15.5.17

Farsa

Os ossos não cansados,
cais que esconde tempestades
e os sussurros sem medo
libertam-se dos estorvos mundanos. 
A obliteração da noite desarvorada
amplifica a coragem
um certo devir adivinhado. 
Sorvo o dia em talhadas generosas
sabendo que outros, muitos
se servem
no porfiar dos amanhãs que esperam. 
Não:
não tenho pressa
nem deixo que a pressa me sitie
contra paredes exíguas
refém de uma vontade fina
refém dos trágicos oráculos
orquestrados em mãos viperinas. 
Chego-me à orla do rio
onde o denso nevoeiro cicia impropérios
contra a promessa de um dia soalheiro
e pergunto às sereias submersas
se estou próximo de saber onde desagua o rio
se estou próximo de algum conhecimento capaz. 
Só ouço o vagaroso rumorejar da água
em sua descendente transição,
enquanto um troar indistinto
insinua que os olhos vendados 
talvez
não sejam má ideia. 
Fico sem perceber nada. 
Arranho o sal agarrado às mãos
só para ver
se ele desenha palavras sábias em seu rasto. 
A pele limpa
imaculadamente até sem rugas
pressagia alguma claridade. 
Não parece. 
No palco
apenas a cortina fechada
o chão vazio
e a penumbra que torna tudo indistinto. 

Projeto

Não fosse o rastilho
uma acendalha mortiça;
não andassem distraídos
os aspirantes a deuses;
não tivesse sido trespassado
o viés dos fanáticos;
não se segredassem
os improváveis segredos que o não eram;
não chorassem as crianças
por desilusões que são húmus da infância;
não coalhassem as águas
no pranto da desmemória;
não houvesse fábricas em ruínas
em coligação com a decadência;
não tivesse meias-medidas
no sargaço das indecisões;
não combinasse as cores
com a exalação das veias interiores;
não houvesse um refúgio
onde a solidão se acomoda;
da antítese do exposto
os frescos remediados
na promessa dos olhos desembaciados.

14.5.17

#201

Macilento
o coiote nostálgico
errando na estepe
à espera de ser presa.

13.5.17

Pugilista

Não é pelos punhos de renda
que o pugilista semeia encanto.
Nele
não há nada que frua
encanto. 
O pugilista sabe
do desvio no septo nasal
ossos do ofício,
ou apenas um desleixo 
de que ficou credor. 
As mãos calejadas
devido aos ossos do ofício
(as mãos que já não vestem luvas acolchoadas)
mapeiam as rugas do rosto
enquanto os olhos se demoram
nos troféus pendidos
nas fotografias louvando vitórias de antanho. 
O pugilista
atirado pela solidão
para o exílio da cama
não consegue verter as lágrimas
encomendadas. 
Os ossos do ofício
emparedaram as lágrimas
na barragem que o sitiou. 
Ao menos
a solidão não magoa. 

12.5.17

#200

No sótão do pensamento
assanhados gatos
rasgam livros indigentes.
O sono sacia-se no arco-íris ferino.

Mosaico

Não esgotam as rugas
no intervalo da noite macia.

Se soubesse os mistérios das arcadas,
lá onde há árvores escondidas
e murta embargada,
às mãos viriam opúsculos fartos
o sortilégio das obras inacabadas
e o peito suave,
leito calmo para aplacar inquietações,
seria confessionário.

Não se tome por certo
nem as certezas imperativas:
se um avesso destronar as certezas
o chão trespassado de contingências
é o preparo para o desassossego.

Os cuidados inadvertidos
bolçam para o ar um riso louco
talvez
como se impossível fossem imprecações
e os volteios madraços
sincopados com as ondas furtivas do mar
amparassem o ouro furtado aos apóstolos.

Por via das dúvidas
lave-se o chão.
Nem que seja
para depois da chuva
voltar a ficar molhado.

11.5.17

#199

I had no kingdom 
whatsoever 
and yet 
you are my queen.

Licor Beirão

Escopeta afiançada
ao dorso venal do ufano capataz,
do estarola despojado de espelho
incapaz de sufragar a estultícia própria
mercê dos encómios que encomenda
de si despejados em cima de si mesmo
em néscio onanismo. 
Infaustas personagens
a deste jaez
nem credoras de um módico de atenção,
segundo letrados 
na improcedência dos apedeutas,
ensinando que o desdém é o pior palco
em que pode sua ossatura ter ninho. 
Os preparos da despoluição
têm outros mandamentos. 
Despoluídos seriam os ares
se canhestras personagens tais
fossem emigradas estatuetas. 
Na perfídia da imperfeição
arrasta-se o vernáculo da sua insídia
à espera que se reduzam à pequenez
de onde não deviam amarras soltar. 

#198

A bruma do silêncio
amacia as palavras
demissionárias. 

10.5.17

Estrada

Era desta força
era mesmo desta força
que andava em demanda. 

O antídoto contra as intempéries
o bolso estrelar
penhor da fortaleza
a vidraça desembaciada
a caução inestimável 
a dádiva composta por mãos anárquicas
à medida dos desejos esplêndidos
das ambições sem freio
das joias sortilégio
no seu incalculável valor.

Desembainhados os pesares,
as sombras hipotecadas.

Tinha a meus pés
a estrada inteira
aberta
promissora.

#197

Coube no rio caudaloso,
na exata proporção do miradouro,
a demissão do nunca
(por experiência de vida). 

9.5.17

Fósforo

Tinha um navio ancorado
nas ideias nascituras
e compunha as águas vivas
com os dedos orquestrados por rosas.
Não deixei
o sal lilás ter seu leito
e no desvario ocasional
esperei na esquina clara
o sentido sinal de um filme transato.
Todavia
ao menor sinal
um sinal consuetudinário e enfraquecido
o latido distante foi fala primacial.
Goste-se ou não
o verbete anotado no canhoto da lotaria
talvez amesende a fortuna maior
– a fortuna capaz,
o lídimo condutor das almas perenes.
As vozes sem rosto
saíram do esconderijo
mas só se ouviam
vozes
ainda sem rostos capitulados nas vozes.
No carrossel em vertigem
em rejuvenescida idade
sem o sofisma dos almanaques-vitupério
tirei do bolso a página amarrotada
de um poema sem esquecimento.
E soube
que o dia não tem fim
se esse for o propósito da vontade.

#196

Um corpo
fala com a voz do outro
o sortilégio singular
dos poros que vertem amor. 

8.5.17

Desmentido

De um nome
terçado em espada fechada
proclamo um só brado
um juramento de fachada.
Convocam-se generais ciosos
os que trazem o advento do cio das batalhas
e hasteia-se a alva bandeira
nas brandas que desaprovam bélicos propósitos.
Não há esgrima para tal espada
nem as palavras malditas
se esbofeteiam em despropósitos varonis.
Um sino guiado
o eco suado na parede esguia
sobe as traves inclinadas do gesto treslido
e tudo deixa de tremeluzir.
De um nome
açambarcado em batistérios desenhados
uma heresia não apalavrada
desmonta o séquito dos ajuramentados sem saber
dos que perseguem comandantes espúrios
desertores atrás da retórica astuciosa.
O nome meu
profissão de inteireza
(se a memória não atraiçoa
e a modéstia cauciona)
desajeita os impropérios desassisados
desenhando coreografias sibilinas
nas entrelinhas das nuvens finas
de onde sobeja o perfume da bondade.
E eu entoo o nome meu.

#195

Uma ponte
fundida no nevoeiro:
não sabia se os olhos eram ardis
ou o nevoeiro o útero de um sonho. 

7.5.17

Sem resposta

Quanta música não ouvida?
Quantos livros por ler?
Quantos lugares desconhecidos?
Quantas palavras por dizer?
Quantos luares adormecidos?
Quantos alqueires anulados?
Quantos teatros emparedados?
Quanto mar por experimentar?
Quantas cidades por escolher?
Quantas noites por açambarcar?
Quantas estantes por arrumar?
Quantas frases por articular?
Quantas lágrimas que ficaram por verter?
Quantos punhais guardados?
Quantas mãos se perderam na maré?
Quantos olhares extraviados ao acaso?
Quantos pesares pesaram a eito?
Quantos sonhos sem palco?
Quantos fogos desmaiados?
Quantos frutos apodrecidos sem colheita?
Quantos rios obliterados?
Quantas pessoas no ardil da melancolia?
Quantos súbditos sem vontade?
Quantos voos demitidos?
Quantos esboços que só esboço foram?
Quantos lamentos admitidos?
Quantos entardeceres bucólicos?
Quanto futuro omitido?
Quanta água baldia?
Quantas, as perguntas órfãs?

6.5.17

Coldre

As acácias prometem
a opulência da primavera.
Não se sabe se é pretérito
o desejo
ou se abraça as camadas
do tempo promitente.
Os juncos fadados para a decadência
não estiolam
até que se aventurem os ocasos
na orla da lua em eclipse.
Os pretextos
não deixam de ser
a simulação do que se intui
mendaz.

5.5.17

#194

Juntei num todo
as iras dantes habitadas
e decretei-as infecundas. 

Lassidão

Do meridiano hasteado
desvendei a solidão que fora cifrada
antes que o entardecer estorvasse a claridade. 

O peso do mundo
não se joga contra os olhos vertidos
na finitude de um mapa. 
O peso do mundo
por mais que seja pesado
não arqueia o corpo leve
não o embaraça na estreiteza
de um rio assoreado. 

Virtudes em contumácia
perdem-se no labirinto baço
remexendo
com as mãos gastas
nas passagens de nível
escondendo segredos vitais
segredos viris 
bolçados por varões em pose monárquica. 

E depois
à sobremesa
entre os copos rejeitados
e o fumo deslaçado
tiram-se à sorte os penhorados
ao fado das divindades estultas
as seráficas sereias que ateiam fogos
por dentro da água tumultuosa
à escala de um mar reduzido a um aquário. 

Amedrontados
os parceiros exclamam:
vamos embora
vamos daqui para fora!
e enfeitam o celibato involuntário
com um aceno de mão codificado
no presságio de um amanhã exaltado
nas improváveis teias vãs
de proezas simuladas. 

A floresta enche-se de elfos
e o sono
pode tomar o seu lugar. 

4.5.17

Sábios

Sábios conselhos.
A matéria fungível
dos copos vidrados
por campos em transparente vicejar.

Sábios dizeres.
A matéria consumível
dos pássaros tomados
por cantos de claro ciciar.

Sábios saberes
A matéria tangível
dos amantes abraçados
por ruínas que espigam um latejar.

#193

O navio-silhueta
prescreve o dia insolente
confirmando a litania das velhas. 

3.5.17

Vitral

À razão
dos penhores desarbitrados
no emaranhado das algas evanescentes
componho arestas vivas nas margens
desocupando os diademas.
Os vultos
trazem a tiracolo uma coreografia.
Armazéns desabitados
emprestam refúgio noturno
contra o marasmo das palavras repetidas
contra as profundezas lamacentas
de onde não se extrai riqueza.
Sim
noto o clamor
quando o ruído emparedado dos banais
chama pela inspirada verbena.
Cingidos ao alto
pelo alto que se tenha
os desamores são mote alheio.
À razão
dos diademas que trouxe a mim.