18.12.17

#409

Não é o zero
que postula nulidade
se o zero
em virtude se constitui.

Penumbra

Dos cantos esquecidos
arestas sem respiração
apenas os vestígios indiferentes
o aceno embaciado da mão madraça.

Multidões soberbas
congeminam os focos no vidrado altar
com sumptuosas sumidades
o agrado popular do chavão sem eira
apenas personagens ermas:
multidões soberbas
esquecidas da soberania dos cantos esquecidos.
Não é preciso luz
para os olhos se demorarem
nos veios pulsares sob a folhagem outonal.

O esquecido não merece ser esquecido
e ao esquecimento devem vir
os frívolos discípulos dos frívolos soberanos.
Desatando-se os penhores consagrados
e a vetusta aberração
dos centros pomposamente floridos
nua
exposta ao olhar
(porventura perplexo)
dos aduladores da causa.

Melhor andam
os órgãos de causas
os desenganados de ilusões
os ascetas céleres do chão irregular:
sabem
que os centros pomposamente floridos
são artificiais
as palavras despojadas de sentido
os sorrisos campeões da falácia
as verdades solenemente mascarando mentiras.

Ao menos
os cantos desvalorizados
não ensinam ardis.

17.12.17

#408

Por mentiras serem palavras
não seja das palavras
a culpa.

Aquecimento global

Os arbustos assustados
vertem a água da chuva;
se tivessem olhos
apresentavam-se marejados:
o estio prolongado
é circunstância que desmente
o pesadelo dos arbustos.
Já antes deles se soubera
irritação cutânea à agua:
foi em invernia severa
quando o orvalho se convertia
em geada implacável.
Os arbustos definharam
protestando
imberbes
contra a crueldade dos elementos.
Alguém encomendou oratória,
Seu porta-voz em oportunista golpe-de-asa,
junto do santo responsável pela meteorologia:
a intercessão foi proveitosa:
o inverno nunca mais voltou a ser igual.

16.12.17

Lugares

O lugar:
sombras furtivas
na gramática esquecida
contra os pergaminhos do nada
mãos desatadas num frémito desigual.

Outro lugar:
miradouro de vozes
no equívoco esquecimento
contra as tremendas dores do dia
corpos entregues num desejo ímpar.

O lugar ausente:
vasos sem flores
na cortina baça do fingimento
contra as viagens esconjuradas
olhos de atalaia no imorredoiro pesar.

O lugar-tenente:
fábrica deserta
no labirinto fermentado
contra as vésperas desassisadas
pensamento alinhavado nas bainhas meãs.

#407

A saliva fundente
babilónia do desejo
nas páginas acesas da noite-lírio.

15.12.17

Ismos

O labirinto dos ismos:
dogmáticos sendeiros
lunáticos dos estreitos corredores
apostam a fortuna na mesma carta.
Convencidos do jogo triunfado
desprezam os de outros ismos
e prescindem dos trunfos
– tanta a presunção.
Untam-se de linóleos sacerdotais
na procissão onanista
de quem tudo em coro repete
e só destarte consegue falar.
No cárcere dos ismos
não há pensamento
apenas pavloviano recitar
a contrafação das palavras gastas
das ideias vulgares
gastas.
Os tiranetes dos ismos
confecionam sua própria estultícia
nos dogmas bolorentos bolçados das unhas.

#406

Cobro o marfim,
o mosto límpido
em rostos impassíveis.

14.12.17

Diário de bordo

Soberano
dito para a ata
os vindouros versos
na varanda desabrigada.
Compilo
as páginas debruadas a mel
embutidas no largo sorriso
das crianças extasiadas.
Salgo
em criterioso esgar
o mar que vem à janela
na epístola de ondas timoratas.
Descubro
nas entrelinhas do dia
o sangue puro
e deito-me à espera de tudo.

#405

Vingança da borboleta
num bater de asas:
tempestade devastadora nos antípodas
(é o que dizem à boca grande).

#404

A janela do avesso
nas mãos estruturadas
a secante das lágrimas hirsutas.

13.12.17

Os notáveis

Com base nos despojos
farejo o vértice do sol
na hipótese de redenção.

(Não sei
por que preciso de redenção.)

Automóveis incessantes
não deixam repouso para o silêncio
e a noite esbraceja
na heresia dos apaziguados.

Quem sabe
o rédito tirado ao acaso,
no cais anónimo
entre paredes imundas,
disponha a sorte madraça.

Não tive grande ideia
das ladinas raparigas nas ruas céleres
e das esperanças trago apenas
um trespasse cheio de cicatrizes.

Os néones de Paris são uma impostura.

O Maserati mal-estacionado
é a mnemónica que queria:
a pompa, uma bravata sem eira
e os notáveis esquecem-se da artilharia,
resumidos à irrelevância:
corpo cheio de nada
e pensamento em hibernação demorada.

#403

Que bavaroise sumptuosa
às camadas fundidas
e os olhos,
famintos.

12.12.17

You name it

You name it:
oblivious
tireless
breakthrough
originality
daring.

You name it:
patient
thorough
obstinate
phlegmatic
contradictory.

You name it:
loving
warm-hearted
lubricious
exciting
hungry.

You name it:
voyages
buildings
landscapes
languages
voices.

You name it:
ideas
words
perennial
theatre
hands.

You name it:
vision
challenge
embraces
speechless
morning.

You name it:
names
faces
eyes
colours
variety.

You name it:
traces
avenues
house
sea
cloudless.

You name it:
hands
horses
raindrops
moon
breathing.

#402

O estipulado em registo solene
sem notário por perto
apenas a caução do apalavrado.

11.12.17

Fio da navalha

Sangue bombeado
ver-ti-gi-no-sa-men-te
sensação visível de um precipício.
Em falta do toque de Midas
o Confúcio dos malogros pessoais
fogueira acesa,
as cinzas crestadas seu combustível:
abraçam-se
os demenciais fautores da importunação
em revoadas de ar tirado aos pulmões
como se não fizesse falta
à apoplexia sobrante.
A jugular apertada
liquefaz as forças
já sem resistência por palco
já sem saber sequer a respiração.
Escasseia o chão sob os pés
escasseiam os pés sob o corpo
escasseiam os esteios em tudo:
diz-se:
a tragédia tomou conta da vitória
e as vitórias embotaram as derrotas.
No fio da navalha
sob o torpedo aceso
na lava de faíscas flamíferas
o ocaso benevolente.
Aceitam-se os modos esvaziados do ser
na penúria dos desenganados
com a caução dos inverosímeis indigentes
e a sua desatração por tudo.
Ao fio da navalha
vem a carne abraçada 
dos promitentes mastins do desdesejo.
Desça a navalha
já não tem préstimo o seu simples fio.
Os progenitores dos infaustos palcos
desembaraçam-se das teias-labirinto
e rejubilam.
A eles pertence a última palavra.
A eles
o trono incontestado
onde se expõem
galanteadoras
as navalhas já sem seu fio.

#401

Ira
irra
irá
ir à...
(à vontade do leitor).

10.12.17

#400

Ainda vamos a tempo
na madrugada sem rugas
do elixir salvífico.

Enclave

Enquanto espera
no resgate da paciência
ouve conversas laterais.
Nada de importante.
Se por desimportantes
se açambarcarem
incontestáveis achaques
imolestáveis proezas
irrenunciáveis fúrias
irremediáveis narcisismos
imparáveis angústias
indeléveis granduras
impuras superioridades pessoais
e o paradoxal culto
da comiseração de que se é credor
ou do fausto que se devolve em dívida.

9.12.17

Multidão

A mala aberta
e a multidão,
Como as porteiras,
bisbilhota as gavetas desarrumadas.
O sangue enxuto
(homicídio?)
um autocarro de dois andares
(metonímia?)
as cinzas amontoadas
(lareira?)
o dia timorato
(inverno?)
a lanterna estilhaçada
(violência?)
outra multidão partindo
(êxodo do mundo sem provimento?)
prantos sem lágrimas
(temporário?)
figurões, importantes e ufanos
(decadência?)
contratempos assinados a tinta-da-China
(melancolia?)
um murmúrio cobrindo o mundo inteiro
(esperança?)
A multidão não sabia nada.
Apenas bisbilhotava.
Era sua malapata.

#399

Ferve a tempestade
no sobressalto ímpar
da noite sem fim.

8.12.17

Fio e pavio

No avesso do horizonte
sem as cortinas corridas
mapa desenfreado nas avenidas largas
e um olhar compulsivo.
Desconto das palavras ditas
a gramática datada
os espiões contumazes
os insultos sem prazo de validade
as veias incandescentes do dia.
Não digo nada.
Sei
que nos contrafortes escondidos
onde as mãos se entrelaçam com o tempo
e os copos se esvaziam no lúcido apetite
há pontes abertas
lírios irrompidos
e rios vorazes
– um pouco
como um sentinela
que recusa a rendição.

#398

Língua viperina,
não
língua morta
língua de trapos.

7.12.17

#397

Leme sem homem
legenda sem palavras
em homenagem ao silêncio.

Da confiança

Aos arquitetos do mundo
o papel selado
a vontade franqueada
aos ventos por eles domados.
Porventura
confia-se nos arquitetos
em desrazão de seus predicados.
As pessoas não se perguntam
apenas confiam
cegamente.

Nos compêndios
instrução a condizer:
quando ensinam a confiar
não se incomoda a confiança
nem o tutor que assim ensina.
E seguimos pelas veredas falsamente belas
ordeiramente
acriticamente
paradamente
nas arcadas das letras não duvidadas
pois são pungentes as dores
quando à confiança se tira o chão exigido.

Alguém questionou os arquitetos
alguém
alguma vez
percorreu as páginas dos seus pergaminhos?
Acreditemos nos arquitetos
porque nos dizem que sim
apenas porque sim.

Acreditemos.
Como podíamos acreditar
num louco fermentando saliva
(talvez melhor critério de confiança)
num drogado sem remédio
numa meretriz fria
num edil corrompido
numa barata-tonta das revistas sociais
no anónimo padeiro
(que cozinhou o pão do pequeno-almoço)
em viúvas melancólicas
em druidas disfarçados de carpinteiros
em farsantes noctívagos
ou em toda a gente
na confiança em democrático golpe
para ninguém se tomar pela exclusão.

Confiemos.
Confiemos tudo
desde a indumentária que trazemos
(sem vergonha da nudez)
aos tesouros mais recônditos
à inteireza da alma profunda.

Um dia
acordamos a tempo
de sentir a confiança
um logro.

6.12.17

SOS

A combustão do dia
sentido o marejado olhar
no estuário das lágrimas secas.
A doca vazia
dita as regras do jogo:
mandamos à sorte
as flores que vêm às mãos
à espera dos juros
e de um competente júri
em adivinhava chuva congeminada.
Todos temos uma Califórnia adiada
o mapa desbotado
prantos sussurrados
prados sedentos
uma moeda atirada ao ar
à espera de um sortilégio.
Não podemos acabar o dia
sem dele sermos curador.
De nós
os férteis vales
inventores do riso desarmante
do acaso musical
dos corpos uníssonos
da noite domada
na indiscreta janela perenemente aberta
à alvorada terçada.
Pois não sabemos escrever
as palavras malditas
as palavras serôdias
as palavras contristadas.
Só sabemos escrever
as palavras
puras.

#396

Dizem:
corremos atrás do tempo. 
E eu digo:
somos arestas inertes
no desperdício do futuro.

#395

O dantes murcho caudal
agora transborda
pujante seiva em veias hasteadas.

5.12.17

Do peito meu

Dou meu peito seco
enxuto de sangue
do sangue penhorado
de onde não havia serão
nos primórdios da desrazão
no limbo do prazer
altar das possibilidades sem prazo.

Dou meu peito descarnado
os véus removidos
sem ancestrais medos
nem comoventes regras a esquadro
sem esperas militantes
sob o jugo da íris vigilante
no opúsculo da filosofia servida.

Dou meu peito suado
trono impecavelmente desassisado
entre as ondas remexidas do mar
entre estrofes estouvadas
em telas lisas com as cores todas
sem a estepe da noite
num luar medido a passo meticuloso.

Dou o peito como ele é
cabaz ora vazio ora imenso
viveiro de paradoxos
dicionário irrepreensível
olhos não contumazes
juiz só do peito próprio
contra prognósticos sombrios.

Dou ao peito
fragmentos do mundo inesperado
nas frondosas janelas entreabertas
no compasso estrepitoso da manhã
em rimas desmedidas
em jogos pueris
em sentenças apoderadas.

E do peito retenho
o sal vistoso decantando ao suor
matéria sensível
rosário de juras sem firmamento
implacável rival dos desmerecidos
rosto aberto ao desafio do mundo
rosácea inteira na falésia longínqua.

Do peito lego
talvez sem pedido algum
um módico de mim
a indiferença total
o fado sem trono
a aventura sem freio
gastronomia do conhecimento.

#394

À desamão
a transfiguração das coisas
na contrafação das palavras
sem solidão por parapeito.