24.8.17

Esconderijo

O esconderijo
sem janela por aceitar.
Ar quente
e peito transido
odor a angústia.
Deitar por terra
a capitulação covarde,
o paroxismo do desejo.

E depois
com os nós contados
as redes enredadas em nós outros
o céu pesado acotovelando-se sobre o dorso,
o estrangulado pretérito
no parapeito das memórias.

Vendem-se inverdades
no logradouro dos pretextos.
Aceitam-se os endossos
e a miríade de daninhas ervas
embota a pele arrevesada.

Não
não quero o abismo sem alma
intimações ermas
rios que atravessam pontes partidas
a combustão das exprobrações.
Não quero ser dador
de vocábulos irados
de intempéries à flor da pele
da paciência que se esgota em impaciência.

Vejo ao longe
com o olhar deitado no retrovisor
o entardecer bucólico.

Deito a perder os montes e vales
entre mim e esse lugar
o bucólico ninho que esconde o retiro.
Esconderijo com chave a preceito
preparada para destravar os nós a eito
janela quimérica
à espera.

#293

Erre.
O nome da letra
ou verbo?

#292

Entre aspas
regras a zero
e vale tudo.

23.8.17

Desdemona

A falésia:
logradouro das coisas frágeis
à volta dos cósmicos prados,
espraiado
na bucólica praia sem sombra.
No tira-teimas avulso
explicam-se ao luar as tarefas
sem nó,
os predicados invulgares.
Logo hoje
que havia tirado o dia
para o semântico esquecimento
haveria de ter semelhante lembrança
e semelhante pensamento
sem pedir licença ao lagar do tempo
sem pedir meças
à líquida orografia do corpo.

#291

A espuma de um navio ao longe
funde-se no mar 
à medida
que o fio do horizonte emagrece.

22.8.17

#290

Das águas-furtadas
onde ninho têm os proscritos
bebem-se as proibidas palavras
(sem punição). 

21.8.17

A meu favor

O sal do corpo
a meu favor
no confiável estamento dos dizeres
na prestável curadoria do entardecer.
Do sal do meu corpo
os pigmentos alvares
sextante desarmado das lides rasuradas
entre congeminações sem sorte
e lápides usurárias.
Deixo que o silêncio
teça as palavras contextuais
na gramática liminar dos soberanos.

19.8.17

Rosto inteiro

Sabes?
Sei de um crepúsculo
onde as metades da noite
se juntam numa dança-sortilégio.

Sei
de uma concha escondida
onde as mãos se encontram
no purificado sentido da demora.

Sei
de um castelo distante
feito de flores maduras
onde as palavras se descerram
no involúvel murmúrio profundo.

Sabes?
Às voltas perdidas
contra os mastodontes do tempo firmado
convoco os sonhos que soubemos desfazer
em pedaços concretos
entre os nossos dedos.

A moldura:
os rostos nossos
no cintado destino açambarcado.

#289

O concerto das nações,
das nações sem conserto.

18.8.17

Joia

A rendição ao tempo
redenção sem medo
fundição do tempo
remissão no tédio,
o precipício em seu despenhar. 

As contas acertadas
intempérie da vertigem
contas em aprumo estimadas
destempero das inverdades,
o masculino estio arrefecido. 

A madrugada de alvenaria
braços ciciando soluços
madrugada sublimada
pureza ajuramentada,
     o distrate das iniquidades.

#288

Acudir
a severidade das intendências:
o reacendimento da alma. 

17.8.17

Desempreitada

Não me peçam açaimes
nem em congostas sórdidas
mesmo que disfarçadas
de templos vistosos
artefactos juvenis
imberbes
canhestros.

Não me peçam loas
nem a biltres desavisados
mesmo que embuçados
de gaiatos febris
insolentes
bezerros.

Não me peçam simulações
nem por artes superiores
mesmo que escondidos
em beócios venais
falsários
desalmados.

#287

Hoje
resistência em agenda
e o vazio anulado. 

16.8.17

Metodologia

Jogo a cabeça invadida
contra o paredão cintado
na ovulação demencial das ideias.
Espero
pelo silêncio hirsuto
a ver se as ideias sobrepostas
assentam em seu sono.
Peço
em preces mal estudadas
um lugar ciente
onde fome nenhuma atropele as vozes
e aos rostos sobrem nomes bastantes.
Vou às fráguas
que distam as léguas tantas
que mais apetece
um banco do jardim
página e meia de um livro
a rua estreita
o esteio afundado no embaraço dos homens.
Um vulto murmura:
desafia a jogar os dados
em vez da cabeça.
Deve ser um invasor
disfarçado de anjo malsão
só por querer que da cabeça minha
haja colonização furtiva
o açambarcar contínuo próximo da loucura.
Trago nos braços as espigas douradas
e não sei o destino seu.

#286

Uma lâmina de geada
abraça os ciprestes,
conserva-os dos astutos demónios.

15.8.17

Em desgraça

Sentinela adestrado
sua cartilha
a atalaia imorredoira
precatado contra camafeus
calígulas desprezíveis
em ensaiados atentados
contra a sossegada prole.

Sentinela distraído:
apanhado em sono profundo,
hostil pecado herético,
não decantou estroina
em endemoninhado desmando
escapando numa nesga da escotilha.

Sentinela sem arrependimento.
Tamanha era a demanda exigida
não soube domar a pulsão.

Os mandantes:
pressa na condenação sem contraditório.
Mandaram dizer
(logo eles, os mais timoratos...)
que são precisos bravos homens
estaleca à medida
do aprovisionamento da fidúcia.

#285

Margem em dilação
a meia casa na direção
e um emaranhado por embaciar.

14.8.17

Quimera

No microscópio ávido
olhos e cores e desejos
formas sem forma
um desenho do mundo
na bissetriz do desabrigo.
Não sei se é assim
que se congeminam as coisas
ou se devo dizer
às luas viandantes
e aos elfos sonhados
se a monstruosidade é palco
e nos sobra a resignação.

Oxalá tudo fosse
no seu oposto.

Afinal não sei.

Guardo em papel vegetal
os raios quase impercetíveis
de um desenho vitral
antes de o ocaso ter ciciado à janela.
Estimo saber que coisas diversas
se protelam no estirador abandonado.
Mais valia
um promontório ao vento
sem armadura
sem velório tenaz
ou as ondas furiosas de um mar diáfano.

Oxalá
soubesse ao menos
um lugar
um lugar que fosse
meu
património meu (em alternativa)
ou de outrem
e que eu pudesse tomar de empréstimo
só para me saber defenestrado da orfandade
numa torrente de fertilidade pródiga.

Atiro os olhos cansados
aos enredos passados em revista
no microscópio banal.

Não é preciso mais nada.
A não ser
o sono desalfandegado
a epiderme clara da não vergonha
o amor-esteio
e o rosto do amor-esteio
como castelo imperecível
na balaustrada do desejo sem freio
na mercê de um beijo quente.

Não é preciso mais nada.

#284

Consertado o fuso
o marinheiro perseverante
à espera
e um cais de braços abertos. 

13.8.17

Pronto pagamento

Supus as vincadas arcadas
sobre o mosto da maresia
sem contraprova remível
em andares cheios de poeira.

Em visceral rebeldia
desarmadilhada a vetusta janela
trouxe os olhos já não marejados
ao palácio onde esperavam
tenores em silêncio.

Embebi-me no silêncio
enquanto assistia ao rio
em sua marcha
sumptuosa.

12.8.17

Alumínio

Um véu
um vulto
viuvez sem sombra
ou então
prisão sem grades
prisão na mesma
labirinto sem dó
viuvez empenhada
vulto sem rosto
véu denso
e não metáfora.

11.8.17

Remédio

É deste magma
a lava indissolúvel
onde o fogo cospe contra a maré
como se eu fosse vespeiro
e por dentro
nas veias insondáveis e febris
houvesse um frémito virado do avesso
comenda diuturna sem convencimento
e as cinzas debulhadas na caneta mortiça
e eu
emancipado do pesadelo sortido
lavasse o rosto com as mãos secas
olhando no espelho vertical
de onde rosto algum tinha devolução.
As caldeiras aconchegadas ao peito
conferiam o calor singular
e eu
convertido à desimportância das coisas
tirava férias do tempo.

#283

Quinhentas mil vozes
no marmoreado céu
arrancam espinhos
ao orvalho sem data.

10.8.17

Da paciência

Espera
a espera que demora
na demora do tordo anónimo.
Na espera
sem marujo
embarcação fantasma
fundeada na doca-seca.
Como se nadassem em seco
gaiatos desvairados
e os gatos vadios
dançassem em correrias anãs
com medo de perderem os bigodes.
Dado o universo
como medida da pequenez
não importam as esperas
que a espera traz à espera
um módico de consistência.
Ainda há
quem lhe chame
paciência.

#282

A desfronteirização 
das interiores baias:
abraçou-se aos deslimites
sem precipícios por imediação. 

9.8.17

#281

Boca do vulcão
extinto
e no corpo
aluvião voraz.

Quatro mãos

Manifesto:
desando dos luares cerimoniosos
à colheita dos líquenes sofismados
e apadrinho as roças aprumadas
no sul ermo.

Aproveito:
os murais encardidos
e de olhos fechados
arborizo estrofes avulsas
caiando os murais.

Percebo:
quatro são as mãos trémulas
tirando alvura às páginas
em gorjeios militantes
na rosa-dos-ventos.

Concebo:
o estio amordaçado
fadas furtivas vindas do mar
estantes vazias
e um velho inerte de olhar perdido
enquanto bebe o tempo pérfido
à frente do mar
como se esperasse
que as furtivas fadas congeminem novas.

Lembro:
lugares que foram partida
noites sem sono
luzes aspergidas ao acaso
a inverosímil redenção
tempo sem pressa
tempo fugitivo
a imensa constelação de rostos
a as quatro mãos entrelaçadas
fazendo tudo isto naufragar
no repouso do olvido.

8.8.17

#280

O escultor das flores
pose estudada
(tabaco no canto da boca)
à espera dos mandamentos do mundo. 

Friends and foes

Written candles
ebb through the angles of light
following hoax-lighted dawn.
Let me know
the incommensurate pleasure
of carved, shaded tears
while old-fashioned darts fade away.
Pegging
to the never-ending myth of untidy words
cleared from once darkened skies.
I insist:
believers
should heave shoulders against tainted walls
like a deer floats in the autumn mist
melting twisted eyes against fate.
I insist:
forgotten faces
(once not so-forgotten)
washed away in the turf of tears
but tears lie no more
in the edge of adamant eyes.
Candles
spreading ashes as the wind whispers
move away doomed pieces
of once-upon-a-time secrets.
Candles
vivid,
sparkling candles
ending evanescent shame
a bequest of the fresh air:
the inexorable ingredient to be lived with.

#279

No rumorejo da maresia
náufragos ateiam um fogo
esconjurando deuses prometidos.