5.5.17

Lassidão

Do meridiano hasteado
desvendei a solidão que fora cifrada
antes que o entardecer estorvasse a claridade. 

O peso do mundo
não se joga contra os olhos vertidos
na finitude de um mapa. 
O peso do mundo
por mais que seja pesado
não arqueia o corpo leve
não o embaraça na estreiteza
de um rio assoreado. 

Virtudes em contumácia
perdem-se no labirinto baço
remexendo
com as mãos gastas
nas passagens de nível
escondendo segredos vitais
segredos viris 
bolçados por varões em pose monárquica. 

E depois
à sobremesa
entre os copos rejeitados
e o fumo deslaçado
tiram-se à sorte os penhorados
ao fado das divindades estultas
as seráficas sereias que ateiam fogos
por dentro da água tumultuosa
à escala de um mar reduzido a um aquário. 

Amedrontados
os parceiros exclamam:
vamos embora
vamos daqui para fora!
e enfeitam o celibato involuntário
com um aceno de mão codificado
no presságio de um amanhã exaltado
nas improváveis teias vãs
de proezas simuladas. 

A floresta enche-se de elfos
e o sono
pode tomar o seu lugar. 

4.5.17

Sábios

Sábios conselhos.
A matéria fungível
dos copos vidrados
por campos em transparente vicejar.

Sábios dizeres.
A matéria consumível
dos pássaros tomados
por cantos de claro ciciar.

Sábios saberes
A matéria tangível
dos amantes abraçados
por ruínas que espigam um latejar.

#193

O navio-silhueta
prescreve o dia insolente
confirmando a litania das velhas. 

3.5.17

Vitral

À razão
dos penhores desarbitrados
no emaranhado das algas evanescentes
componho arestas vivas nas margens
desocupando os diademas.
Os vultos
trazem a tiracolo uma coreografia.
Armazéns desabitados
emprestam refúgio noturno
contra o marasmo das palavras repetidas
contra as profundezas lamacentas
de onde não se extrai riqueza.
Sim
noto o clamor
quando o ruído emparedado dos banais
chama pela inspirada verbena.
Cingidos ao alto
pelo alto que se tenha
os desamores são mote alheio.
À razão
dos diademas que trouxe a mim.

2.5.17

Cafeinado

Às folhas caducas
pedi de empréstimo
a estola dos campos floridos
atirando para um poço sem fundo
o medo que incensa as veias

Diria
em solene mandamento
da antítese do saber
que as ondas repetidas que esvaziam a maré 
são um opúsculo inteiro
na singularidade de um entardecer
a destempo. 

Repetem-se os uivos dos lobos
que tomam conta de paisagens lunares. 
O desassossego já não chega,
não hipoteca as palavras adocicadas
e os demónios aninham-se numa toca mendaz
de onde apedrejam sua estultícia. 

Ah!
Agora sei-me inteiro
penhor do vento fértil
fautor das sentidas congeminações
na eira dourada sentado
à espera
que aconteça o luar diurno
e que os braços se engravatem a mim
no mais doce beijo que tenho. 
Sobram os ossos gastos
os ossos despojados por sua inutilidade. 
E eu canto as estrofes não rimadas
os rios indomáveis
as paredes sem alvura
a coutada sem presas nem caçadores
os olhos tremeluzentes vertidos
na paisagem capaz
as montanhas que não me derrotam
e desafio os lobos em seus uivos. 

Não deito as mãos aos céus
por ausentes as divindades
nem desenho preces laudatórias
pois só de mim sou credor. 

Insubmissão

Na medula mais funda
nas arcadas do pensamento
entre duas páginas noturnas
com os olhos deitados na água
sem remorso do remorso
nem de atalaia ao visceral desatino
à espera do lugar adestrado
à espera de haver sentido
sem o embuço do desrazoável
nem o freio do sobressalto.

1.5.17

#192

Não dirás de tua decadência
(nem das ruínas que com ela rimam)
uma só palavra,
deixando-a na solidão do seu tear. 

30.4.17

Gramatical

Saltar uma linha
sem lesar o texto
as palavras ainda integras
na inteireza do que projetam. 
Sábia hermenêutica 
sem desarranjar o texto
o idioma reinventado
para não gastar as palavras,
para as dizer em coisas diferentes
para servirem de estalão original. 

29.4.17

Poeta-fantasma

As mãos cheias
penhoras das nozes maduras
e o poeta-fantasma
esquece uma palavra axial
deixando o poema órfão.
O olhar prende-se
(como se houvesse íman)
ao cisne cansado
que dança devagar
nas águas paradas.
O reflexo do sol tardio
desenha as sombras
onde o poeta-fantasma
encontra refúgio.

28.4.17

Fait accompli

Um fio escasso
entre os nós do outono
e o mar altivo.

A posteridade esquecida
no umbral desaproveitado.

E nós
os penhores da graça do mundo
capazes dos sortilégios inteiros
na indiferença do que foi gasto.

As mãos levantam a parede
e debaixo do musgo envelhecido
reveem os mandamentos avoengos.

A literatura
abundante
conserva os ramos infantes.

Daqui ao outono
no cais vazio
e sem cargueiros na maré
sobejam as trovoadas anciãs.

27.4.17

Parafernália 

Quero mais, quero mais!
Inúmeras possibilidades:
o menino e a sobremesa
o lobo e as presas
o sal e o mar
o vadio e a insubmissão
o poltrão e o sono
o cleptomaníaco e o alheio
a chuva e as nuvens
o corpo e o alimento
(de toda a sorte)
o poeta e a música
o corpo e a indumentária
o pé e o sapato
a conferência e a coerência
a prova e a contraprova
a estátua e a personalidade
a lua e o sortilégio
a inspiração e o vinho
as mãos e outras mãos
a razão e o compasso
o tear e a renúncia
o inverno e a neve
a ninfomaníaca
a arte e o acaso
o sexo e o sexo
o miradouro e as asas
o jogo e a miragem
a cultura e os olhos
a parede e a janela
a janela e a alvorada
a alvorada e o desejo
o desejo e a transcendência
a transcendência e o mar
o mar e a distância
a distância e o pedido
o pedido e a humildade
a humildade e a previsão
a previsão e o passado
o passado e o oráculo
o oráculo e a penumbra
a penumbra e os sonhos
os sonhos e o resto.

#191

Mandaram-me foder.
Versado no teor
(e seu zelador)
cuidei
com diligência e razoável obediência
de corresponder à ordenança.

26.4.17

#190

Indulgência rarefeita
em janela desabotoada
arranjou sete vidas
em paga proporcional.

Sismógrafo 

Pretende-se que as bermas do vulcão
sejam ancoradouros
dos prometidos ao precipício. 
Não tenho
entre as certezas assim configuradas
que os tremores que remexem alicerces
sejam sinais de coisa alguma. 
Dou-me ao vento que trespassa a carne
em convulsões sem apresto
no invólucro frágil onde se acomete
o corpo. 
Tudo treme
os olhos amaciam-se por dentro do sangue.
Insinua-se a rendição
que pesa sobre o peso do corpo
por sua vez
arqueado sobre o jugo implacável do tempo
acareado contra o penhor diametral
da luz soturna. 
E deixo-me
sob o olvido imperturbável
sentado no alpendre estimado
à espera do fim do abalo telúrico. 
Pedindo meças
ao sismógrafo
que tira as medidas que me dão
a medida que é aferição minha. 

25.4.17

#189

Caros concidadãos:
esbracejem
desde o leito
da indiferença.

24.4.17

Metafísica desossada

Os deuses
no tempo em que os havia
andavam nus
com as 
(a julgar pelos quadros dos pintores clássicos)
derruídas protuberâncias em exposição
e ninguém protestava contra a indecência. 
Dir-se-ia
(se a filosofia não atraiçoa)
que aos deuses tudo era caucionado
até a impudicícia da nudez
até dedos erguidos de deus para deus
pressagiando terrífico gosto pelo sexo igual. 
Ou então
a vergonha de hoje
quando a nudez dos corpos
merece agravo do pudor instituído
é uma cortina que esconde
pessoais agravos que fermentam
mal resolvidas interiores demandas
(em linguagem decifrada:
as pessoas
têm ocultada procura por corpos outros
por pudor dos corpos próprios).
Ou então
os deuses são uma versão disfarçada
dos terrenos homens,
sofisticação ardilosa da imaginação
projetada numa tela
em estátuas mirificas
em tetos de capelas projetados
na infértil imaginação
de gente despovoada de critério próprio.
Em falta está
a imperativa falta de humildade
para as pessoas se considerarem
deusas de si mesmas.
O que está em falta
é um deus privativo em cada indivíduo. 
Ou então
decretar-se
de uma vez por todas
a falência dos deuses
e da própria ideia de deus. 

#188

Um tempero imoderado
é tempero loquaz
(desmentida a hipótese da antítese).