13.4.16

Carta na manga

Bastam-me os botões de punho
as areias movediças
na tela escura do cinema
ou a praia acobreada pelo entardecer.
Bastam-me canções fugidias
olhos entaramelados pela chuva macia
fatias brandas de um bolo
ou a colher de um anjo sobre a mesa.

Não quero
se não o património a mim vindo
as pratas embolsadas com suor
a estirpe cuidadosa de um ano solar.
Não quero
se não as espadas desafiadas
os bolsos cheios de mãos verrinosas
e, à outrance, o desdém a quem o merece.

Todavia,
se o entardecer vem embaciado
e os olhos se entaramelam mais
convoco um oráculo à mão de semear
e moo as inquietações que doem.

Todavia,
se cicatrizes por fechar houver
enquanto se verte o chá quente na chávena
desembolso a maquia precisa
encerro a polémica no fuso da indiferença.

Pois não há mangas alvares
que usurpem as horas vagas
nem excruciantes personagens
cativando saliência;

pois o que há é um império ditado
de dentro das bainhas da alma
onde os almocreves da tarouquice
não têm lugar à mesa.

12.4.16

Arrumos

Dizia:
se bem me lembro
esse tecido é pedra entrelaçada
na barragem dos alvoroços.
E, sem demora,
a indiferença cerzindo o ar em volta
como se tudo o que dissesse
pertencesse ao mutismo.

Dizia,
em redobrada demanda:
se bem me lembro
as portas azuis evocam os pássaros
que ensinavam os cantos perenes
– aqueles que contemplávamos no outono
das manhãs embebidas em orvalho.
Mas nada
nada
desatava os nós da indiferença.
Como se apenas
um monólogo se acendesse
como se apenas
uma pessoa estivesse em palco.

A tarde tingiu-se de silêncio.
Demorado silêncio
enquanto os olhos dela
pertenciam ao horizonte
e os olhos dele
medravam em agitação.

Já não disse mais nada:
levantou-se num repente
meteu-se ao caminho
(ao primeiro que apareceu).

E ela nem deu conta.

#19

Tantas rodas dentadas
tão zelosamente perfeitas
e eu,
património de deformidades.

11.4.16

#18

Dizia sentir-se deus.
Mesmo na ausência
de evangelhos, ritos,
fé e seguidores.
Era um deus ungido por
Narciso.

Causa provável

1.
Dias claros
a lentidão dos processos
beijos a rodos em incandescência
um frémito no meio do silêncio cavernoso.
E os pássaros sem gorjeio
voando na direção do firmamento.
De que foram testemunhas
para estarem de atalaia?

2.
O fojo esconde o fugitivo.
Não se sabe do que foge
a não ser
talvez
dos fantasmas acobreados
que amedrontam a noite
e tiram lugar ao sono.

3.
O mar madraço
atira algas contra o areal.
O rapaz atira um ramo seco ao cão
e aprecia a languidez do mar
retomando, de cor,
a inquietação das ondas
atestada pelos despojos da tempestade.

4.
Ao entardecer
combinam-se as juras para depois.
Descem as cortinas do dia,
do dia claro,
e juntam-se a eito
os frutos entesourados.

5.
Por dentro do luar
como se houvesse um leite retido na lua
escrevem-se estrofes dedilhadas ao acaso:
não sobra nada
no demais que se sopesa
nos braços cansados.

6.
Na noite funda
o corpo contorce-se no fastio do sono.
Deixa de sentir os sentidos
enfeitiçado pelos sonhos prometidos
por jograis que domam o almanaque.
Oxalá
fossem todas as noites
campestres paisagens com o odor da planura
um selo pintado com as cores da beleza.

7.
Os sonhos ensaiam em seu palco.
Afivelam as bainhas do porvir
incensando a lareira
onde crepitam corações desatados.
Os sonhos
não sabem de cor é o vidro
por onde espreitam os olhos.

8.4.16

Sem emenda

“O coração é homem e loucura”
Molière

O homem
estende-se no mapa
da modéstia.
Não estima os ardis da loucura
os punhais que fundos se cravam
no estio da lucidez.
Convencionado está
loucura e homem antónimos são
e o binário parece não ter remédio.
Podemos ser homens
podemos ser loucos;
o que não nos será dado alcançar
é sermos homens loucos
ou loucos homens.
Sobra o coração tiranete:
esteio incalculável da mantença necessária,
ou
fogueira onde se incensa a loucura.
Afinal
o coração não é de fiar.

7.4.16

Carrossel

Anestesiei o corpo.
Anestesiei o pensamento.
Dei-lhe três doses
(e das reforçadas)
de indiferença às desandas do mundo.
Prefiro que o mundo lá fora
seja uma exterioridade
um corpo forasteiro.
Nesta forma de hibernação
seguro as pétalas dos malmequeres
na curvatura das mãos.
Deixo-me guiar até ao mar
respiro a sua convulsão infinita.
Faço minha força
a dos hélices do avião de grande porte.
Respiro.
Respiro, devagar.
A noite não se demora.
Pode ser que consiga anestesiar
o tempo.

6.4.16

#17

“A vida acontece aos outros”:
espelho salgado
seis diamantes
(escondidos)
na fenda.
Não é ouro que me aconteça.

Pas de deux

A vingança da borboleta
que se fez larva
e se botou formosura.

O esteio da barca
roubado a uma árvore
e se levitou nas águas.

A nuvem demorada
abraçada à evaporação
e se devolveu à terra, chuva.

O rosto macilento
evocando maçãs extemporâneas
e se deitou no leito de morte.

Um beijo que arde nos lábios
carne quente sopro de desejo
e se arrefece nos lençóis desarrumados.

Um infante balbuciante
química congeminada
e se fez fiador do desamor.

As facas que se empunham
terçadas contra a romagem aos túmulos
e se fizeram cortantes na carne húmida.

As palavras tingidas
no dobrão das tintas fumegantes
e se fizeram cores de um vulcão.

As preces tementes
num medo castrador
e se transfiguram em mortuário sedativo.

A terra pesada
na inércia dos dias sem contagem
e um poço em que gravitam nascituros.

5.4.16

Aritmética

Dois mais dois
seria a soma mercê da nossa
vontade.
Bastava que jurássemos
que tais eram números inteiros
e que os algoritmos de que fomos
arquitetos
tivessem a lhaneza de obra-prima.
Dois mais dois
daria a soma que quiséssemos
nem que o número embebido
na soma
tivesse arte de se transfigurar
à mercê dos dias desiguais.
Não interessava
tirar a prova dos nove;
éramos tutores da aritmética
deuses únicos
com o sortilégio dos números
entre o perfume das mãos.

4.4.16

Roma

Tirando as pedras áridas
e o canto dos corvos
não podem os sentidos atraiçoar
o enamoramento da cidade.

31.3.16

Dos olhos famintos

De onde vêm uns olhos sôfregos
vulcões archotes
incendiários da desrazão?
De onde vêm:
talvez de um teatro sem paredes
que se abraça ao vento que transige;
ou
talvez
do mundo açambarcado pela vontade sem freio.
Uns olhos sagazes
que desaguam
na furiosa vitualha de conhecimento.
Anseiam noites de insónia:
temem que é curto o tempo
que ampara o conhecimento.
Olhos tais            
muletas vitais
não se encontram ao acaso.
Olhos tais,
profusamente letrados
alegremente radiosos
pintores das cores à volta,
estão dispostos a tirocínio.

30.3.16

#16

Escrevi o meu nome
a tinta da china
            (jurando alguma eternidade).
Não contei
com a fragilidade do pergaminho.

Preces inteiras

O lenço amarrotado
reserva as lágrimas evaporadas.
De olhos postos aos céus
ensaia um arrazoado sem sentido
promessas solenes de metamorfose
recolhe nas mãos o império dos ventos
deixa para os tempos imemoriais
o sal gasto.

Incessantes
as gotas da chuva invadem a janela
e a humidade toma conta dos ossos.
Junta palavras ao acaso
num papel tingido pela dissipação
sem conseguir formar frases inteiras.
Maltrata a folha rabiscada
vai à janela inspecionar a chuva intempestiva
para gáudio dos cães vadios.
Conta histórias mentalmente
histórias ajuramentadas na poeira da desmemória
histórias empolgantes e falazes
ou as histórias mais difíceis de congeminar
– as histórias benzidas pela lhaneza.

Já não sabia onde eram os pontos cardeais
as ameias do castelo
nem se era noite ou dia
ou se os sapatos estavam bem-postos
nem se as vozes em surdina tinham eco.
Só sabia
que preces algumas
desatavam o nó górdio
que atava a noite.

Antes fosse sardónico
barão altivo num assertivo esgar
na militância de um cinismo ímpar:
ao menos
as consumições não tinham alvorada
e o entardecer aparecia de mão dada
com a aurora a seguir.

Todavia
não havia preces à venda
com tal desiderato.

29.3.16

Meia torrada

Custódia da alma
num penhor imenso
sem um esgar de calma
ensinar intenso.

Não saber de vivalma
nem curar de dores outras
deitando na mão palma
silenciar palestras.

Dantes, num promontório
julgara ser um ancião
dom de adivinhatório
agiota como um sultão.

Enganara-me no feitio
e em álgidos mares azuis
deixei-me na borda do estio
numa moldura que possuis.

28.3.16

Credenciais

Salvamos o que restava do dia.

Metemos as pás aos ombros
extorquimos todo o sal das paredes.
O mapa sem diâmetro
era um assoreado enigma.
A soleira da porta do templo
albergava a rosa-dos-ventos
suplente.
Tirámos as medidas
ao suor do rosto
à pele quente que congraçava o sol agoirento
ao túnel ausente de luz.
Não virámos costas à epopeia
exigível.

Acabámos a salvar o resto do dia.
Metemos as mãos nos rostos
veio fuligem esfarelada nos dedos.
Não foi em vão:
o mapa tomara cores de empréstimo
e o templo deixara de estar em falta.
Fomos domadores dos monstros medonhos
adestrados debaixo dos braços cansados.

Salvámos o resto dos dias.
Alardeávamos pundonor
um módico de audácia;
uma tresloucada coragem
debaixo das unhas.
Não sabíamos ao certo o préstimo
de tudo isto.

Só sabíamos:
salvámos o resto dos dias.

#15

A dança é um impropério:
dois pés maiores que o corpo,
três doses de preconceito
e chegamos à desqualificação.

26.3.16

#14

Queria andar à frente do tempo
esquecendo a janela empoeirada.
Um murmúrio avisou-o.
A tempo.