclama um mistério.

25.4.25

#4072

Dispensamos padrões;

já somos penhores

da bússola interior.

24.4.25

Apostilha da concórdia (e corruptela de anexins)

Dádivas deste jeito

eram rarefeitas

e as pessoas rimavam com seu pasmo

aprendendo, muitas, o que se diz dizer

do insólito 

depois de o dicionário consultarem. 

Outros, desconfiados,

tecem um jogo de palavras

oxigenando pobreza e esmola

e, ó palco sem surpresa,

desconfiança. 

Metendo a sexta na desconfiança

travam uma perna atrás

quase seguros que a dádiva traz

 – voltando aos lugares-comuns 

terçados por anexins –

algo que pressente 

um líquido

e a boca de uma ave. 

Mas às dádivas não se diga não 

pois o idioma vulgar já consagrou 

que a um equídeo de oferta 

não se inspeciona a dentadura. 

E a ralé

(Régio, apud. Marcelo)

convencida será

pois em pior estado não estará

no pulsar das regalias outorgadas. 

Pois que visto pela lente desfocada 

dos filantropos,

sempre se poderia invocar a seu favor

que tanto pecam por albergar o canídeo

como em espantá-lo para incerto paradeiro. 

E como já impetram a moral da história

diga-se

em abono de todos

agraciados e filantropos 

que a concórdia 

é sempre a melhor moeda.

#4071

Na fotografia 

vejo através

de outros olhos.

23.4.25

Mundo de vez em quando

Ah, se bastantes fossem os ossos ocupados

como quem granjeia almas por confirmar

no espelho baço onde se agigantam sombras. 

 

Num oximoro presas

as falas condenadas à mudez

desfiliam-se dos preparos filiais

aprendem a fazer-se voz sem freio

à custa de muito porfiar. 

 

Ah, se as respostas seráficas

não fossem do tamanho de mundos inteiros

e das folhas servidas no refrigério das almas

se ocupasse a lava fingida 

– podia ser que os defeitos do mundo

deixassem de ser do mundo

e me fossem creditados 

como exclusivos.

#4070

Se por um fio se perde 

por um achado se ganha.

22.4.25

Anexação

Esqueci-me 

de anexar a noite intrínseca

de dar nome ao meu apeadeiro

de insultar os modestos soldados 

que vão à frente 

em nome da bravura de ninguém

de chamar pelos nomes que não são ouvidos. 

Fiz somas e subtrações

e a bússola continuava desamparada

com medo das vozes madrigais

errática como o vento órfão. 

E juntei

as peças desembaraçadas 

no peito descarnado que se dava à maresia

sem os vestígios de deuses

das perseguições entretanto esconjuradas

pelo esquecimento 

averbado pela língua gulosa. 

Desarmadilhei o vetusto

para grande tristeza 

de uns habitantes do Restelo

amofinados no mofo transido das medalhas 

que formalizam o esquecimento do passado. 

E agora

só faço somas

com os minutos que correm nos dedos

secando os punhais dos párias

bebendo o vinho quase apodrecido

e retendo na boca

a febril doçura das uvas 

quase bolorentas. 

#4069

Provavelmente

o impossível tornou-se improvável 

e ganhou possibilidade.

21.4.25

#4068

De cada remo 

a água transida 

na ceifa que investe.

20.4.25

#4067

Rosnar à vez 

só para ver 

quem chega a velho 

primeiro.

19.4.25

#4066

O mar coalhado 

alberga navios em vigília 

à alvorada que se monta.

18.4.25

#4065

Arrastado pela multidão 

na tradução da impotência 

(ou no baraço da comodidade).

17.4.25

Palavras descruzadas

Pelo garrote incensado

as conspirações amontoadas

no prato da História. 

Emudecem de raiva

os geniais vultos 

que cultivam o despropósito 

assobiam para o alto

como se prevenissem as desgraças

de descerem ao chão dos Homens vãos

e tudo se falasse com o verbo futuro

por tão elevada crença nos dissídios. 

Às contrariedades respondemos com esgares

o mal disfarçado desprezo pela atonia.

As pessoas não se escondem

do avesso que as desonra. 

Desovam as fraquezas que os consomem

mesmo que as fragilidades

falem de um futuro ainda por aplicar 

como se houvesse apenas 

palavras esvaziadas.

#4064

A patrulha dos adjetivos 

apertou-lhes a carótida 

e eles passaram a rarear.

16.4.25

Avança

Avança

esta é a avoenga herança

sem transigir na dicção dos costumes:

 

fala-se de valores

antes que sejam esquecidos

dantes esquecidos na febre da apatia. 

 

Avança

antes que fantasmas sejam moradores

e a desolação retrate a paisagem

como se um inverno nuclear tivesse chegado. 

 

Avança

antes que a anestesia do tempo

de ti faça mera estátua sem toponímia.

#4063

Não temos tirocínio para acrobatas

mas andamos todos os dias 

no fio da navalha.

15.4.25

#4062

O nariz do corsário 

ainda não aprendeu com a mostrada.

14.4.25

Injustiças documentadas (530)

Apareceu 

de peito feito

e nem sequer

foi ao silicone.

#4061

Se ainda sobrasse luz 

como do dia o adiamento se ajeitasse 

na súplica do ilustre impossível.

13.4.25

#4060

Fraquejava

– esse corajoso avental 

mostrado às claras.

12.4.25

#4059

A este bramido 

que nos cospe sem vergonha 

fogem os rostos enquanto não cedem 

por decência.

11.4.25

A fábrica dos sonhos

A leveza da tarde 

entre as árvores que renascem

e o rumor que evoca as falas limítrofes

levita no palco onde se aformoseia o dia.

Como se fosse uma anestesia

e em redor tudo deixasse de contar

os olhos fechados entram no exílio

desenham os contornos de um lugar singular.

 

Não se perfumam as armas de outros arsenais

não se tatua a desconfiança na melancolia

não se levantam as ondas iracundas

numa maré acostumada por ventos adestrados;

as ruínas escondidas

avalizam o tempo furtivo

rivalizam com os destroços avulsos

que não são despojos.

 

Se der à noite o que ela impetra 

– um quarto sombrio onde vagueiam as palavras

o luar logrado pelas nuvens acamadas

um rasto de sobriedade que povoa a lucidez – 

sinto a redenção a medir as veias

e sei que sou tutelado pelo sono seguinte

enquanto o amanhecer se prepara

na fábrica dos sonhos.

Injustiças documentadas (529)

Tanto se elucubra 

sobre a guerra comercial 

e ainda ninguém se lembrou 

de tarifar a guerra.

#4058

Este é o vento raso 

que penteia a pele.

10.4.25

Ímpares

É a maresia que adocica o dia

à medida que o relógio se adianta à luz

e os desacontecimentos se orquestram

no idioma válido. 

Diziam 

que somos todos derrotados

mas não acreditei;

está é uma teimosia cara aos vencedores

um cálice bordado a ouro para o melhor néctar

as pétalas encimando as pálpebras prístinas

e outros modos de falar 

que passam pelo silêncio. 

Tomo o entardecer como solução para as dúvidas

sob a tutela de um copo de vinho

a espada para desfeitear o dia tumultuoso

à espera que a maré encha

no recobro solitário dos verbos desarrumados. 

Esta é a fértil absolvição imprevista:

o revólver vazio 

acompanha a solidão da noite.

Ainda bem que não há vítimas

no perímetro sob a tutela do olhar.

Injustiças documentadas (528)

E depois havia aquele notável 

que, cansado de o ser, 

suplicava 

“quando for pequeno”.

Primeira página

Tomamos conta do luar

apanhamos de cor 

as pétalas que levitam

e dançamos os verbos encantados

que nascem no sangue amotinado.

#4057

Gosto do improvável: 

dos dias diferentes 

procede o condimento da vida.

9.4.25

Custódia

A senda aberta 

o grande temor do mundo

arrancado aos ferros ferrugentos

amacia as palavras que se estilhaçam.

Manifesto contra os contratempos

Podemos dar nomes a vulcões

ou apenas ficar à espera do luar

enquanto afastamos o crepúsculo

com as costas das mãos.

 

Podemos assentar os olhos no devir

amassando os verbos até serem pródigos

e cortejar os jacarandás

até que se tornem nossa bandeira oficial.

 

Podemos desejar os versos por fazer

sermos arquitetos da poesia sem estribo

ou apenas darmos a voz colossal

ao palco onde se emancipa a fala.

 

Podemos fugir da noite fria

empunhando as mãos enlaçadas

que fruem no hino magistral

enquanto vemos os dias em roda-livre.

 

Podemos ouvir o rumor das rugas

o silencioso penhor que não recusamos

e estender os passos ao tamanho do mundo

no calendário sem regras que levamos nas mãos.

#4056

Sou 

o chão 

que se entranha 

no corpo.

8.4.25

Conduta

Permanente contratempo

a égide dos olhos tomados pelas nuvens

e lá fora

a multidão sem protesto por falta de causa. 

 

Logo que os tribunais dos sentidos

ganhem sua pausa

peço à lua um chapéu sem abas

para do luar pedir duas estrofes de empréstimo

enquanto finjo um sono improvável

e escuto as falas que se entrecruzam

no reino destronado 

por conta da avenida dos heróis sem nome. 

 

Não se diga 

que há carestia de palavras. 

O poema arredondado 

sobe no crescente diurno

emoldura o rio prateado

como se fosse medalha olímpica. 

Injustiças documentadas (527)

Correr à boca pequena

é mais devagar 

do que correr à boca grande?

#4055

Desmata o preconceito. 

Não precisas dele 

até seres noite puída. 

Injustiças documentadas (526)

Descobri 

o (mesmo) saco 

onde está 

a farinha (adulterada).

7.4.25

Musgo

Rasuradas as lágrimas

extingue-se o vulcão da memória. 

 

Agora somos só nós

uns braços sem arestas

e a visibilidade da manhã fria. 

 

À sorte

pedimos a água que afasta a sede

uma maré sem nome

que se alista no cais sem prescrição. 

 

Dizemos adeus

aos fantasmas diletantes

e no compêndio da fala

convocamos as bocas sem mudez

elas em forma de poetas

embuçando o exército de párias.

#4054

O rio caduca

quando beija o mar.

6.4.25

#4053

Uma carta de amor 

não se escreve,

vive-se.

5.4.25

#4052

As ideias que se mestiçam

atapetam a glória 

de quem as pensa.

4.4.25

#4051

Diz 

com a força do sangue que trazes 

as estrofes de que te sabes composto.

3.4.25

Telhados de vidro

Das pistolas puídas falam os párias. 

O sol posto sobre as entradas

um embaraço aos estetas

como um campo minado 

por ferramentas amolecidas;

já nisso andam os pastores

desde a alvorada anterior à própria alvorada

o pecaminoso joelho em cima da luz ríspida. 

 

Depois

entram os cavalos desempossados

consomem a saliva irada de quem foi abandonado

impunemente desbaratando a liberdade herdada. 

 

São tantos os contos

que se atropelam na tela do pensamento;

não chega todo o vocabulário

nem a medida do tempo parece combinar

e a trovoada como pano de fundo

mistura-se com o rumor do fino fio de água

que é ainda véspera de um rio. 

 

Avançam

sobrepostos a uma meada de nuvens

os braços frenéticos que falam de segredos;

avançam

reféns da sua ordem meteórica de acasos

e nós

desde a plateia

esboçamos um coro esforçado

não escondemos o olhar seráfico

que se antecipa ao sono tutelar. 

#4050

Um lírio sem haste 

fala pelas lágrimas órfãs.

2.4.25

#4049

Praticamente a desembestar, 

o torneio que não se candidata 

ao fátuo.

1.4.25

#4048

As pétalas dançam 

memorizam o dia latente 

antes de serem expropriadas 

pelo vento tardio.