28.11.17

Carne viva

O rendilhado da desrazão
orquestra o ocaso repetido
e as mãos frias
tremeluzentes
são o ópio de um rumor incessante.
Dizem o que dizem
astronautas pardacentos do desdizer
peritos no tresler
poltrões ascetas do simulado.
Não quero saber das portas abertas
nem dos atrevidos pescadores de almas
ou dos trovões desmedidos;
por entre as pútridas passagens
nos interstícios dos dias oprimidos
encontro o ouro entre os dedos secos
e deito-o no papel espraiado
no papel que devora
as palavras à boca de cena.
Não peço licença aos deuses
para ser quem sou.
Não trago trela em mim
que das peias congemino altercação
e gritos suficientes para as desmembrar.
Olho sobre o ombro da manhã
mesmo onde o nevoeiro embacia
e juro
contra as juras todas
canto, se preciso for
atiro o corpo desenfreado contra os mastins
no destorpor deslaçado das ferragens inertes.
Sei que às horas ímpares
chegam os murmúrios do vento
e eu retenho na funda alma
a sublime lição neles entranhada.

#386

Que as árvores azedem
no púlpito outonal
antes que seja dezembro.

27.11.17

#385

A porta em segredo
o rumor extático
a corda sobre o tempo.

Taluda

Doses certas de qualquer coisa
no naipe pedido para a visita adiada
bolsos rotos no fundo fundido
a aleatória roda.

Que digam as palavras avulsas
pendentes de versos prometidos.
Que prometam a roleta sem russos
vigários das estrofes amansadas.

Tudo o que eu quero
é deitar os olhos no mar acetinado
levá-los no seio da nau ao alcance do olhar
sem saber onde ter cais
sem saber das sereias que ao mar se prometem.

Às vezes
espreito nos contrafortes do tempo
só para ver se é a sorte grande
minha, taluda diletante.

26.11.17

Molduras sem fotografias

Molduras nuas
à espera de serem ocupadas
com fotografias,
espalhadas pelas paredes,
as descarnadas molduras
todavia
objeto de bondade singular
à espera
que quem delas dá conta
empreste às molduras vazias
imaginadas fotografias
com a licença de um atento olhar.

25.11.17

#384

O cú de Judas
não tenhas como desonroso lugar
não vá sobre ti abater-se
a vergonha da descortesia.

24.11.17

Perguntas às perguntas

Posso trazer na mão suada
a janela dos tresloucados?
Posso dizer não
aos engenheiros da coragem?
Posso ensinar
o leite azedo em lume brando?
Posso tirar do jogo
os reis e as rainhas?
Posso ir ao dia
no mais descarnado de mim?
Posso beber
à espera da estouvada madrugada?
Posso desaprender os pactos?
Posso alinhar as pedras frias
no rio sem margem?
Posso cantar os versos arrependidos
na miragem dos campos sem mapa?
Posso apenas verter no chão quente
as impróprias incógnitas?
Posso traduzi-las
em equações adormecidas
em portas sem número
em corpos desossados
em livros sem rosto
em dedos espontâneos
em cálices frágeis
em camas sem remorsos
em dias sem adiamento?

#383

Teria da misericórdia
um olhar estilhaçado
uma baça noção.

23.11.17

Tomar partido

Tomo partido
no esdrúxulo desaviso dos alquimistas
às avessas com o siso maroto.

Tomo o partido
contra as cozinhas enfumadas
e cozinheiras datadas, obesas, vetustas
e parto do cais alquebrado
antes que a noite pregue uma partida.

Não tomo partido
da gratuita noção do tempo
nem dos arautos da estultícia
ou dos fazedores de circos radiosos.
Não tomo o partido
pelas veigas prometidas
pelos sorrisos contrariados
pelos embustes que refrigeram
em maré contrária da maré fácil;
não tomo partido
se não
nas coisas que as mãos minhas podem domar.

Agilizo as palavras
(as, julgadas, palavras certas)
e intuo a empreitada gorada.
Antes não tivesse tomado partido
quando o partido foi tomado
ou
tivesse tê-lo como cúmplice
quando evitado foi.

#382

Que não se diga
longe;
antes se diga
entrelinhas.

22.11.17

#381

Do outro lado da janela
nevava
pequenas folhas de árvores
(em outonal comprovação).

Nómada

Viagem
solstício
aprendizagem
gosto
estuário
avidez
entardecer
maré
combustão
uníssono
viagem
cobertura
saber
sabor
ancoradouro
aguarela
tirocínio
infinito
perseverança
viagem
mundo
nuvem
nómada
braços
avenida
museu
moeda
síntese
viagem
multidão
idiomas
corpos
suor
gelo
viagem
constante
avidez
projeto
aeroporto
boreal
fortaleza
chuva
diadema
trânsito
rio
avidez
pele
mesa
viagem
margem
música
páginas
sentinela
erupção
viagem
viagem
avidez
viagem.

#380

Desnatado o dia
fica o pôr-do-sol
desmaiado.

21.11.17

Gratuito

Apregoam-se predicados consentidos
como cães fieis em fios de seda,
diuturnos.
Os castelos sem estribo
montados nas nuvens
sem peso
sem gordura
tácteis.
Nas fivelas do tempo
componho música sem estrofes
e ao sonho vêm as álgebras miríficas
os subsídios perenes
paredes texturadas nas rugas das mãos
um olhar poltrão;
pois a noite demora-se
e os corpos pedem água.

Apregoam-se flores garridas
como gatos investindo marradinhas,
ternurentos.
Na embocadura do rio
onde as traves se ajeitam contra os demónios
colhem-se frutos maduros
e a boca enche-se de proveito.
Desenganam-se os virtuosos:
as impurezas traduzem a perfeição
e os corpos não capitulam
na seiva mélica do amor.

Apregoam-se rimas avulsas
os pássaros ruidosos,
insistentes.
O rio ao fundo
rumoreja
e as pernas ávidas sentam-se
quando o banco enferrujado pede companhia
e do peito bolça a irreprimível bondade.
As pessoas dizem:
“não sei, não sei”
na certeza mais segura que lhes sobe à boca
terçando as armas
contra os apoderados das firmezas.

Os cães famintos erram nas ruas vindouras
em trote apressado
contra os endoidecidos vizinhos das ruas vazias
contra o estio forçado.
E eu digo:
oxalá ainda vamos a tempo
de apanhar o tempo entre os dedos
sem desistir das juras
sem legar o peito às cicatrizes fundas
sem o engodo das trevas
sem fantasmas a adejar
esquartejando as janelas abertas
sem posse das coisas em sua inutilidade
sem letras fartas e ininteligíveis.

Só conta
o abraço dos corpos
o enlevo da noite
a macieza da pele adornada
o desejo
um beijo-conforto
émulo do sono em sonhos invejáveis.

Apregoam-se as fadas
quimeras sem nome
e do mais fundo do ser
levamos ao fim do mundo
(se preciso for)
a lava profunda
a terra humedecida com lágrimas
nutriente da noite sem fim;
levamos tudo de nós
e não queremos nada em troca.

#379

Na rede da estultícia
autoproclamados eruditos
pescados pelo rabo da histeria
(sem perderem face e vergonha).

20.11.17

Declive

Eis o descritivo do instante:
a árvore sentada na boca do amanhã
em sucessivos tossicares envergonhados
dando mangas à tinta permanente
e espaço a páginas dantes encerradas.

Assobia
o velho cabisbaixo
contra a habitual, ausente sorte:
“se ao menos tudo fosse diferente”
repete,
em oratória cabalística
à espera do tempo benigno.

As rentes mãos lavam os pesares
impedem as perfeitas cicatrizes
no pano gasto das purificadas asneiras.

Não há de ser grande a demora:
pergunte-se à manhã
(a uma qualquer manhã)
se tem palavras que cheguem
para contar os beijos que faltam.

#378

Sei ser desta maré
(apesar dos estilhaços)
o sortilégio em espera.

19.11.17

#377

Trago vestida
a nudez intrínseca
onde o avesso é transparência.

18.11.17

Motim

O motim por dentro
o motim que não sei
ao certo
se sou.
O motim sem saber
se transborda.
Os enredos amontoados
bravatas em rota de colisão
os olhos despiciendos
os olhos contrafeitos
e o amotinado contido,
à falta de trunfo.
Sem estrelas por conselheiras
margens frágeis sem certeza
de segurarem o motim em seu leito.

17.11.17

#376

Remo sem a força de braços
apenas 
no anteparo do remo dúctil.

Ninguém

Ninguém
adivinha o nome da morte.
Ninguém
confia no melancólico sonhar.
Ninguém
desiste da manhã esperada.
Ninguém
se devolve à indiferença.
Ninguém
enlouquece nas fráguas frias.
Ninguém
atiça o arrependimento.
Ninguém
perde ao jogo do medo.
Ninguém
se despe no tirocínio das almas.
Ninguém
acorda nos termos ostensivos do desacordo.
Ninguém
se empresta ao vazio.
Ninguém
se promete no penhor da escuridão.
Ninguém
toma o veneno desalfandegado.
Ninguém
estima a pura maldade.
Ninguém
combina com os demónios avulsos.
Ninguém
contemporiza o desdém.
Ninguém
desaproveita o ouro entre os dedos.
Ninguém
esquece o vento.
Ninguém
se encomenda ao desespero.
Ninguém
se eleva no dorso de um precipício.
Ninguém
desaprende os rudimentos de si.
Ninguém
acaba por ser ninguém.

16.11.17

Mistério

Os confins não têm palavra.

Insurgentes
os operários da vertigem
combinam a morte.
Desabrigados de chapéus
apanham a chuva sentinela
a vacina diletante do vértice alado.

E depois
cansados em seus despojos
perguntam se as cores da manhã
são autênticas
ou se não são apenas
um mistério sem palavra.

15.11.17

Venda

Fecho os olhos
– e vejo tudo.
Não são as cortinas embainhadas
que esbulham a lucidez.
Tenho o tento capaz,
matador sem armas
mas só das torpes coisas
que à porta dão.
Fecho os olhos
– e não vejo
o que assim me não dói
nem de dores assim sentidas
levo para contar.
Armadilhas tem-nas o vento
que se desarmadilha na luva macia
no opúsculo que não deixa o prelo.
Fecho os olhos.
Oxalá o sono
seja abrigo mirífico.

#375

Trespassada a coleção de ousadias
sobra um amontoado de cinzas
inférteis.

14.11.17

Luto

Luto no luto
sem véu por perto
na manhã gentil
rosas ainda fechadas em seu sono
em espera impaciente pelo que sobra.
Luto sem espada
apenas de palavra em riste
no desprendimento anelado
na cobertura do rosto enxuto.
Luto sem verbo
em cadeiras rombas
e mesas desalinhadas com copos gastos
no impossível devir
no impossível luto.

#374

Atravesso o mar seco
e no ermo deserto
desato as trevas rígidas.

13.11.17

Presunção

A ponte fendida
na amostra do rio
o rio timorato
escondido entre arbustos
como não escondidas estão
seringas pútridas
deixadas ao acaso
na demência dos homens de rastos.

Cobradas as dívidas:
à mostra os costumes
os bons costumes
(que não fazem corar as senhoras)
em diatribes vítreas arremessadas
no vento lógico das varandas sem fim.
Moedas sem valor,
à mesa:
tributos inválidos
e os dados sacudidos no shaker da vida
das voltas sem partida
e dos nomes órfãos em paredes pintados.

As seringas
dispõem a memória recente.
Dizem:
miseráveis os trapos utentes;
e eu não sei se miseráveis maiores
são os penhores dos costumes
dos bons costumes
que só coram de vergonha
com as vergonhas de que não participam.

12.11.17

#373

Do fundo bolso
um punhado de mãos
a sementeira opulenta.

11.11.17

Gesta

O lago
dissolve-se na paisagem
a saliva amansa o suor
no gasto prolífico
do corpo perene.
Assim são dias ímpares:
insaciáveis
depósito dos remédios
cobrando aos mastins sem rosto
a improvável senda da gesta.

#372

Proporções éticas
proporções épicas.