4.2.15

Culatra

Um compêndio de fúrias mal acamadas.
Prometem peleja aos que discordam
aos que ousam a dissidência
aos que simplesmente dizem “porém”.
Puxam o coldre  
destravam as munições

e disparam a eito.

Valentes
passeiam a razão da força.


(Não haja quem lhes conte que essa é uma desrazão)


Só sabem a linguagem dos punhos
só escutam as melodias marciais
só se encantam com a arte da guerra


(Sem saberem que é uma desarte)


A uns, munições a sério

nos belicosos exércitos.
A outros, arsenal em sonhos
ou um pequeno arremedo se arquivarem armas.
A outros, ainda,
apenas a tanta força bruta braçal.


Diferentes culatras
a mesma agnosia militante.

Um compêndio de desrazão assassina
ou apenas uma pulsão suicida
que medra entre as febres iracundas.


À tolerância, dizem-se ausentes.

2.2.15

Bancarrota

Amarrota os papeis
sopra-os em demanda do lixo.
Prepara a melhor fatiota
a que seja celebrada pelos demónios.
Que se não te ampute a vontade
a absurda vontade que demência parece.
Pelo caminho
bate as asas e mete o pé em frente:
pois à frente vem o abismo
onde nem as amadoras asas
salvam do despenhamento.
Notarás o chão
(como duro é o chão)
quando os ossos estalarem
e os olhos raiados despontarem o ocaso.
Bem te tinham avisado.
A bancarrota
não é coisa agradável de se ver.

28.1.15

Not the paradise

Throw the vows into the carpet
where lions wait for digestion.
Throw the cards into the blanket
where sweat was the emperor of bodies.

Shallow the thin shades
where dark cards outplay.
Glimpse them with your glare
where memories vanish.

And yet, paradise is infrequent
(is) where dreams fade away.
Paradise is not lost
(is) where absence dismays.

Promised, archaic lands emerge
where furnaces incinerate tears.
Neglect what eyes must not envisage
(of) where branded dreams boil in pain.

Turn away from the tainted words
(there) where hands become prisoners
and ruined houses levitate within the clouds.

An empty boat is left in the lake
(is) where legs shove the movement
and a nutshell of you, real thing, grows legacy.

27.1.15

Um minuto

Se dessem um minuto,
um minuto apenas,
o que diria?
Num minuto,
que palavras ecoariam os mosaicos por dentro?
Seriam doces
ou apanágio do pânico
(pois só haveria um minuto)
ou um vale sedoso de uma vida cheia?
Haveria sequer palavras,
sem a serventia delas se num tão curto minuto
não seriam serventuárias de resumo algum,
nem prodigiosas ao ponto de terem merecimento?
Num minuto
não se erguem interrogações.
(A não ser porquê um minuto apenas
e se estaria a um minuto do juízo final)
Não haveria traições semânticas
nem trôpegas encenações quiméricas.
Num minuto,
num singelo minuto,
não se encerra nada.
Um minuto é um cárcere.
Ser dele algoz
é a pena pior que um juiz pode decretar.
Num minuto diria nada.
E com tão ruidoso silêncio
diria tudo o que importa.

20.1.15

Questionário

Diz-me tu.
Diz-me as cores que compõem o dia.
Os odores que tomam conta da paisagem.
Quantas pessoas nos vêm.
Quantas estão lá fora ao frio.
Diz-me quantas gotas traz a chuva
quantas sabem ao vinho que fizemos.
Diz-me o que souberes ser de tecer loas.
As páginas de um livro
o dedilhar de uma guitarra
o enredo de uma peça de teatro
ou apenas o entrelaçar das mãos
o olhar que se emaranha noutro
os desejos que quisermos
as alvoradas que tomamos nas mãos
a neve que esvoaça na leveza da noite
os caminhos que descobrimos
os segredos que deitamos sobre nós.
Diz-me tudo o que te apetecer.
Eu te direi o que o amplexo de nós levar à boca.
As palavras doces
a pele acetinada
os olhos (nem que sejam marejados)
as facas que desbastam memórias gastas.
Tecendo os dedos entre cabelos molhados
não ajuramentando o que não precisa de juras
nem correndo das paredes quentes que são refúgio.
Diz-me tu,
que direi o que de mim achares belo.

Promessa

De que vale amofinar,
de que vale se o sol vem depois da noite
os pássaros não deixam de voar
os diplomatas não deixam de urdir
os artistas mal paridos não deixam de ultrajar a arte
e se as promessas não deixam de ser
contrato descumprido para memória futura?
Antes não desembolsar promessas
antes que sejam vertidas num vão altar.
Antes o sol nascente na sua lhaneza
os pássaros em bando compondo a paisagem
os diplomatas na arte da simulação
os mal paridos artistas a dececionarem a estética.
Antes não haja nascimento para as promessas.
Não venha o ajuste de contas da memória
e as cefaleias pontuem nas sobras das promessas álgidas.
Prometa-se que não haja promessas doravante.
E as que a distração escapar deixe
se faça desnascê-las.

30.12.14

Gourmet não acidental

O dente de leão.
Metia o dente de leão
às iguarias que viessem.
O amesendar era diferente:
não eram mesas de madeira
não eram savanas com arbustos rasos
nem mares com o sal como tempero.
Os campos eram de outra igualha.
Era onde os gentios se desembaraçavam de rivais
e, em não sendo hienas,
terçavam urros para seu território marcarem.
Gulosos,
metiam o dente frio às iguarias todas.
Pareciam aviadores na coleção de estrelas
que ostentavam, com garbo, à lapela.
O dente branco,
impecavelmente afiado,
era um punhal sem contemplações.
O dente era quente quando a preceito
espetava-se na carne deliciosa,
anestesiava-a.
O dente era frio na implacável destreza.
Os sussurros ecoados ao ouvido
em amestradas cantilenas rituais
Enfeitiçam as presas.
Depois
é um ver-que-te-avias.
O tempo não conta,
as memórias dos rostos também não
(dissolvidas em ácido deixado pelas lágrimas de alguém):
sobra uma contabilidade sem tempero.
Um amontoado de corpos
pernas e troncos entrelaçados na difusa memória.
E o tempo que interessa que parece esgotado
na voragem do instante.
O dente de leão
(consta a lenda)
não se gasta.
Os suores depois
tratarão de provar a profecia.

16.12.14

Harmonia

As pedras coalhadas são o chão ceifado
por onde seguem alces destemperados.
Rios apascentados emprestam suor à paisagem.
Estorninhos vigiam o arvoredo, procuram intrusos.
Um padre peregrina.
Um cantor assina a pauta dos sabores.
Um cozinheiro ensaia a coreografia ousada.
E nem o bailarino tem a têmpera para meter a mão em arte alheia
nem os julgadores se fazem rogados para ciciar nas costas dos dementes.
As rosas não estremecem na coloração
nem com trovoadas medonhas que descarregam toda a ira.
As rochas agarram-se às raízes
não querem ser desapossadas do seu chão.
As pessoas entrelaçam-se em abraços dóceis:
não há estranhos entre ninguém.
As estrelas que incensam a noite ensinam o rumo
mesmo que as nuvens escondam o céu.
Os frutos colhidos são doces como nunca se soube.
O papel está branco
à espera de ver nele vertidas as palavras quiméricas.
O corpo,
indomável,
não mete freios aos impulsos.
Só contam os prazeres.

14.11.14

Dúvida metódica

Não sabia que as velhinhas alojavam sapiência
não as sabia tutoras da erudição.
Talvez seja por envergarem as vestes negras
da perene viuvez que as desvia dos prazeres.
Não sabia que uns eruditos medram nos esgotos
não os sabia arrevesados cultores da inanidade.
Talvez seja por terem tempo de mais na ludoteca
e se distraírem com a imagem magnífica de si mesmos.
Não sabia que há gente que se desonera de cuidados seus
não os sabia tão generosos com os cuidados alheios.
Talvez seja por precisarem de cuidados intensivos
dos cuidados que esbracejam sua frágil condição.
Não sabia da maldade congénita
não a sabia património da espécie.
Talvez seja da ingenuidade que me consome
da ingenuidade que fermenta o incrédulo.
De não saber que tanta coisa existe
das coisas que
(vai-se a ver)
estão à distância de um palmo dos olhos amarrados.

7.11.14

O colo do mundo

Um diamante em riste
as armas que terçar não é preciso
a demiúrgica face descoberta de espinhos
um rosário caleidoscópio
e os braços bem abertos
desejosos de recolher em seu regaço
o legado do mundo
o mundo inteiro
(se preciso for).
E deitado sobre o próprio regaço
admirar o mundo
de que se fez tutor.

6.11.14

Fogueira alada

Sobre a cama de fogo
onde crepitam as pepitas prateadas
dançam as mãos trémulas;
hesitam
dão um passo em frente
acamam sobre a pele acetinada.
Refulgem com a luz que vem da pele
e dançam em círculos
pedindo carne doce
enquanto a lareira afaga seu fogo
e empresta luz à coreografia dos corpos.
Na cama de fogo
os amantes despojam-se de peias.
Intrépidos
cúmplices
na vertigem do desejo
enquanto os sentidos
desenham palavras que não se escrevem.
Enquanto os estorninhos ciciam
o canto dos amantes.
Enquanto a nau toma rumo direito
entre águas enfurecidas.
Enquanto os olhos se fundem
e o gelo todo se consome na chama que crepita.

29.10.14

Penhorados

Vamos partir o mundo por dentro da loucura
vamos pelas ruas fora
as mãos dadas
os olhos fundos derretidos uns nos outros
os passos estugados na firmeza do saber.
Vamos partir o céu em estilhaços
louvar os feixes que de nós a nós vêm
a pele suada das correrias não vãs
derrotar as importunações com o mel da perseverança.
Vamos ensinar a aprender
a ninguém se não nós
pois somos penhor de nós mesmos
e do resto não nos importamos.
Vamos acender a lua
gritar pela madrugada fora
fazer soar as sirenes que desembaciam os ouvidos
jorrar a água das fontes paradas
soerguer o pescoço por cima das cancelas
e devorar os instantes todos,
todos,
sem perda das medidas do tempo.
Vamos deitar flores no chão húmido
verter palavras-sortilégio no musgo do cais
enquanto as mãos entrelaçadas se aquecem do frio
e contemplam o rio que parece vir do mar.
Vamos correr pelas ruas enquanto a cidade dorme
passear as mãos altivas no altar de nós.
Vamos deitar beijos pela janela
consumir o fogo fátuo
despir as lágrimas da sua água
encarnar a doce loucura que vem a nós.
Vamos dizer ao mundo inteiro
o nada que lhe devemos
e, em segredo nosso,
sorvemos um cálice de ouro
no tanto que somos em combustão.

22.10.14

Transparência noturna

Na crina do cavalo
as mãos temerárias metem velocidade.
O animal povoa as pedras do caminho
enquanto no rasto sobeja poeira.
As mãos recebem o suor
da crina do cavalo, que não abranda.
Fecha os olhos
confia no cavalo que vai para um cais.
Quando abriu os olhos era noite.
A humidade do mar,
em comandita com a noite outonal,
disfarçava os vestígios da poeira.
Do cavalo, nem sinal.

10.10.14

Contra a corrente

A lava torrencial
lavra a incandescência da terra.
Não é uma visceral tutela da desvida:
do tempo vindouro
virá a desmorte da lava cristalizada
quando arbustos vicejarem do nada,
da improbabilidade do nada.
Pois a destruição pode ser criadora.

5.9.14

Proclamação

Quero dizer o seguinte:
as águas azuis viram do avesso
os ossos desfiguram a eternidade
as épocas caldeiam a bondade
as mãos trémulas agarram os beijos
a ternura é inacabada
e o mais que possa ser bálsamo
e que as palavras tornem indizível,
como:
as cinzas do mar
a chuva das montanhas
os lagos emparedados
as lágrimas furtivas
a pele suave, aveludada, tingida a cobre
os olhos que escorrem mel de urze
os pés que sabem o odor da terra
os frutos arrancados às árvores
as cruzadas que se terçam em preces e não só
os jogos que não importa perder
e a espuma do mar cristalizada na areia.
Quero dizer o seguinte:
que do tempo não sou timorato
autor relâmpago descarregando a fúria de antanho
do alto da pirâmide domador de elementos;
tomo os sabores do mundo na palete das cores
e respiro o ar puramente ecológico;
sinto-me maior que a minha estatura
espelho radioso multiplicando os raios de sol
leito resguardado nas palmas das mãos
mar inteiro aberto aos viandantes
ou poema sempre inacabado
à espera de estrofes antolhadas na garganta.
E quero, ainda, dizer o seguinte:
não quero dormir
se não nos sonhos embelezados;
não quero enfurecer
se não nos volteios iracundos das ondas tempestuosas;
não quero traduzir em palavras
o que só se sente nas veias;
não quero os esteios da solidão
se não quando multidões ferem com punhal;
não quero as polémicas que alojam insónias
se não quando as rugas se anunciam;
não quero chaves nem fechaduras
se não para embotar as janelas desconhecidas;
não quero a aridez das ideias beatas
se não quando a água transbordar das margens;
não quero alijar as memórias que angustiam
nem quando o suicídio do ser se levanta;
não quero mágoas nem excitações espúrias
apenas os predicados do recato dentro das baias da alma.
Não quero saber do que não quero
se não dizê-lo em estrofes que excruciam.
Pois, talvez, não haja valimento nas proclamações
e faça sentido nada dizer.
Era o que queria dizer.

3.9.14

Vita brevis

Tirei as medidas aos sapatos
que era longa a demanda.
Medida a bissetriz dos passos
tomei a viagem como báscula vital.
Era partir ou medrar no nada.
Os sapatos gastos
(solas rotas)
foram selo do destino.
Faltava saber se outros eram precisos
para a volta,
ou se era serventia dos pés sem sapatos.
Um novo destino achou vencimento.

9.6.14

O amor forte

É encontrar a tua bissetriz
remexer com as mãos o sal da terra
abraçar o aroma dos frutos;
é sermos tutores do tempo que se exige
como se não houvesse dia depois deste
por o tempo se esgotar
e nele nos querermos saciar;
é adestrarmos um navio
de que somos únicos tripulantes
e por ele levarmos os oceanos a todo o lado;
é mantermos as mãos entrelaçadas
com flores viçosas entre os dedos
e delas fazermos nosso leito;
é, enfim, o que quisermos ser:
reis de um reinado ímpar
poetas arquitetos de estrofes magníficas
sol que derrama uma centelha perene
a pele una pela combustão dos sentidos
alvorada que se funde na penumbra do ocaso
através dos nossos dedos,
amos de um amor forte.

3.6.14

Súmula

No chão que arde
as folhas caducas resistem.
Santuário onde os pés levitam.

As maçãs verdes
desabrocham a avidez do dia.
As paredes baças
só sequestram os olhos tementes
os olhos envidraçados
e as mãos atadas no lúgubre átrio.
As pedras vetustas
encimam as casas gastas
e devolvem o sagaz arrastar do tempo.

Oxalá houvesse maçãs verdes para gente muita.

Não há cicerones
não há miradouros
não há chapéus que guardam ideias
não há sacerdotes que adestram baias
nem deuses semeados de generosidade.

Há apenas a lhaneza de nós
caminhantes sem freio
apanhando os comboios que passam
nos apeadeiros que vierem a preceito.

7.5.14

Polaroid

Do vinho raro,
em cálice ao alto:
oxalá as pétalas doravante
sejam a maresia de agora.

Com os trinados dos estorninhos
derrotando a melancolia;
o céu pontuado por nuvens arquitetónicas
ungido pela luz clara;
os ossos possuídos pela força
e os dedos congeminando seus sonhos;
divindades imaginadas
compondo as preces necessárias;
as bocas unidas na combustão
que incinera sobressaltos;
e os corpos quentes
abraçados num frémito insaciável.

Os amanhãs que se não empenhem
no tirocínio do presente;
as ondas do mar
que tragam as novas que importam;
uma peregrinação algures
e os olhos virados do avesso,
em redescoberta;
as cambiantes do ser
que deixem de ser autofagia;
as mãos que se dão
limpando o suor pretérito;
um livro aberto, de páginas brancas,
à espera das palavras acertadas.

E as palavras:
arranjos florais
melodias sem peias
formulações simplificadas
(dos mais complexos devaneios)
proclamações solenes de jactância,
mas de uma vaidade lhana, sincera,
feliz.

Tragam esse raro vinho
deposto nos mais valiosos cálices.
Que sejam bem alto erguidos
nas loas ao porvir que fazemos.
Saciemo-nos nesse vinho,
nem que seja até à embriaguez.
Não,
não serão os sentidos adulterados:
será a deposição dos vultos nefandos,
a nossa entronização como deuses sublimes.
Até que no cais luminoso,
diante da maré sôfrega e da maresia explosiva,
todos os segundos contem.
Sem digestão do tempo
sem desgastar o tempo
sem apressar o tempo,
o escasso tempo,
em banais tergiversações.

Para, enfim,
tudo ser repleto,
tudo ser completo.
E a medida maior se antolhar
no maior que se encerra no interior de nós.

29.4.14

Do olhar constante

Ah!
olhar presente
que derrotas a indiferença.
Olhar indolente
que congraças a beleza.
Olhar que não pode ser ausente
ou padecimentos estéreis troam,
pungentes.
Olhar quente
leito onde a carne se compraz.
Olhar,
olhar qualquer que seja,
sem que nunca seja ausente.
Pois de sua ausência
sobejam as ruínas do ser.
Tudo deve ser em seu contrário:
do olhar que se não refugia,
o mundo inteiro em sua fulguração.
Até que um olhar se verta no outro
                        e por ele reaprenda a ser.

14.4.14

O lago escondido

Um duende arcano despontou
na floresta densa.
Trazia três candeias acesas.
Uma,
no ombro direito,
apontava para a grande magnólia centrípeta.
Outra,
pendida sobre o esquerdo ombro,
refletia as lágrimas outrora vertidas.
Mas era a terceira que importava:
levou até ao grande lago matricial
onde as nuvens pousavam nos nenúfares,
as cotovias vestiam uma alvura singular,
os beijos marejados ecoavam
e toda a noite se fez claridade.
O duende foi efémero
mas deixou encravada no tempo por diante
uma rosa dos ventos vivaz.
Pois os tempos vividos seriam uma diferença
com a caução do mundo inteiro.
O duende
não deixaria de vigiar desde uma sombra,
ocultando-se em sua penumbra,
empossado figura tutelar.