11.11.15

Revolucionário farsante

O tempo é cedo
em que o povo
num justo arremedo
triunfa de novo.

O regente cansado
tem o reprovo
por crime lesado
e deixou de ser estorvo.

Exultante, o povo
traz do passado
a esperança em desbravo.

Nela reside o segredo
do pulsar coevo
e um regente em degredo.

10.11.15

Assim assim

Tintas, meias
e tintas, trocas.
Nem chove nem faz sol.
Antes pelo contrário.
E antes que seja noite
deita o borralho na lareira
nem que seja só para a veres
a crepitar.
Apanha o touro pelos cornos
mas quando ele estiver de costas.
Pesca à linha
o tubarão desdentado.
Promete pancada ao brutamontes
quando ele estiver de braço ao peito.
Diz ao chefe as boas que andas para contar
mas deixa-o virar as costas.
E nunca, por nunca
deixes de ser assim
meio assim assim,
que sempre é melhor
do que ser coisa nenhuma.
(Antes que sobre isto
também te assaltem as dúvidas).

9.11.15

Anjos furtivos

Os anjos são raros.
Escondem-se nas areias molhadas
num sono alquebrado.
Não raras vezes
fazem menção de vir à superfície:
querem espreitar o mundo lá fora.
Consta-se-lhes
que neles vêm a centelha de um tempo radioso,
para quem a penumbra é lugar pesado
como a areia que pesa sobre os anjos.
As pesadas areias molhadas
e o chumbo do sal em que estão imarscescidos
travam o desejo.
Os anjos continuam na demanda ingrata
escondidos como dantes.
E o mundo lá fora
transpira o suor que sempre teve.

4.11.15

Ouço o rumorejo do oceano:
as pálpebras deitam-se num sopor
e colheres brandas de especiarias
amotinam-se.

2.11.15

O remédio
é contar as copas
enquanto o vinho não azeda.

O lago dos sofismas

Os remos molhados
sulcam as águas paradas.
Notam-se vestígios de musgo
nas extremidades dos remos.
            Não é de ser obsoleto; é sinal de alma.
O pequeno barco
junta-se a uns nenúfares perdidos.
O arvoredo nas margens
sibila o vento fresco de norte.
            O vento que lava a alma por dentro.
Nas margens do lago
as crianças tomadas pela algazarra
nem desconfiam das sombras do mundo.
            Quantos de nós não gostaríamos
da infância imorredoira?
As tardes de domingo
volúveis e bucólicas
conseguem ser um ardil
do manto espesso que os olhos
não escondem nos dias restantes.

31.10.15

Dilema do prisioneiro

Nos pastos verdejantes antes dos montes
uma gaivota a destempo
e a vociferação das crianças imberbes.
Houvesse janelas desembainhas
e o olhar aquecido não tergiversava,
não adiava os anéis prometidos.
Um canto doce vem do entardecer
ajuramenta vozes penhoradas
que sussurram nos promontórios.
O mel colhido
sacia a sede de saber.
Os paramentos estão a preceito
e os cálices cerimoniosos prometem
o vinho maior.
A caminho das férteis searas
as flores garridas atapetaram os pés cansados
excluindo-lhes o cansaço.
Não consta que houvesse tempestades
nos mapas do tempo;
nem consta que as vontades
estivessem sitiadas por alvoradas atrasadas. 
Num módico de sensibilidade
assomaram as palavras certas,
enfim.
Só não sabia
que o consumo das almas,
em tais circunstâncias,
é o fogo derradeiro a ser visto
na tela diante dos pesares.

30.10.15

O tutor do tempo

Escolheu
a máscara de Sísifo
os óculos do astronauta
os sapatos verdes
os frutos amargos.
Traficou
ideias vetustas
portfólios empoeirados
desenhos em papel amarelo
cães infantes condenados à vadiagem.
Escolheu
incenso de flores campestres
beijos quentes de musas ao acaso
páginas de livros marcadas
medicamentos perenes para as dores.
Sabia
dos sonhos inúteis
das ambições estéreis
das alocuções exaltadas
da terra queimada.
Nem assim capitulou
às ondas tempestuosas
aos espinhos debaixo dos pés
aos punhais que queriam o sangue do peito
às noites temerárias da solidão.
Tudo se resumia
à máscara de Sísifo:
ou o cais feérico da lucidez.

28.10.15

Perspetiva

Não saberia dizer
se as vertigens eram barómetro do momento
pela batuta do desconforto
que nivela a escuridão teimosa do céu.
Não saberia dizer
se as vozes aladas que subiam no elevador
eram caução dos ventos formosos
que arrelvam a paisagem.
Não saberia dizer
se as virtudes aneladas às divindades
na perfeição de um quadro bucólico
não eram apenas um ardil.
Não saberia dizer
se a vocação dos escaninhos do pensamento
não fosse esquadrinhar o chão pelas entranhas.
Em sendo assim
tento
tento saber o que dizer
quando me demandam os embaraços.

27.10.15

Murmúrio

Um murmúrio mordia ao ouvido.
Não sabia se eram palavras mortiças
se eram estandartes esbracejando a utopia.
Um beijo furtado selou as hesitações
e do murmúrio rumorejou a alvorada macia.
Agora a manhã podia vir
a pele estava saciada.

26.10.15

Matéria outonal

Que não seja a arvore tomada pela
floresta.
Os estorninhos já não fazem ninhos
nas árvores
que vão mostrando um ocaso
outonal
e já não aquartelam folhas para os
abrigar.
Isso não significa que devemos maldizer
o outono:
alquebram-se os dias,
encurtados
numa promessa de renovação.
O outono não é desafio à existência.
Que seja do conhecimento geral
e da ciência em particular:
os estorninhos não se extinguiram
em outono
nenhum.

22.10.15

Procissão das ardósias

Não é do cálice embotado
nem do vinho azedo
ou das lágrimas defumadas.
Não é dos dos pólenes que voejam
nem da matéria canhestra
ou dos pátios lavados em poeira.
Não é pelos braços da química
nem pelas escadas descalças
ou pelas saias encardidas.
Não é o crucifixo sem cor
nem as preces ocultas
ou as divindades sem identidade.
Não é da noite interminável
nem da alvorada em sucessão
ou do rasto do dia em plantão.
Não é da febre polida
nem dos medicamentos indigentes
ou dos médicos-feiticeiros em pose sobranceira.
Não é do tempo indevido
nem do tempo ainda furtivo
ou das tágides metidas em vestes sumptuosas.
Não é de ontem
nem de agora
ou de um outrora qualquer.
Não vem afivelado pelos segredos
nem coberto por seguros impacientes
ou sequer planeta perfeito.

Não, não e não.
É tudo no seu contrário.

Correrias loucas atrás de nada;
músicas descompostas em pautas avariadas;
luzes cínicas atravessando o olhar;
livros empilhados sem saberem se são lidos;
flores em decomposição, mas belas;
divindades ausentes sem angústia;
mapas coesos de projetos ousados;
promessas assinadas a sangue fervente;
casas desenhadas com os dedos;
palavras desenhadas na mesa, com os dedos;
gentilidades obnóxias;
lucidez arrogante;
decadência em forma de tempo prometido;
bustos esmagados contra o ar soerguido;
preces imprecisas sem divindade;
mãos húmidas secas no suor quente;
lençóis gastos pelas alvoradas incessantes;
ardilosas palavras que enfeitam silêncios;
frutos doces à boca de cena;
cadeiras desorganizadas na sala vazia;
o entardecer com os olhos derretidos no mar;
a pele macia de quem tanto se quer;
as paredes lívidas que sufragam desejos;
o jantar opíparo preparado com parcimónia;
o sono inteiro sem intermitências;
o corpo gasto no cansaço, todavia jovem;
a memória avivada;
o fantástico bocejo de todos os outrora;
e o beijo na armadura do tempo que é hoje.

21.10.15

Por uma unha negra

Quase
como se todo o tempo fruísse
no nevoeiro ribeirinho
em manhã demorada.

As lentes embaciadas
conspiram,
a nitidez furtada pelos alvores matinais.
De que serve o arranjo das almas
quando as harpas desafinam
e os pássaros canoros
decaíram na rouquidão?

O estribo da paliçada
(onde os petizes esvoaçam algazarra pueril)
consome-se em sua fragilidade.
Daí por umas horas
– quando for ocaso
e o entardecer convocar a melancolia
– o fosso que trava o passo
ditará para a ata:
quase
quasemente:
pois tudo são projetos
que não chegam a desembainhar
resoluções.

20.10.15

Poema transviado

O poema congeminado:
estrofes de início
palavras incensadas no cavalete das intenções
e depois
uma convulsão de palavras imprevistas:
o poema perdendo-se de mão
ganhando diferentes demãos,
poema autónomo.
Volto ao início:
o poema não rima com as intenções
o seu cavalete, imprestável.
É quase sempre assim:
o poema ganha vida própria,
ou é do poeta
que não sabe da disciplina mental.

19.10.15

Feiticeira

O sal cinzento veste as árvores
no compósito outono sem memória.
As pessoas interrogam-se:
que origem tem o sal cinzento?
Será do mar mestiçado
das chuvas poluídas
dos peixes adoentados
de um navio à deriva
de um vento transatlântico?
O sal cinzento não tem sabor
(já o documentaram habitantes curiosos).

Por tentativa e erro
cientistas rasuraram as hipóteses
com ponto de interrogação no fim.
Estavam azoados
cientistas e gente comum
no engodo do sal cinzento
que não saliva sabor algum.

Uma feiticeira proscrita
berrou no meio da feira semanal
onde os oradores encontram pedestal:
são as lágrimas dos desafortunados,
entranham-se nas terras
e desaguam nos mares açambarcados.
Os ventos
devolvem-nas à copa das árvores
para que ninguém se esqueça
das mortificações suas e alheias.

E o povo
sem norte em que confiar
fez de conta que tinha sido um sussurro
de um pássaro migrante.
Já se habituara a olhar
sem o pasmo inaugural
para o sal cinzento.
Fazia-se constar serem cinzas,
restos tão inertes
como a decadência das ruínas.

16.10.15

Mar de outubro

Este mar
diante dos olhos
não é o mar de outubro.
Para inauguração do outono
este é um mar bastardo.
O outubro como deve ser
não é tutor de um mar poltrão
um mar assisado
um mar refresco
mar feminil
o mar fácil para qualquer marinheiro.
O outubro deixou de ser
como devia ser
e já vai algum tempo.
Talvez
seja preciso
mudar os nomes das palavras
que enfeitam o mar de outubro.

15.10.15

Centelha

Einstürzende Neubauten, “Emanuelle”, in https://www.youtube.com/watch?v=sG5GaXXfiHQ

Um copo vazio
A sombra de um gato
As mãos deitadas no rosto
O murmúrio do vento
Um chapéu vermelho
Os lábios que beijam a janela
O cais sem navios
Um piano à espera
A almofada fria
Os olhos marejados
Um peito descarnado
Um corpo cheio.
            E as costas das mãos
            que limpam as lágrimas.
As folhas de outono em despojos
O entardecer que se arrasta no tempo
O mar parado
As páginas gastas de um livro
A chuva sem finitude
Os caminhos pedonais, sem gente.
            E os lábios quentes
            que enxaguam a melancolia.
O navio naufragado
O prato com a comida fria
A noite madraça
Uma sereia pelo meio do sonho
A música que empalidece
As roupas ininteligíveis
A cidade esquizofrénica
Um avião fantasma.
            E os olhos no seu avesso
lambendo as lágrimas fúteis.
Um abraço demorado
As palavras tangentes
O milagre do pensamento
A viagem purificativa
Um ocaso sortilégio
Depois do amanhã promitente
O baloiço pueril
As coisas muito sérias.
            E um peito tórrido
            ninho das manhãs claras.
A parede branca
O cavalo desembestado
Violinos sem freio
Um quadro espelho do olhar ardente
O gelo em forma de trovão
O sorriso torrencial.
E o sol que canta
à lua que espera.