2.1.18

Diálogo

Os pés-decibel:
transgressão.
Os pés-diamante:
promessa.
Os pés-maresia:
exultação.
Os pés-fruto:
remissão.
Os pés-juramento:
ouro.
Os pés-cinza:
candeia.
Os pés-mundo:
emancipação.
Os pés-contrassenso:
lucidez.
Os pés-lua:
silêncio.
Os pés-cura:
inspiração.
Os pés-água:
fervura.
Os pés-oração:
inegável.
Os pés-medo:
morte.
Os pés-adiamento:
salvação.
Os pés-sentinela:
torpor.
Os pés-amianto:
recusa.
Os pés-violino:
poema.
Os pés-amplexo:
ternura.
Os pés-baldio:
insubmissão.
Os pés-alumínio:
engenho.
Os pés-alvorada:
mapa.
Os pés-trovoada:
proclamação.
Os pés-poema:
piano.

#425

O presente não tem futuro
mas o futuro
verte a âncora no presente.

1.1.18

Aprendizes

Aprendizes do fogo
nas assoalhadas da noite
sinceros atores das vésperas
em seus raiados olhos semicerrados.

A destreza nas cinzas aspergidas
é singular pergaminho:
apostam as lágrimas de ouro
em ciprestes seculares
sem esperarem nada
sem ousadia registada.

No fim do tempo
talvez deixem de ser aprendizes.

#424

SOS
(save our souls):
e que almas
suplicam por redenção?

31.12.17

Arsenal

Meu arsenal:
candeia acesa
manual de instruções
aurora arguta
mãos hospedeiras
palavras
mar do avesso
pensamento
silêncio impressivo
combustão
rarefeito
clepsidra avulsa
troçador de régulos
sombra irremediável
palco anónimo
irreverência
“devastação inteligente”
veludo
pedregoso
fortaleza sem ameias
combustão perene
um nome só
morada
cais
rosto outonal
riso escondido
penhor
atrevido
marégrafo
regente do silêncio
lume brando
caudal contínuo
fio de prumo,
desarmado.

#423

A madrugada tardia
na enseada que vaza
sósia prístina do forte remediado.

30.12.17

Posse

Não caibo em mim
nas margens tomadas pela loucura
nos promontórios acima das nuvens
nas árvores primaveris
nos relógios vertiginosos
nas viagens argutas ao mundo por dentro.
Não me confino
ao vetusto saber de hoje
às cores principescamente pintadas no céu
às lautas coroas de imperadores
ao corpo inteiro e desenfreado
aos chapéus que hospedam ciências.
Caibo em mim
no sortilégio dos sonhos sem freio
nas páginas devoradas
nos socalcos matematicamente aformoseados
nas caves fora dos mapas
na azulada frota de palavras aliviadas.
Confino-me
aos deslimites de mim
na intemporal maré agitada
em devaneios com assinatura solene
à febre sem estilo
às juras que faltam nas bainhas do pensamento.

#422

Moeda forte
o peito sem algemas
remédio contra a usura.

29.12.17

Profeta

O profeta está esquecido
e da gramática aprova o nada.
Mangas arregaçadas
os braços desaprovam o pretérito:
talvez seja o chamamento
até ao porvir adivinhado.
Fracassadas intenções:
o oráculo estava desmaiado.
E o profeta, esquecido,
aprendeu a identidade.

#421

Do fado desfeito
ou do desfado sem colheita;
uma seara sem sol.

28.12.17

Apeadeiro

Que louca correria
os sentinelas distraídos sem nada verem,
fortunas perdidas no poço seco
petróleos brancos em erupções ciclópicas
e as juras todas recusadas.
Feitorias esquecidas
no umbral corroído por sorrisos astutos
desaprovam os penhores mendazes
devolvendo ao sol o gelo sem forma.
Oxalá os proveitos fossem sentidos
e os olhos soubessem ler nos antípodas do choro
e as pedras de fogo
não iracundas
dessem férteis arroios aos caudais secos.
Que louca correria
que parece não se chegar
a lado algum.

#420

Olhava
por dentro do olhar
na demanda do ângulo singular.

27.12.17

Dístico

Nas abóbodas crepusculares
repousam as lágrimas vertidas
e um arco-íris tardio levanta-se
contra o mastro da angústia.
Não se perde
se não a maré tardia
insurgente contra as lajes furtivas,
um pouco de um nada.
Nas calendas anotadas
depreende-se um furor instantâneo.
Assim se enquistam
as catedrais do pensamento
contra os tomadores que o querem
manso.

#419

O navio
levita sobre a neblina
sem perder a altivez.

26.12.17

Cartografia das tempestades

A janela coberta
por gotas de chuva
– e de saber que cada gota
foi arrancada ao mar vadio
sem sequer o emagrecer. 

Empresta-se o conforto 
do avesso da janela
onde se ouve o crestar da lareira. 
Um cão vadio,
encharcado,
segue apressado,
talvez na demanda de um abrigo,
não incomodado pela chuva abundante. 
Num logradouro 
que se avista a poente
o vento destemperado faz a curva. 

É a tempestade
que fala pelo inverno. 

Do lado oculto do logradouro
as convulsões do mar
em ondas que se atropelam
sobrepostas
num mar anomalamente cinéreo
fervendo o rastilho da tempestade
– ou a tempestade
que incendeia a fúria do mar.

Não há vivalma nas ruas
– o selo da tempestade medonha,
como se por decreto
recolher obrigatório fosse ditado.
Outro cão vadio
desafia a chuva copiosa,
indiferente,
caucionado pelo farto pelo. 
O entardecer antecipado
combina com a luz desmaiada
a tiracolo da tempestade. 

Agora
as tempestades ganharam nomes de gente. 
Os humanos
não desaprendem de ser impostores. 
Achariam rudimentos para domar as tempestades,
emprestando-lhes gentis nomes;
as intempéries chacais
cuidarão de trazer as esperanças a terra,
dissolvidas como papel desfeito
sob o patrocínio
da chuva abundante.

#418

Era como Ícaro:
destemido no rebordo da falésia
antes do despenhamento imprevisto.

25.12.17

#417

Entre luzes desmaiadas
e jasmim murcho
as rugas fundas do velho bêbado.

24.12.17

#416

O fingimento na esteira
sarcástico silêncio lateral
e o lauto sorriso aos colibris aspirantes.

Estival

A enseada
forte diligente
recebe os forasteiros.
Nas areias
douradas e quentes
corpos repousam da fadiga anual.
Embarcações
nómadas e circunspetas
olham sem tresler o olhar.
O luar
armado contraforte
protege os viandantes.
A noite
sem máscara
dá caução à loucura.
A enseada
respira o dilúculo
no estertor da noite demencial.
Sem manhã
olhos refugiados no sono
sem quartel de sonhos.

23.12.17

Cartas esquecidas

As cartas inescritas
sem data
sem morada selada
as cartas das palavras vazias
segredos dissolvidos no mar inteiro.
As cartas dantes
dédalos avistados na espuma rasa
nas catedrais transparentes
sumidas no verbo intemporal.
Seriam
cartas algures
faróis em vez de centelhas
jogos sem regras no espelho lúcido.

#415

Nada,
um longo nada
reduzido ao tamanho de tudo.

22.12.17

#414

Virei o horizonte do avesso
sentado na madrugada
sobranceiro às pedras tumulares.

Costumes

Mandam os costumes
– os costumes mandam muito:
trovas sem freio
não contam no templo dos obedientes
no templo onde se narram justas coisas.
Não é preciso semelhante salvo-conduto
na infusão ética proposta
no tumultuoso extravio de hábitos,
contrafação da vontade.

Desmandam os costumes
– os costumes desarranjam tudo:
murmúrios-lamentos
por interposta pessoa
em excedente mosaico de aferições
submissão aos padrões de fora vertidos,
bolçando uma raiva
que não cabe dentro de quem a insemina.

Não interessam os costumes.
Não interessam os dados feridos.
Não interessam os holofotes ajuizados.
Não interessam húmidas palavras astutas
Não interessam intenções venais.

Não mandam os costumes.

21.12.17

#413

As gotas frias da chuva
curvam-se na pele transida
como pomares em terras depostas.

Trapézio

Sobram as cadeiras vazias
o cheiro a solidão
o cais sem rasto
o navio fantasma
as viúvas abatidas
as aranhas teimosamente sentadas.

Num raio de sol
o espelho mendicante
estilhaça as núpcias recentes
e a mulher em prantos
sem deixar descair o rosto (porém)
eleva a mão tumular sobre o soalheiro dia.

Favoráveis as contas
o artesão estonteia-se em planos audazes
na surdez dos aforros
contra os predicados dos peritos
apenas general da (sua) teimosia
na fartança de dinheiros em caixa.

O nenúfar abriga o peixe venal
sem a estatura de uma ponte
com a senha improvável
nas arcadas em ruínas sem norte
metidas em águas arroxeadas
albergue longânime contra tempestades.

Das teclas do piano percutidas como veludo
desabrocham pétalas orvalhadas
o singular lampejo das divindades
fortuita inspiração sem musa
ou insincero devaneio sem paradeiro
na espera deletéria das artes sem espera.

Sobra o espaço vazio
o chão sem vestígios
um deserto de gente efémera
um lugar incaracterístico
caudal voraz de águas matinais
o imenso compêndio das terras sem limite.

#412

Neste tira-teimas
é meu o braço mais forte
sem estima pelas vagas iracundas
em contrária maré.

20.12.17

#411

Não emparedadas gentes
sobranceiras às grilhetas
sem a tirania do emparcelamento. 
(Berlim)

Elevador

A medida do vento
em espartilhos desatados
esconjura os medos beatos.
Combina com o solstício esquecido
por dentro dos dedos cansados
à espera de degraus aviltados.

Não se sabe
a não ser
o que se não sabe
– e esse é o conforto maior.

No céu
as impressões digitais dos aviões
presságio de lugares esperados
ou anúncio de lugares pretéritos.

A medida do tempo é mais fina
do que a medida do vento.

Nos folhos abertos das flores
o ar vai em busca de alimento.
Oxalá fosse tudo assim,
fácil,
como fáceis
são as faces faustas
da métrica complexa
da cornucópia de idiomas em surda fala
ou os vagares das almas apressadas
sem saberem a toma do fado seu
ou as facas esquecidas em salas labirínticas.

E nem o frio entranhado
demove a sentinela da cidade.

19.12.17

Paradoxo

História sem passado
mar sem litoral
peleja sem espada
comboio sem carril
floresta sem chuva.

Paradoxos sem arnês.

Caril na língua urdida
língua deixada na berma
estrada que não tem mapa
o mapa despedaçado, exausto.

O cerco sem exército
na trincheira a céu aberto
campo fértil de caídos em combate.

Na tecelagem grevista
fazenda a rodos
proveito repartido
adeus à luta de classes.

Não fossem os descamisados
que fado seria dos incansáveis ideólogos,
serventuários do antagonismo de classes
como húmus de onde proveem?

Paradoxos sem arnês.

#410

Porta de Brandenburg trespassada:
liberdade respirada
em todos os poros.