7.3.18

#499

Adenda ou nota de rodapé,
não importa:
conduzo na estrada sinuosa
até no ermo me encontrar.

6.3.18

Finis terrae

Tenho fronteiras em meu regaço
limites desenhados pela trova malsã
bandeiras descoloridas
idiomas vetustos, gastos
tenho uma espada desquiciada
nos despojos da imperial fachada
e os escombros dela emoldurados
mapa que custa pisar.

Tenho a terra molhada entre as mãos
o seu cheiro encantador
o aroma prazerosamente deletério
de um cachimbo fugaz
o refúgio contra o palavroso vazio
tirando o chão aos errantes
tirando as lágrimas dos melancólicos
e a sua melancolia legada ao escárnio.

Que território é o meu?

Na provável descosedura de tudo
no improvável arpoar de uma lantejoula
por carência de cais
por mares que deixaram de ser navegáveis:
talvez não saiba dessa terra minha
ou ela esteja em ebulição
nas margens sitiadas de um rio murmurado
escondida do turbilhão hodierno
da intromissão dos outros sem caução.

Desta terra sem fim
(porque assim o determino)
desenho os contornos
os marcos geodésicos onde estou de atalaia
a boca do céu testemunha
para deleite das porteiras mascaradas de gente
e infortúnio dos profetas de tudo.

Desta terra
atestada terra sem fim,
seu curador legitimado.

#498

Um mosaico de rostos
constelação de nomes sem paradeiro
hibernação do mundo.
(Oxford Street, Londres)

5.3.18

#497

Há um lugar em Lisboa chamado Desterro.
Estarrecido fico
ao pensar por que deram ao lugar
tão ablegada toponímia.

Inventário

É a etiqueta
o manjar bastardo dos párias
a estulta montra do tempo
uma garrafa esquecida pela maré
os olhos marejados da idosa
a contrafação da gramática
a manhã tardia
um estroina interiorizado
um cálice dourado e, porém, vazio
braçadas fortes no mar contra
sapatos esgotados na fibra do caminho
– a possibilidade do impossível;
o marear das velas hirsutas
o espelho de sombras vetustas
a promessa infundada
os versos aformoseados pela singeleza
o parto adiado
o estranho ocaso lunar
os estragos do sorriso soez
o sarcasmo alinhado no avesso do dia
o pregão repetido, exaurido
a luz desmaiada na alvorada sombria
uma chávena de café sem misericórdia
o pranto das lágrimas enxutas
– a impossibilidade do possível.

#496

Desta candeia extingui o fogo;
não queria ter o porvir
de atalaia.

4.3.18

#495

O baraço solto
dança sem rota
na mão invisível do mar agitado.

Friendly fire

Só por obnóxias convenções
se estima
que um paradoxo deixa de o ser
e se verte no contrário do seu teor:
as balas perdidas
são, porém, balas:
magoam tanto
como não perdidas balas.
É como os zeladores de nós todos,
catedráticos das convenções
(que, por o serem, são bondosas),
no argumentário do bem maior
ou na lógica ilógica
dos danos colaterais.
Antes medrassem
filólogos sem desvios
e os conceitos eram conceitos
(e não uma amálgama
orquestrada pela variável batuta
dos catedráticos das convenções).

3.3.18

#494

Trazias no bolso
um bolbo esquecido
e não era a Holanda que te viu.

Crédito

Por estas ruas suadas
as paredes acordadas em vigília
e o altar onde se espera
a alvorada.
A muralha erguida
estilhaços de balas perdidas
um aquário com a água frígida.
No estuário soalheiro
os remorsos omissos
em vez da farsa composta
no dorso fingido das dádivas.
É por este ângulo estreito
na enseada refeita
que se a venda derrui
e o olhar ganha condição.

2.3.18

Monção

Inventei uma monção
agora que a chuva é teimosa
– uma monção que não é minhota.
No lago defunto
onde só os nenúfares medram
agora tudo bebe renovação
pela mão da vistosa visita da chuva.
Os desapossados de sorriso
por estes dias de tempestade
revolvem-se nas entranhas:
possuídos
ai, se ao menos pudessem,
disparavam o arsenal todo
contra os feitores da monção,
ou martelavam um tamponamento no céu diluviano.
Tirando os joelhos condoídos
de idosos em decadência
e os impensáveis aduladores do “bom tempo”
não se proteste contra a monção ágil
o filamento dourado da fértil terra
seu tesouro incandescente
a água de que somos todos escansões
– lá vai lugar comum:
“a fonte da vida”.

#493

As sábias sílabas
sulcam o sexo suplicado
sonhando sonhos entronizados.

1.3.18

Insurgente

Ah!
Este salafrário
o estroina mundano
profeta dos desacatos
ignóbil desarrumador de ideias
agitador incorrigível
aquele que pega nas marés
e as vira de pantanas
o provocador que zela pela polémica
estouvado e vicioso
sacripanta com fama de pária
personagem desamado
ele que tem a honra de aparecer desarmado
contra os areópagos
onde se sulfatam obediências.
Sem medo do desterro;
aliás
é essa a sua ambição maximalista
no contínuo terçar da insubmissão
contra as algemas do gerúndio
e as alimárias da infecunda existência.

#492

O mosto conseguido
na lágrima derramada pela manhã
e eu não vacilo no dia.

28.2.18

#491

Já não
protestos sobre sonhos dissolvidos:
só versos amplos,
santuário da alma desembainhada.

Nadador-salvador

O incendiário
atento à fogueira que cresta
nado-morto deposto na clareira
onde as lágrimas se usam para extinguir
o fogo.

Ao fundo
depois da alcantilada ladeira
onde o vale recebe os sedimentos
o vagaroso rio traz nas mãos
as lágrimas do incendiário.
Mistura-as com os minerais volúveis
parafraseando os alquimistas:
“a fórmula certa não existe,
apenas um palpite
uma bala disparada na câmara escura.”

O incendiário foge:
corre sem parar
atravessa os vales
à espera de novos vales
desprende-se das lágrimas
nos muitos caudais banhado.
Foge dele mesmo
à espera de um fogo possante
que desfaça em cinzas
a vergonha impiedosa
em que seu sono se consome,
que liquefaça nos caudais dos rios
o façanhudo esgar melancólico.

O incendiário
despojado das suas artes
vê-se atirado
para os braços salvíficos
do nadador-salvador.

#490

Cobro do futuro
os juros sem jura
e conto com a lente desembaciada.

27.2.18

Amotinado

Motim dado em combustão
negação do gelo fundido
serventia improvável na gesta intrínseca
como obituário sem lavra notória.

Dos montes mais altos
vozes em forma de esgar
à falta de audiência
à falta de lucidez.

As esporas da montanha
trespassam cicatrizes nas costas do futuro
e os animais seguem indomáveis
na frutuosa liberdade.

Compõem-se pontes estéreis
e nos dedos cresce o aroma sem meças
enquanto as palavras dançam na tela
e os olhos se soltam das amarras.

Talvez esteja amotinado
ou um sonho desenfreado levanta-se da fonte
mas sei que das sabidas coisas
não guardo vestígios e colheitas.

Talvez seja apenas uma quimera
e desabotoe as juras guardadas
no lamento entretecido
no limiar de desfiladeiros medonhos.

Motim ou não
nos esteios das reverberações
meãs estruturas em cimento baço
e um asceta em protesto contra sua severidade.

#489

Dei de mim ao desterro
o fundo onde as trevas se aninhavam
e ganhei caução para o ocaso bucólico.

26.2.18

#488

Não olhes
não são as sombras
o prefácio da contaminação:
são as divindades malsãs.

Opostos

Sem a noite
vejo os gatos vadios
uma trova no mosto das uvas colhidas
contra as trevas militantes.
Jogo os cordões desatados
na infinita parede ao acaso:
tiro do rosto rugas sem nome
e sento-me no convés frio
– talvez à espera da lua caiada
ou apenas da alvorada. 

Não trago as armas dos outros;
não canto nem danço
nem me entrego à teatral função
(mesmo sabendo ser o fingimento
a fingir-se a si mesmo):
contemplo os frutos maduros
quase pendidos em véspera de senescência,
dir-se-ia
do olhar propositadamente demorado
à espera da decadência dos frutos. 

Os mundanos pesares jogam-se no vazio
onde os espera o acaso. 
Não aprendem com o ocaso das coisas
e empenham-se na insentida refrega
no labirinto medular
o inexistente êxtase sem sufrágio. 

Fujo da noite quando quero o dia
e encontro a noite quando cansa o dia. 

Disto é feita minha carne
no sangue constante
conciliábulo dos opostos.

#487

Nesta paliçada
o penhor que obnubila a ira
candeia que doa a luz ao dia.

25.2.18

#486

Tragam-me o mar
as mãos imersas em ouro
e faço do dia sua haste.

Piloto automático

Do nome sem paradeiro:
a antítese da noite
no inventário dos tutores da cidade
em novelos acamados na janela propositada.
Cuidados os degraus
o improvável ganho dispara na sombra
e sei dos nomes sem paradeiro.
Estamos em piloto automático:
sabemos
que do tudo sabemos nada.
Por isso
piloto automático.
As cortinas entreabertas cobrem a poeira
e o olhar não se cansa
não adia o sufrágio nos socalcos estimados
nem se amedronta
com os estilhaços prometidos.

24.2.18

#485

Aqui chegado
só com a bênção da maré
as mãos banhadas no fogo.

À pátria salgada

Quem resolve a eutanásia de Portugal?
Ardósia espinhosa
condomínio privado
ganga gongórica
genuflexão imperativa em selo de casta
impropério constante ao estatuído
fenda entre teoria e prática
concurso de vaidades
adulteração em estado puro
ilusão que enfeitiça o olhar
anestesia larvar
farsa sem remédio
eloquência frívola
intransigência em glória sem caudal
tiranetes disfarçados
(salazarentos em conserva)
apedeutas disfarçados de catedráticos
tudólogos em profusão
prolixos na inanidade.
Quem lhe encomenda a autópsia?

23.2.18

Heurístico

O xisto sem dono
candeia em que lanço âncora
reinado intemporal
caudalosa frágua no apetite ímpar
de onde nascem árvores sem semente
árvores com a raiz à mostra
bebendo nas veias do xisto lúgubre.
Não são as cidades
esteio que espera
nem o cimento amontoado pede água;
pode ser lúgubre o xisto
e ainda assim
mata a fome à fome avulsa
nas suas veias suculentas
e todavia escondidas.
O sol consome-se no tubular nevoeiro
impaciente
para se servir da paisagem
o manjar esperado
condimento ostensivo na garrafa embaciada.
Sem o tirocínio dos homens da terra
que o xisto generoso abre suas pétalas
e as mãos famintas trespassam a aspereza
tornando-se macios
(mãos e xisto)
na quimera dos paradoxos.
Ensina-se aos ascetas
os pródigos novelos em cascata
que ascendem desde o vale até ao entardecer.
Um milhafre longínquo
dança os ossos cansados contra a falésia;
a presa não chegou a ser presa
e o milhafre adiou a fome,
à falta de olhar cuidadoso
sobre a paisagem sem algemas.
Os camponeses
desatentos por cuidarem da lavoura
esquecem os inviáveis acessos de fúria;
não reza a história
de homens presas de milhafres.
Nunca fiando:
antes de os tempos
romperem o véu da sua véspera
ninguém adivinhava o xisto
manancial de árvores e de frutos.
Os livros
estão cheios de inesperado.
Agora se percebe
que haja seguros de vida.

#484

Preciso.
Preciso de ser preciso.
Preciso,
matematicamente impuro.

22.2.18

Califórnia

Neste ermo lugar
onde navios sem velas dançam
e as luas se enamoram da alvorada
procuro uma Califórnia amuralhada.
Persevero
entre o musgo larvar
as palavras mal ditas
e as pessoas que não são malditas
à espera de um chapéu amarelo
onde façam ninho ideias sem freio
onde medre a bondade sem juros.
Costumam
as areias límpidas ajudar a estilhaçar
os embaraços escondidos
entre as linhas amarrotadas
nas entrelinhas do possante muro
de onde se lamentam preces e fingimentos.
Não sei se a Califórnia chega
ou se preciso de um califado:
sei,
ao menos,
que não há insalubre fado
onde de estorno fermente uma sorte.
As velas agora hasteadas
chegam fogo ao navio,
que se move devagar:
talvez ao anoitecer
as luas se fundam numa só
e Califórnias não sejam demandadas
por ausente serventia:
no fio do luar
uma marca de água
a sublime tinta-da-china
escreve as estrofes que devolvem o sono.

#483

Como vem ao conhecimento
que baça é a lente
e treslidas as palavras?