25.1.18

#451

Defeitos da opinião democratizada:
hoje, todos acham qualquer coisa
sem terem encontrado algo.

24.1.18

#450

À semelhança
do pecado original de Desdémona:
como ajuizar a transparência do sufrágio
se as urnas são negras caixas?

Às coisas simples

Um tributo loquaz
sem conceitos pelo meio
apenas um ato singelo. 
Pois da singeleza das coisas
se batizam atributos ímpares. 
Pode não sobrar mais nada,
a não ser um ósculo denso
que devolve aos lábios a combustão de outrora;
ou as variegadas páginas
que trazem à tona as águas subterrâneas
de um rio dantes raso de caudal;
ou as palavras sem marca registada
as mais simples de todas
as mais difíceis de terçar
tão difícil como segurar a nuvem nas mãos
ou deitar as ondas do mar
com a ajuda de um braço;
ou abotoar o sobretudo para fingir o frio;
ou falar bem alto
a meio de anónima multidão
em hora de ponta
a imparável maré de um amor sem peias. 
Sobejam os arbustos à mercê da erosão
o sistema complexo reduzido a uma equação
a miríade de rostos indiferenciados
os braços sequiosos de corpo
um copo a vazar-se depressa
a multidão que,
somada,
corporiza milhares de anos
a constelação de nadas em ebulição
a afanosa sobranceria dos eruditos
e a correspondente obnubilar de pergaminhos:
um espelho retrovisor estilhaçado
no arfar genesíaco do meio dia
as espadas enferrujadas
o cinismo sem maldade
os choros precisos
as juras que fazem sentido
no meio do lugarejo desassisado
que terá deixado de fazer sentido. 
Que as odes sejam a antítese
dos personagens que ocupam o palco,
que selem a indiferença dos muros açambarcados,
a que escapa a prova dos nove,
seladas pelos vingadores das coisas simples.

23.1.18

A casa

A casa sem pejo
no sobressalto das vinhas
preparada para arrefecer a ira
grita contra as sombras do entardecer
enquanto os estorninhos regressam ao ninho.

Os vassalos sem guarda
não sabem do paradeiro da noite
tropeçam nos socalcos sem eira
perdidas as candeias a preceito
em seu olhar transfigurado em melancolia.

A curva do rio
deixa à mostra a quimera
um romance em forma de paisagem
nos versos destemidos do orvalho matinal
à espera do sol complacente.

Na casa há poejo
e o perfume incendia o ar
nas labaredas que desenham as paredes.

Na casa há uma solidão
e o silêncio que se ouve
nas muralhas longínquas onde se vê o mar.

Na casa sentem-se as mãos atadas
à medida que o solstício canta às raposas
odes de vazias estrofes.

Na casa vivem os mananciais
a merenda sumptuosa
estendida em toalha senhorial.

#449

E da noite
madressilva em infusão
e o corpo em poema ebulição.

22.1.18

#448

As redes caiadas
decantam o suor do mar
na mão saturada do pescador.

Os não escrúpulos

O homem dos polvos
tossia para dentro das artes
todo o escárnio
como se os polvos residentes
fossem vítimas a dedo. 
Não queria saber,
o homem dos polvos,
não queria saber
que os polvos fossem apenas
fáceis vítimas. 
Os polvos
em inviável tentativa de sublevação
protestavam
contra o inescrupuloso comportamento
do homem dos polvos. 
Os venais protestos
não chegavam aos ouvidos do homem. 
Tudo o que queria
era mercar os cefalópodes
em jornada de boa colheita
para os maus vícios custear. 
O homem dos polvos
não vinha para o regaço das insónias
ao admitir tão maus privados vícios. 
Os polvos também não queriam disso saber. 
A tais horas, aliás,
as horrendas criaturas fariam as delícias
dos que amesendavam as iguarias servidas
à base da sua matéria-prima. 
Entre arrozes,
vinagretas 
e polmes para acamar os tentáculos dos polvos
o homem seu captor 
já se esquecera do morticínio:
assim como assim,
ele nem apreciava polvo. 
Os hoje, pescados polvos, souberam atestar.
O homem do polvo,
esse,
esbracejava numa refrega virulenta
contra outros polvos que o amordaçavam.

21.1.18

#447

Nas mãos despojadas
um crepúsculo notado
moderado ocaso de nada.

Ciência

Falo pela minha alma
em nome de um inventário
bebendo do cálice singular
os versos abrigados
que um nome intruso compõe. 

Acerto com a janela
o repasto angariado
e procuro na lua garrida
os nomes esquecidos. 
Oxalá
sejam as cores atiçadas pela manhã
como juras seladas em notário:
um aparatoso desfiladeiro
as palavras untuosas como desafio
ínfima lente ocular
curva sinuosa a meio de um rosto. 

A minha alma fala por mim
entoando lentamente todas as sílabas
no frutado sabor da boca
que ensina os nomes que importam. 
Contra os presságios do mar
desmentindo as catedrais mitómanas
no verbo farto
no leito dos carnudos lábios.

20.1.18

Má língua

Radiografia dos tempos:
vírgulas em falta
vírgulas a destempo
desacentuação de palavras
idioma como espinha espetada na garganta
a má gramática entronizada.
A linguagem truncada
em novos acordos ortográficos fora de lei.
Poemas em forma de SMS
abreviaturas de abreviaturas
e abreviaturas sobre abreviaturas
o reino da linguagem estenográfica.
Comunicação postiça
sub-idioma dentro do idioma
em forma de fratricídio.
Uma má língua
ou a língua de trapos
plenipotenciária de um idioma.

#446

A absolvição tardia
nos subúrbios do perdão
tirando a máscara do esquecimento.

19.1.18

#445

Um lumaréu de primavera
na distração do inverno.

Sine qua non

O estilo tempestuoso
vitral esmerado
conceção desalmada. 
Cais desapalavrado
tempestade prometida
acácias desfolhadas. 
Despojos protegidos
fome retroativa
oratória infecunda. 
Jogo sem regras
viagem sem mapa
noites sem sono. 
Escada íngreme
poço medonho
mar intrujão. 
Papel amarrotado
contrato rasgado
palavra caução. 
Intempéries vorazes
elementos contumazes
mão guardiã. 
Caminho reparado
olhar recuperado
amanhã valioso.

18.1.18

Tartaruga veloz

Pareceu-me ver um unicórnio.
Não tenho certeza.
Quem sabe
não seria um minotauro
ou uma sereia fora do habitat.
De uma coisa estou certo:
por mim passou uma carrinha
e na porta de trás estava escrito
“tartaruga veloz”.
Agora tenho a certeza.
Era um unicórnio
arraçado de minotauro
com escamas de sereia.
Valha-nos
um mundo assim surrealista.

#444

Eurípides
ao saber do rapto de Zeus
não terá dito a Europa:
alemanhizem-se.

17.1.18

#443

Ó sociedade anónima das multidões
e eu, pária.

Gravidade zero

Um silêncio avassalador
na planície branca e tortuosa.
As vozes anciãs
incessantemente trémulas
incessantemente estremunhadas
um lugar onde tudo se liquefaz
nos sonhos insubordinados.
As frases
vêm despidas do sentido das palavras.
As pernas querem caminhar
e não se movem
não se conseguem mover.
A boca insinua um esgar
à procura de uma palavra
uma palavra que seja
na colheita necessária ao malogro do silêncio.
Mas só há silêncio
e a boca intempestivamente contrafeita
e o corpo inteiro a transbordar
e, todavia, anestesiado.
Operários ungidos de alvura
mexem no corpo.
A leveza toma conta das veias
e um sono sem noite
candidata-se a pesadelo tonitruante
a pesadelo que rasga as baias do silêncio.
A brancura
(dormente como é a brancura)
empresta o palco lívido,
devora a vontade
– desfaz a vontade a um zero absoluto.
Na forma de autómato
à mercê
do volúvel encadeamento de estados
e de palavras de outros
e de coisas alheias
e de lágrimas-veneno.
Até a paisagem caiada se estilhaçar
numa tempestade de cores.

#442

Dizer-se de alguém
que é amigo da onça
é cominar à onça uma injustiça.

16.1.18

#441

Dei ao oráculo
o trespasse das terras idas
e adivinhei o eclipse do oráculo.

Pacto

Padeço destes azimutes
o azevinho com casta malvasia
e a maldade outra que é insónia.

Estes que são comezinhos anteparos
onde ocultos murmuram vilões disfarçados
na madrugada sem avistamento.

Deitam-se as cores ímpares
e os nomes sem árvores-bastião
na fogueira onde colhidas as rosas se avivam.

Digam-me os nomes das cores
e as cores dos nomes
enquanto espero pelo comboio melífluo.

Digam-me
que não encontro enganos nas avenidas
e uma rosa-dos-ventos gasta é razoável.

Padeço do sintomático azevinho
no desencontro dos azimutes afeiçoados
e em véspera entrego-me ao sono desimpedido.

#440

No labirinto da memória
perdidos os reféns
como peixes emalhados.

15.1.18

#439

O acrobata
diligente na cambalhota das ideias
sem o rosto perder a bússola.

Métrica

No meio de um nada
as mãos estruturadas desviam as cortinas
uma fileira de árvores varridas pelo vento
e a penumbra dos girassóis deitada no chão.

O costume açambarcado
contra os estouvados feitores da insubmissão:
protestam:
não se cuida dos rostos despojados
nem se tira o sal às palavras
nem sequer às malditas.

Um maestro deambula
sozinho.
O olhar perdido
desembainhando a melancolia dir-se-ia perene
vendo o cabisbaixo maestro
como se fosse ao chão
atirar as cinzas em que se consome.
No frugal encontro do dia
à mercê do majestoso quadro à janela
a falésia bordejada pela maresia
enquanto espera pelo luar jurado.

Não esperem pelo espartano coalhar das violetas
não esperem que a alegria venha a tiracolo
de personagens datadas:
antes esperar pelas esperas sem passagem
turvadas pelo avesso das veias
cotejadas com as musas sem rosto
capazes de estrofes sem fim,
de esperas sem fim.

No cabo com varanda para o largo mar
de onde apenas o mar se tem por paisagem
respira-se um ar infinito:
dir-se-ia
a caução para a entronização nunca esperada.
Como se o sítio fosse o marco geodésico
onde exorcizados se dissipam assombrações.

Tiro do lúgubre passeio dos desapossados
o paradigma do tempo desnatado.
Cobro, por isso,
o dobro às extremidades ciciadas pelo vindouro
desmentindo-o no suor do corpo.

#438

Until further notice:
unlock your hands
as a bequest to the blossom moon.

14.1.18

Espelho partido

Em sabendo,
em modesto predicamento,
da poda a metade
(e talvez em arredondamento por excesso)
não quis soltar o freio à língua. 
Manda a prudência
(e a honestidade intelectual)
que não sejam labirínticos
os meandros da voz não tutelada
na não parcimoniosa verve sem estribo. 
Bom conselheiro
é o silêncio,
em preparos destes.
Não fica enodoada a figura
por indecoroso espaventar 
de uma ciência que por esteios não ter
não é ciência,
apenas a facúndia proverbial
de presunçosos que dormem
no ninho das mal afiveladas almas.

#437

Paradeiro demandado
de apeadeiro em apeadeiro
na sombra das avenidas sem nome.

13.1.18

#436

A voz,
estremecimento
em véspera dos sonhos.

12.1.18

#435

Desta praia sem vento
uma concha estilhaçada
e ao longe, a falésia.

Tirania

Desde apóstolos a visionários
a simples peregrinos
de asas abertas ao prefácio do futuro
cozinhando em lume brando
o inefável dizer
na presença de um exército de seguidores. 
Assim são as almas
empenhadas na febre sem medida
levitando numa nuvem de Juno
onde as mãos nada tocam. 
Também não precisam:
“a fé move montanhas”,
terçam a seu favor
e, sem demora do precipício que foge à lucidez,
juntam-se numa impecável organização,
diligente nas regras e na hierarquia,
e empurram,
com a força toda
(mais a ditada para a ata do sobrenatural),
à espera de verem a montanha mover-se. 
(Só não se sabe
se é a montanha que sobre eles desaba.)

11.1.18

Inteiro

A casa ordenada
pela ordem que quisermos:
as flores arqueadas sobre a janela
os copos pendidos no alpendre
o mar vertido pelas mãos nossas
as paredes aquecidas por beijos
um mapa-mundo
– o meu corpo-lugar
espelho do desejo
onde proibidos são os freios;
e as páginas não esquecidas
as palavras que não ditam adiamentos
as juras não sufragadas
a claridade estendida no vagar do céu
onde tomamos lugar,
suas exclusivas estrelas.
Apertamos os corpos
contra as tábuas maduras do tempo
e as mãos
como se percutissem nas teclas de um piano
desenham os versos tirados ao fundo da alma.
Os versos que devolvem a nada o ouro.

E somos de uma altura magnífica
– se quisermos: deuses de nós mesmos –
na improvável paleta de cores
no murmúrio encantador
na música que costura os violinos
na macia pele que há em nós.

Já sabemos o que é o nada
por sermos arquitetos do tudo.

Na enseada alisada pelo sol poente
deixamos uma nesga do olhar.
Os lençóis sem rumo
identificam os corpos trespassados
na combustão etérea.
Resgatamos as nossas assinaturas
como se precisa fosse a voz altiva
um pedaço do peito franco,
entreaberto,
como as janelas se abrem,
ímpares,
ao delicodoce desassossego que trava o torpor.