15.12.16

Manual de instruções

Sabia
que as escadas adulteravam
a noite.
Que as mãos atadas
eram vistoria
a destempo.
Que os beijos prometidos
rimavam com areias
movediças.
Sabia
que o velho cais
esperava.
Que os ulmeiros desmaiados
desconfiavam do tempo
gasto.
Que as batinas embuçadas
aperfeiçoavam os ardis
militantes.
Sabia
que as rotundas podiam ser
ao contrário.
Que o poente
era um rio
sem horizonte.
Que as árvores outonais
regressavam à opulência
matinal.
Sabia
o que os livros emprestavam
ao olhar.
Que as marés desajeitadas
compunham as costuras
da alma.
Que um triunvirato entronizado
bebia até os sentidos ficarem
embotados.
Sabia
que essa era a melhor
lucidez.
Por saber
que em tais preparos
nada era o saber.

14.12.16

#109

Se não fossem os sonhos
o que seria de nós?
(Levanto o véu do sonho
e sondo matéria tangível.)

A desentronização dos medos


Absorvo a luz lenticular do relâmpago
em duas levas que se sucedem
no estertor da trovoada.
Reponho os predicados da alma no lugar
não vão os demónios tomar-me de assalto.

Já não tenho medo.
Não tenho medo da fuligem
que açambarca a noite comprida.
Não tenho medo das vozes ciciadas
nos intervalos das páginas.
À altura dos meus pesares
soerguem-se velas retesadas
que sulcam a névoa por diante.
As valas são ermos sem serventia
deslugares que não encontram mapa.

Continuo sem medo
na alvorada baça que tira estima ao dia.
Nem os medos de antanho
os que sonhos povoavam
ganham lugar no deserto que ganhou.
Atiro-me como cão esfaimado
às deliciosas fontes do conhecimento
à volúpia das artes
dos lugares dantes não visitados
às páginas em desassossego
à matéria combustível que acende o tempo
à perene mansidão do olhar.

Não me importunam
as fazendas inoportunas
as águas impróprias
os mapas obscurecidos.

Já não tenho medo.
É tão simples quanto isso.

13.12.16

#108

As pontes urdidas
nas margens desatadas
serão precipícios do outro lado?

Invasão

Espasmos fermentam
nos nós do cérebro
um carregamento de cultura desliza na tela
à medida que se imagina o poema em alemão.
As cruzes do vento vadio
invadem as esquinas ardilosas das ruas
estão de atalaia aos mastins
que se passeiam, disfarçados.
Colhem as sementes da noite
mendigos curvados ao frio epistolar
sem darem conta que há contas a acertar
no diadema guardado na pedra tumular.
Os ascetas cínicos fingem que cantam
fingem que sentem os fingimentos venais
sem olharem aos cordéis de antanho
sem se importarem com as marés levantadas.
Os rochedos proeminentes em forma imperatriz
levantam-se do chão turgido pelo nevoeiro
gritando em forma de vento
consumições evaporadas nas nuvens torrenciais.
Um murmúrio de algures
atravessado nas ruas claras
cristaliza os medos rombos
das furiosas damas recusadas.
E, depois do lauto manjar,
pitonisas e escandalosos servidores do reino
oferecem seus préstimos malsãos
à espera que a luz do dia não seja timorata.
Os maus modos servem-se em danças destiladas
com maus costumes invasores das boas almas
sem sobrar um vestígio de decência
nos alvores de nova decência desensinada.
Os lobos e as outras más bestas
levantam âncora e suplicam poupança
destes novos preparos que os afligem
no solene anúncio de um lugar reinventado.
Desaprovados os ardis em grosso compêndio
à tona apenas os genuínos sentires
redesenhando as bissetrizes de tudo
em identidade com a nova maré que se pôs.

12.12.16

Círculos concêntricos

Caminhava em círculos. 
Com o jornal 
como anteparo do braço direito
(não fossem escapulir as notícias do dia). 
Uma só nuvem tingindo o céu
e o sol desembaciado
enquanto a paisagem se fazia,
paisagem. 

Os círculos andados
não seriam andadura recomendada,
não fossem enquistados pelos passos meus. 

Num momento irrepreensível
(parecia uma epifania,
mas não podia
atenta a minha descrença)
uma centelha caiu dos céus
aterrando à frente dos meus sapatos. 
Abriu-se uma fenda medonha,
funda
exalando um cheiro pestífero. 
Certamente,
convite
para desimpedir os círculos demandados
na antecâmara de uma possível mensagem
subliminarmente deificada
(não fosse a impossibilidade
vertida pelas descrenças). 

Percebi tudo. 
Não podia continuar a caminhar em círculos. 
As ruminações
pertencem a bestas de outro jaez. 

#107

Too many threes.
Too many trees. 
Treating threads
on trivial thrones. 

10.12.16

Fácil

Não vai o verso fácil
no dorso da alma.
Nem que nuvens embaciem o céu
não esmaecem as cores
que são o corpo da vida
um copo cheio de águas cheias.
O verso fácil
devolve a intensidade
em volteios que hasteiam púlpitos
à medida que as cores emergem
veementes.
E a vida fica como o verso,
fácil.

8.12.16

Contrarrelógio

Corria a aurora para fora do tempo
e as águas lúcidas esbracejavam
entre as margens alcantiladas
e os pêssegos ainda verdes
espreitando nas ramagens.
Corriam céleres pessoas
contra o muro da manhã
mostrando os olhos estremunhados
como quem sussurra a canseira perene.
Corrias desde a casa da partida
sem saberes onde era a meta
sem saberes a serventia da corrida.
Corriam de braço dado
contra a fúria dos elementos
em coreografias lídimas
em protesto contra obnóxios patriarcas.
Corria a espuma das leituras
das leituras ao acaso
concorrendo para os acasos
que esperavam lugar.
Corria de peito aberto
três passos a eito
a eira derrotada na pele da perseverança
contra a vergonha embainhada.
Corria em furiosa demanda
aos portos de abrigo
aos postigos decadentes
às fuças de beócios reincidentes
contra as brumas da memória
contra os esteios verticais e frágeis
contra os demenciais cantos sombrios
às mesas onde se apostavam contratempos.
Corria o entardecer sem dar conta
e dispensava os escândalos infatigáveis
o lodo por todos os lados
a verborreia insana dos gongóricos
os apedeutas com aspiração a eruditos.
Ficava com o entardecer
e retinha dentro das mãos
o sortilégio que vinha das suas margens.

7.12.16

#106

Tira à espada a mão
cinta desfeita de bélicos propósitos
e aconchega-te na pueril pele
que da criança sobeja. 

Alfândega

Dá-me uma medida de desrazão
um açoite nos predicamentos da alma
sal duro para temperar a água
uma venda para os olhos
(no dealbar da encruzilhada)
ruins costuras para tudo descoser
o crepuscular desalinhavo
um prolegómeno armilar
(dentro de moldura estilhaçada)
um gesto açambarcado na lua baça
os olhos marejados pela melancolia vazia
duas esteiras pregadas ao chão molhado. 

E dá-me
depois 
a iridescência sonhada em volteios noturnos
o suave declive dos teus cabelos
o sortilégio da tua voz macia
o peito onde me deito
as estrelas desembainhadas das tuas mãos
o calor do teu corpo
o refúgio dos teus braços como castelos
a desenfreada correria pela música
os palcos dantes sonhados e agora tangíveis
o lustro da noite armada nos nossos braços. 

Dá-me o que és
um mar imenso e sem fundo
páginas arrancadas a ferros vadios
o sol campestre e sem igual
enquanto de mim
recolhes os parcos haveres 
que te forem serventia. 

6.12.16

Medos supérfluos

Metido no torniquete das ideias
sem espaço para dar aroma à respiração
prometeu jornadas diferentes
uma desagonia dos dias pungentes
se uma divindade sobre ele deitasse o olhar. 

A acontecer
só acontecimentos exemplares
seriam de esperar. 

Numa reviravolta do pensamento rebelde
(maldito sejas,
impenitente capataz – protestou)
sentiu uma crisálida sobre o ombro. 
Sussurrava o leitoso rio das incógnitas
uma equação interminável
e sem resultado aprazado. 

Tentou decifrar a raiz quadrada do enigma,
não fosse em vão o cuidado da crisálida. 
Podia a divindade atenta
desaprovar a má conduta
o frio olhar desligado da bondade
os atos sem arrependimento
os rancores que desassossegavam
o pretérito desorgulho. 
Podia a divindade,
metendo calibre no anátema do juízo,
julgar que o atual elogio
não compensava a turbulência de outrora. 
E, como punição,
decretasse
oito tábuas rasas de castigos dolorosos
sem garantia de serem a paga toda
pelos desmandos. 

Virou as ideias do avesso,
não fosse uma divindade vingativa
tirar as medidas do seu desassossego. 

Tão depressa
não partiriam dele preces. 

(A apoplexia não deixou ouvir
o sussurro da crisálida 
até ao fim. 
Terá dito que as divindades
são um espelho baço onde medram 
ilusões,
apenas ilusões. 
Perdeu uma oportunidade
para sepultar os sobressaltos sobrantes.)

#105

Declaração. 
Declara ação. 
De clara ação. 

5.12.16

#104

Tiro de pólvora seca
(ou cão que ladra e não morde)
bazófia de pavio curto
– e chega de lugares-comuns.

Defenestração

Intuía o sindicar dos passos atravessados
sem demanda minha
ou sequer postulados simétricos,
o manto da legitimidade.
Devia pétalas infundadas ao devir
(talvez)
como se o anoitecer viesse prostrado
entre limbos nas mãos de demónios.
Havia pontes abertas
janelas sem vidros
um céu sem nuvens
o mar surpreendentemente estacionário;
e, todavia,
na representação dos coiotes diligentes
formosas molduras dos valores
(sem que ninguém perguntasse pelos valores)
rumavam às fotografias órfãs.
De nada valeria a sindicância.
Não havia nada para sindicar.
(Por muitas as desencomendas
destinadas aos vulcões fumegantes
onde consumições variadas teriam
defenestração.)

4.12.16

#103

Fecho os olhos:
anéis do avesso em dedos frágeis
e o musgo deitado no cais antigo.

Às escondidas

Às escondidas
na sombra da lua
à escolha da maré. 
No silêncio
avesso do dia
no sopesar das palavras. 
Na penumbra
tirando à sorte
os acasos escolhidos.
Na incerteza
olhos raiados de mar
à bravura de uma decisão.
Às escuras
sem centelha por perto
adivinhando as paredes claras.

3.12.16

#102

Na haste da noite sozinha
um braço atrevido
dança uma rua sem gente. 

2.12.16

Dezembro

Haja dezembro
e todos os provérbios inventados
enquanto a chuva molha as ruas
e pessoas pesarosas
gemem pelo estio distante.

Haja dezembro
na sua baça luz
no rogo das crianças pelo natal demorado
nas castanhas que boicotam o frio
nos frutos secos
(um estalido a preceito na boca sedenta).

Haja dezembro
exílios dentro de cobertores
medo das ruas desalinhadas pela tempestade
pessoas sem réditos que rapam os fundilhos
para estarem à altura do Natal.

Haja dezembro
e a espera por um janeiro
mostruário de um sol generoso.