22.10.15

Procissão das ardósias

Não é do cálice embotado
nem do vinho azedo
ou das lágrimas defumadas.
Não é dos dos pólenes que voejam
nem da matéria canhestra
ou dos pátios lavados em poeira.
Não é pelos braços da química
nem pelas escadas descalças
ou pelas saias encardidas.
Não é o crucifixo sem cor
nem as preces ocultas
ou as divindades sem identidade.
Não é da noite interminável
nem da alvorada em sucessão
ou do rasto do dia em plantão.
Não é da febre polida
nem dos medicamentos indigentes
ou dos médicos-feiticeiros em pose sobranceira.
Não é do tempo indevido
nem do tempo ainda furtivo
ou das tágides metidas em vestes sumptuosas.
Não é de ontem
nem de agora
ou de um outrora qualquer.
Não vem afivelado pelos segredos
nem coberto por seguros impacientes
ou sequer planeta perfeito.

Não, não e não.
É tudo no seu contrário.

Correrias loucas atrás de nada;
músicas descompostas em pautas avariadas;
luzes cínicas atravessando o olhar;
livros empilhados sem saberem se são lidos;
flores em decomposição, mas belas;
divindades ausentes sem angústia;
mapas coesos de projetos ousados;
promessas assinadas a sangue fervente;
casas desenhadas com os dedos;
palavras desenhadas na mesa, com os dedos;
gentilidades obnóxias;
lucidez arrogante;
decadência em forma de tempo prometido;
bustos esmagados contra o ar soerguido;
preces imprecisas sem divindade;
mãos húmidas secas no suor quente;
lençóis gastos pelas alvoradas incessantes;
ardilosas palavras que enfeitam silêncios;
frutos doces à boca de cena;
cadeiras desorganizadas na sala vazia;
o entardecer com os olhos derretidos no mar;
a pele macia de quem tanto se quer;
as paredes lívidas que sufragam desejos;
o jantar opíparo preparado com parcimónia;
o sono inteiro sem intermitências;
o corpo gasto no cansaço, todavia jovem;
a memória avivada;
o fantástico bocejo de todos os outrora;
e o beijo na armadura do tempo que é hoje.

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