17.4.16

Sobre a planura da mesa onde se estendem os mapas

Três são as patas do gato no chão,
o malabarista.
O canto do tenor ouve-se em surdina
e as palmas guardam-se para a véspera.
Dantes
quando tudo era límpido
as mulheres não assobiavam
e ninguém coabitava em regaço atávico.
Os gatos miam alto
reféns de seu cio
ao passo que os comboios
gorjeiam em cima dos carris
os murmúrios de que não há penhor.
Dantes
só tínhamos morangos sedosos
livros
com páginas amarelecidas e letras grosseiras
sapatos exasperantes
e a lividez do inverno intransigente.
Os tapetes cardados à entrada das casas
cuidavam dos forasteiros
no desvelo de hóspedes impantes.
As pás dos hélices
já traziam cura para o sal
e bênção suprema do bispo da ordenança
(por interposta pessoa: dom divino).
Dantes
os ministros da servidão
escondiam-se no seu pudor
sem cartas trunfadas para jogar.
As rosáceas extravagantes
prendiam-se à lapela dos cavalheiros
mm linguagem cifrada do deboche.
Pois dantes
o deboche era proibido
e só se fazia sob a proteção das trevas.
Não havia penumbra sobre as cores
não havia grandes aceleradores do tempo
nem um mapa que ampliasse o granulado do olhar
ou uma lâmpada duradoura em intenso incensar.
Dantes era dantes
e agora é sinal que saltamos as barreiras do tempo
sem mortificação da nostalgia.
Dantes
não importa.
Os dentes cerrados elaboram um clamor
pela corrente hercúlea onde se abraça
o tempo das mãos
onde os amantes se entrelaçam no sexo forte
sem peias
onde as palavras amáveis são as que forem queridas
os rios exibem um espelho de água sem gestos
e as pinhas caídas ao chão
guardam os diamantes que desabrocham
no amplexo dos sentimentos puros.
Do dantes não sobram imagens.
Não há museus.
Os dentes entronizados diamantes
mordem o tempo que importa
emprestam-lhe a espessura precisa
e um murmúrio poético soergue-se
derrotando as baias da imperícia.
Agora
não se fala dantes.
Agora
é império
do agora.

16.4.16

#21

Flores desleixadas
numa jarra envelhecida
e o sol luminoso, lá fora.

15.4.16

Solidão ânimo

Paredes fingidas
aderem à pele suada.
O suor escorreito
dança nos braços trespassados
pela força.
Há uma evocação persistente
aos dias de mel
ao sargaço em restolho no areal
aos pequenos seixos negros
despojados pelo mar.
O velho passeia a solidão
enquanto o mar se faz à vida.
Dir-se-ia
indiferente, o mar;
mas o mar
talvez generoso
propõe-se adotar o velho
livrá-lo da solidão que o dilacera.
Sem saber porquê
o velho sua
por dentro do suor das mãos.
As paredes que o conduzem
não deixam de o prevenir.
As paredes
transpirando suor pelo velho
sussurram os preceitos da solidão.
Convencem o velho
que a solidão é sua aliada.
E que o mar que se insinua
oferecendo-se leito florido
é um poço sem fundo
anjo disfarçado.
O velho
continuou a passear a solidão.
Até que um dia
a solidão o deixou sem amparo.

14.4.16

Meta

O inventário arrefece ao frio
repousa nos ombros arqueados
da memória.
No epicentro
sombras dúcteis como travões
evocam a soberania espartilhada.
Não há nada que faça comover
nem as lágrimas furtivas
do pequeno cão órfão
nem os prantos imorredoiros das viúvas.
Digam o que disserem
os eu pavoneados
deixarei as coisas todas
postecipadas.

13.4.16

#20

A tesoura no pano
como carne rasgada
por punhal fundo.
E o sangue à mostra.

Carta na manga

Bastam-me os botões de punho
as areias movediças
na tela escura do cinema
ou a praia acobreada pelo entardecer.
Bastam-me canções fugidias
olhos entaramelados pela chuva macia
fatias brandas de um bolo
ou a colher de um anjo sobre a mesa.

Não quero
se não o património a mim vindo
as pratas embolsadas com suor
a estirpe cuidadosa de um ano solar.
Não quero
se não as espadas desafiadas
os bolsos cheios de mãos verrinosas
e, à outrance, o desdém a quem o merece.

Todavia,
se o entardecer vem embaciado
e os olhos se entaramelam mais
convoco um oráculo à mão de semear
e moo as inquietações que doem.

Todavia,
se cicatrizes por fechar houver
enquanto se verte o chá quente na chávena
desembolso a maquia precisa
encerro a polémica no fuso da indiferença.

Pois não há mangas alvares
que usurpem as horas vagas
nem excruciantes personagens
cativando saliência;

pois o que há é um império ditado
de dentro das bainhas da alma
onde os almocreves da tarouquice
não têm lugar à mesa.

12.4.16

Arrumos

Dizia:
se bem me lembro
esse tecido é pedra entrelaçada
na barragem dos alvoroços.
E, sem demora,
a indiferença cerzindo o ar em volta
como se tudo o que dissesse
pertencesse ao mutismo.

Dizia,
em redobrada demanda:
se bem me lembro
as portas azuis evocam os pássaros
que ensinavam os cantos perenes
– aqueles que contemplávamos no outono
das manhãs embebidas em orvalho.
Mas nada
nada
desatava os nós da indiferença.
Como se apenas
um monólogo se acendesse
como se apenas
uma pessoa estivesse em palco.

A tarde tingiu-se de silêncio.
Demorado silêncio
enquanto os olhos dela
pertenciam ao horizonte
e os olhos dele
medravam em agitação.

Já não disse mais nada:
levantou-se num repente
meteu-se ao caminho
(ao primeiro que apareceu).

E ela nem deu conta.

#19

Tantas rodas dentadas
tão zelosamente perfeitas
e eu,
património de deformidades.

11.4.16

#18

Dizia sentir-se deus.
Mesmo na ausência
de evangelhos, ritos,
fé e seguidores.
Era um deus ungido por
Narciso.

Causa provável

1.
Dias claros
a lentidão dos processos
beijos a rodos em incandescência
um frémito no meio do silêncio cavernoso.
E os pássaros sem gorjeio
voando na direção do firmamento.
De que foram testemunhas
para estarem de atalaia?

2.
O fojo esconde o fugitivo.
Não se sabe do que foge
a não ser
talvez
dos fantasmas acobreados
que amedrontam a noite
e tiram lugar ao sono.

3.
O mar madraço
atira algas contra o areal.
O rapaz atira um ramo seco ao cão
e aprecia a languidez do mar
retomando, de cor,
a inquietação das ondas
atestada pelos despojos da tempestade.

4.
Ao entardecer
combinam-se as juras para depois.
Descem as cortinas do dia,
do dia claro,
e juntam-se a eito
os frutos entesourados.

5.
Por dentro do luar
como se houvesse um leite retido na lua
escrevem-se estrofes dedilhadas ao acaso:
não sobra nada
no demais que se sopesa
nos braços cansados.

6.
Na noite funda
o corpo contorce-se no fastio do sono.
Deixa de sentir os sentidos
enfeitiçado pelos sonhos prometidos
por jograis que domam o almanaque.
Oxalá
fossem todas as noites
campestres paisagens com o odor da planura
um selo pintado com as cores da beleza.

7.
Os sonhos ensaiam em seu palco.
Afivelam as bainhas do porvir
incensando a lareira
onde crepitam corações desatados.
Os sonhos
não sabem de cor é o vidro
por onde espreitam os olhos.

8.4.16

Sem emenda

“O coração é homem e loucura”
Molière

O homem
estende-se no mapa
da modéstia.
Não estima os ardis da loucura
os punhais que fundos se cravam
no estio da lucidez.
Convencionado está
loucura e homem antónimos são
e o binário parece não ter remédio.
Podemos ser homens
podemos ser loucos;
o que não nos será dado alcançar
é sermos homens loucos
ou loucos homens.
Sobra o coração tiranete:
esteio incalculável da mantença necessária,
ou
fogueira onde se incensa a loucura.
Afinal
o coração não é de fiar.

7.4.16

Carrossel

Anestesiei o corpo.
Anestesiei o pensamento.
Dei-lhe três doses
(e das reforçadas)
de indiferença às desandas do mundo.
Prefiro que o mundo lá fora
seja uma exterioridade
um corpo forasteiro.
Nesta forma de hibernação
seguro as pétalas dos malmequeres
na curvatura das mãos.
Deixo-me guiar até ao mar
respiro a sua convulsão infinita.
Faço minha força
a dos hélices do avião de grande porte.
Respiro.
Respiro, devagar.
A noite não se demora.
Pode ser que consiga anestesiar
o tempo.

6.4.16

#17

“A vida acontece aos outros”:
espelho salgado
seis diamantes
(escondidos)
na fenda.
Não é ouro que me aconteça.

Pas de deux

A vingança da borboleta
que se fez larva
e se botou formosura.

O esteio da barca
roubado a uma árvore
e se levitou nas águas.

A nuvem demorada
abraçada à evaporação
e se devolveu à terra, chuva.

O rosto macilento
evocando maçãs extemporâneas
e se deitou no leito de morte.

Um beijo que arde nos lábios
carne quente sopro de desejo
e se arrefece nos lençóis desarrumados.

Um infante balbuciante
química congeminada
e se fez fiador do desamor.

As facas que se empunham
terçadas contra a romagem aos túmulos
e se fizeram cortantes na carne húmida.

As palavras tingidas
no dobrão das tintas fumegantes
e se fizeram cores de um vulcão.

As preces tementes
num medo castrador
e se transfiguram em mortuário sedativo.

A terra pesada
na inércia dos dias sem contagem
e um poço em que gravitam nascituros.

5.4.16

Aritmética

Dois mais dois
seria a soma mercê da nossa
vontade.
Bastava que jurássemos
que tais eram números inteiros
e que os algoritmos de que fomos
arquitetos
tivessem a lhaneza de obra-prima.
Dois mais dois
daria a soma que quiséssemos
nem que o número embebido
na soma
tivesse arte de se transfigurar
à mercê dos dias desiguais.
Não interessava
tirar a prova dos nove;
éramos tutores da aritmética
deuses únicos
com o sortilégio dos números
entre o perfume das mãos.

4.4.16

Roma

Tirando as pedras áridas
e o canto dos corvos
não podem os sentidos atraiçoar
o enamoramento da cidade.

31.3.16

Dos olhos famintos

De onde vêm uns olhos sôfregos
vulcões archotes
incendiários da desrazão?
De onde vêm:
talvez de um teatro sem paredes
que se abraça ao vento que transige;
ou
talvez
do mundo açambarcado pela vontade sem freio.
Uns olhos sagazes
que desaguam
na furiosa vitualha de conhecimento.
Anseiam noites de insónia:
temem que é curto o tempo
que ampara o conhecimento.
Olhos tais            
muletas vitais
não se encontram ao acaso.
Olhos tais,
profusamente letrados
alegremente radiosos
pintores das cores à volta,
estão dispostos a tirocínio.

30.3.16

#16

Escrevi o meu nome
a tinta da china
            (jurando alguma eternidade).
Não contei
com a fragilidade do pergaminho.