4.4.18

Não alinhado

Não sei dos entulhos
maré dominante;
náuseas são sua linhagem
e nem prebendas e sinecuras
agitadas por teatrais testas-de-ferro
congeminam mudança dos termos 
em que as coisas medram.
Não sendo
vendilhão
asceta da conformidade
titular de ideias banais
carne para canhão de conspirações alheias;
e não aderindo
a modas
às palavras matraqueadas e fúteis
com a benevolência das multidões
ou a divãs imperativos;
nem dando ouvidos
às serpentes ludibriosas que acenam
com sua língua bífida
o veneno disfarçado da mortal congruência:
proclamo:
não alinhado
mesmo na aresta viva do repúdio
da solidão destinada
no varejo metódico das algemas recusadas.

#526

De que espessura é este entardecer,
como se abraça a penumbra tenente
ao corpo insatisfeito?

3.4.18

Fortuna

Cortejo as palavras
na coreografia redesenhada
no salto em frente
duas léguas por cima do precipício
e tenho na chama da lareira
onde crepita a rendição do simbólico
alimento filial.

Reveem-se os caudais fartos
onde navegam vocábulos enquistados
vocábulos à espera de reinvenção
(à espera da alforria)
na gramática que abre o peito 
à imoderada lógica rompendo bastiões.
Não sossegam os dedos famintos
na insubmissão das palavras áridas
da tela sem cor a devorar a imaginação.

E as palavras sucedem-se
insurgem-se
lutam contra seu sopesar
deslimitam-se no sopé das fronteiras
desarmadilham-se das poeiras atávicas
falam idiomas versados no novo
idiomas falando entre si.

Cortejo as palavras
na fértil paisagem do pensamento
e sei
que as palavras de hoje perdem sentido 
no turbilhão da memória futura.

#525

Tenho o corpo no diabo
e a chave perita algures,
em falésia erma.

2.4.18

Arranha-céus

Deixo a voz
no cabaz do silêncio
onde se junta aos murais mundanos.
Pelo caminho
congemino as estrofes diletas
os pergaminhos sem inventariação
e a boca morde a corpulenta montanha
à procura de água.
Deixo a voz
dar em si o gutural anúncio:
um silêncio sagaz
com a cor das ligeiras ondas
que sondam a superfície do mar
enquanto da maresia retenho
a raridade de um alfabeto por inventar.

#524

The client is always wrong.
(Company’s new policy).

1.4.18

#523

Contar uma mentira às mentiras
conta para o primeiro de abril?

31.3.18

Skin deep

Como uma tatuagem
a tinta da China em pele minha
a tua pele.
Não a segunda pele
pele parte de mim
no estuário largo onde nos depomos
na filigrana forte dos vasos
onde o sangue nosso entra em combustão.
Recolho da pele funda
o eu que sou tu
fusão a quente
diadema incomensurável
avenida de perder de vista
o colo em minhas, tuas mãos
vinho fértil espreitando o calendário
promessa resgatada no peito quente
selada na mais funda pele
regada com a carne imparável de desejo.

#522

Whether the weather is better
talking the weather is whither.

23.3.18

#521

Sobre a falésia
sobra a emenda ajuramentada
a grande farsa.

22.3.18

Contador de histórias

Oxalá
as pedras perdidas
contassem histórias.
Oxalá
as pessoas por que passo
fossem histórias avivadas.
Teriam o aval dos curadores da memória
e apreciação bastante nos círculos demais.
Pois de histórias somos feitos:
no esgar de um sonho embaciado
no parapeito da imaginação agitada
na púrpura luz de que é feito o outrora
nos enredos, patranhas sem maldade.
Oxalá
as histórias contadas com arroubo
fossem a avença do tempo
e não houvesse lugar para ocupar o resto.
E dos corpos transidos
autêntica anestesia de tudo
se desprendessem
palavras fétiche
palavras armadura
palavras sem medo
palavras verossímeis
palavras serpenteadas
palavras
no estonteante precipício das emoções.

#520

Os olhos fundidos no mar
colhem a maresia
o lenço que enxuga as lágrimas. 

21.3.18

Corda desatada

Imitação sem fundo
os bolsos fartos do esquecimento. 

Não tira sono a morte
que nela o sono já não importa. 

Mordo as paredes da bondade
e aprendo a agridoce ingenuidade. 

Mantenho as teimas
na estrutura em escombros feita. 

Dos espelhos na penumbra
retiro os versos tumultuosos. 

Na linha contrafeita da vontade
configuração imprevisível de um devir. 

Anoiteço com a alma leve
assenhoreando-me dos gramas em conta. 

Devolvo ao corpo ganhos sem número
na recusa do implacável dia consecutivo. 

Amanheço sem mordaças
o apetite inteiro pela úbere do mundo.

#519

Metido no nevoeiro
diametral labirinto sem chave
da baça luz uma claridade mareia.

#518

Qualquer semelhança com a realidade 
é coincidência.
Qualquer coincidência com a realidade 
é semelhança.
Qualquer realidade com semelhança 
é coincidência.

20.3.18

#517

É esta roda demencial
imperfeição perfeita
síntese de tudo,
aplauso.

Paisagem

Recorto os dedos da paisagem
na água indomável do rio
no castigo indolente da pedra alcantilada
no sossego imposto pela genesíaca tela
o alimento que se dá aos olhos.
Da paisagem
recruto a pequenez de mim
por mais que a desenhe com os dedos túrgidos
por mais que de olhos fechados a cante
e nas estrofes vindouras tenha repouso.
Não reclamo elegias
nem inverosímeis enredos
ou fábulas pueris:
altar é o palco certo
uma escadaria ao desafio
as mangas sem cansaço
fotografias incessantes e, todavia, singulares
cada qual na protuberância de um lado
de um ângulo escondido do olhar
deixando
à paisagem desenhada ao longo da paisagem
o recobro em extinção das angústias.
Paisagem em postal belo,
sem o embraço dos homens,
apenas paisagem
no néctar da solidão
vertida nos claustros da convalescença.

#516

Vem nos jornais:
a primavera meteu greve
e as flores têm medo de não renascer.

19.3.18

Nihil obstat

Não pergunto nomes
não conto silhuetas
não fervo no restolho de trevas
não sei do verbo proscrito
não vejo as acácias moribundas
não antecipo a ilha furtiva
não tenciono a mortalha movida.
Não digo não apenas porque não
no sim que não é simulacro
apenas dupla negação;
e se as matemáticas regras colherem
uma dupla negativa
soergue-se no altar de um sim.
Não digo aos girassóis a hora do entardecer
não anoiteço no rumor das ondas
não tropeço no ciciar das rolas
não dou o avesso aos labirintos
não mereço o imerecido
não sou tudo o que nunca falei.

#515

Aprendi com o abismo
a saber cair
num espelho de água.

#514

Vi as horas a passar por mim
sem ter passado
pelas horas que passaram por mim.

18.3.18

Serviços secretos

Estoicamente
a palavra não reprimida
o desapalavrado silêncio
a esbarrar na estocada metálica. 

Indigência sem ramificações 
óculos perdidos no chão algures
sabendo
das áridas ideias 
no contraponto do mapa
na estéril luz amanhecida. 

O fogo
consome as pinhas apanhadas;
da sua crepitação
compulsam palavras mantra
uma metáfora metralhada
sob os auspícios
da irritante música bolçada pelo carrossel.

Nem espiões adestrados
sabem de cor
a cor das flores vertidas na jarra
na mirífica esplanada
onde os sonhos se digladiam.

#513

A cadeira
centrípeto
lugar
logro
desmentido.

17.3.18

#512

O corpo diuturno
antídoto experimentado
na paráfrase sem limite.

Contraluz

No agasalho do inverno
verbos sentados nas linhas abertas
uma constelação de estrofes
sem adjetivos.

(Os adjetivos são a matéria gorda
o impropério em vez do embelezamento
uma farsa
evitável.)

Remexo no baú bolorento
com a ajuda da cabeça desempoeirada
procuro os verrinosos maços de passado
sem o vestíbulo passado nos passos repetidos
sem a cortina descida sem ser a pedido:
talvez
seja o norte nos interstícios do sol
ou
a mão invulgar no amparo inesperado;
ou então
um vulcão adormecido
pela penumbra que se deita sobre o olhar.

16.3.18

Planície

Desse dessa água a beber
a meus lábios insaciáveis
no sopé das acácias
e eles estornassem o estio desafiado
e as águas nadassem
entre as muralhas do inverno. 
Assaltasse os tesouros sem nome
no parapeito do sangue voraz
em sentidos penhores do arrependimento
só para sufragar as cadeiras vazias
e com meu corpo dar-lhes vida. 
Fossem poupanças
o verbo do meio
desalinhando os números exatos
bebendo das guitarras arranhadas
só para entesourar as estrofes fundas
o beijo demorado no alpendre da vida. 
E então
até a temível bancarrota
seria púlpito
as portas entreabertas
com a força da vontade.

#511

Gatos sem freio
tomam conta das ruas
desmentindo o protesto da casta.

15.3.18

#510

A lua namora a noite
ajeitando o orvalho
que se embebe na madrugada.

Autobiografia

Sou feito
da trovoada que medra em mim
desta matéria explosiva
constelação onde todas as estrelas
se aninham
o lago amplo com nenúfares de ornamento
a palavra vertida num cálice
forrado com a alma sem freio
a convulsão labiríntica
e a seguir o céu plano
de onde irradia a claridade sem embaraços.
Feito
desta matéria visível
e da que invisível se esconde
nos contrafortes da montanha desemparedada
da matéria que busca alimento
nas águas velozes dos regatos
onde a neve tardia se fundiu.
Sou feito
da chuva sibilina
e dos prístinos lugares
onde os ossos aprenderam a ser
a funda, estrutural matéria
versada nas estrofes diligentes
nos olhares desembainhados das teias larvares
nos arcanos pesares
na poesia como casa forte.
Sou o penhor de tudo o que me abraça
a bússola esmaecida e, todavia, prestimosa
o húmus rico
as rochas duras que se dão ao peito
eu
sem fingimento
sem algozes admitidos a concurso
só no dorso das caravelas desenhadas
na intemporalidade que se cinde num instante
(ou no instante formulado em intemporalidade).
Colho dos braços das árvores
a água escassa, mas valedoura
e deito os braços ao rio como se fossem remos
só para tomar em meu colo
a mais pura essência que sintetiza meu ser.
Sou feito
de uma aurora boreal
original remate da alvorada
hormonas sem equação como rima
e sigo nas asas do dia
um dia de cada vez
no proveito da vida inteira.

#509

Na pior das previsões
uma janela
varanda abraçada ao mar.